Ouvi contar, que viviam há muito tempo atrás em Siena, dois bons burgueses, de nome um, Spinelloccio Tamena e o outro, Zeppa de Mino. Estavam ambos na flor da idade, moravam na mesma rua e estimavam-se muito. Casados, cada qual possuía uma linda mulher. Spinelloccio, que ia a miúde à casa de Zeppa, estivesse ele ou não, apaixonou-se pela esposa do vizinho e tão bem lhe soube fazer a corte que não tardou em obter-lhe os favores. Tais relações duraram longo tempo sem que o marido enganado desconfiasse da traição. Entretanto, a familiaridade reinante entre sua mulher e o amigo acabou por lhe inspirar inquietação e a fim de esclarecer se eram ou não fundadas suas suspeitas, resolveu certo dia esconder-se à hora em que Spinelloccio costumava visitá-lo. Este, mal chegando, procurou-o e como a dona da casa, que o supunha na rua informasse que estava ausente, pôs-se logo a beijá-la e ela a retribuir beijo por beijo. Zeppa, que assistia às carícias do lugar onde se escondera, silenciou, para ver qual seria o resultado desse jogo. Em resumo: - viu sua mulher com Spinolloccio entrar no quarto de dormir e fechar a porta à chave.
É fácil imaginar com deve Zeppa,
ter ficado indignado com esta dupla traição. Considerou, no entanto, que seus
gritos, longe de diminuírem o ultraje, somente viriam aumentar sua vergonha,
achou melhor não dar o alarma e contentou-se em conjeturar um meio de se vingar
sem fazer escândalo. Imediatamente, sua imaginação forneceu-lhe um meio muito
conveniente.
Tendo Spinelloccio saído, entrou
Zeppa, no quarto e encontrou a esposa a ajeitar o penteado desfeito.
- Que fazes aí, minha mulher? –
perguntou-lhe.
- Não estás vendo?
Sim, de fato vejo e vi também outra
cousa que bem quisera não haver presenciado. – Relatou-lhe então o que
assistira. A mulher, tomada de pavor, percebendo que não havia meio de negá-lo,
tudo co0nfessou e em prantos, pediu-lhe perdão.
- Não me poderias fazer injúrias
maior – disse o marido – eu te perdoarei, mas sob a condição de fazeres o que
eu te ordenar.
- Serás obedecido.
- Pois bem! Quero que marques uma
entrevista com Spinelloccio, para amanhã as nove horas; chegarei um minuto
depois dele; assim que me ouvires manda-o esconder-se nesse grande cofre e
fecha-o à chave. Feito isto, dir-te-ei o resto. Segue minhas ordens com
presteza e juro-te que te perdoarei e até mesmo esquecerei tua afronta.
A mulher tudo prometeu para merecer
o perdão, cumprindo com exatidão as instruções do marido.
Às nove horas do dia seguinte,
Spinelloccio e Zeppa estavam juntos. O primeiro, que combinara com a esposa do
amigo ir encontrá-la nessa hora, pretextou um almoço ao qual disse não poder
faltar, a fim de poder despedir-se.
- Ainda não é hora do almoço,
portanto não vás tão cedo.
- Não me incomodarei de chegar
antes da hora, porque tenho de tratar de negócios com o dono da casa na qual
vou almoçar.
E se despediu, dirigindo-se para a
residência de sua amante. Mal adentraram ao quarto, Zeppa se fez ouvir na
escada. A mulher, fingindo-se apavorada, convence o conquistador a enfiar-se no
cofre, tranca o mesmo e sai do quarto. Surge Zeppa e pergunta-lhe se o almoço
está pronto.
- Ficará pronto em um minuto.
- Acabo de deixar Spinelloccio –
replicou o marido – ele hoje vai almoçar fora com um amigo e já que sua esposa
ficará completamente só, vai e convida-a para vir almoçar conosco.
A dama, a quem a lembrança de sua
falta e o receio de ser punida tornava obediente, atendeu à ordem do marido e
tanto insistiu com a vizinha, a quem convenceu que não deveria aguardar o
marido, que afinal a levou consigo. Recebeu-a Zeppa, com grandes demonstrações
de amizade e depois de fazer sinal à mulher para que fosse à cozinha, tomou a
outra pela mão e levou-a para o quarto cuja porta fechou com o ferrolho.
- Que significa isto? – perguntou a
visitante – Foi para isto que me convidou para almoçar? É esta, então, a amizade
que dedica a meu marido?
- Antes de se ofender, minha
senhora, - respondeu Zeppa, segurando-lhe a mão e aproximando-se do cofre –
queira ouvir o que lhe tenho para dizer, gostava muito de seu esposo como se
meu irmão fosse. Quanto à amizade que ele me devota, ignoro se é sincera; o que
sei, é que ela não o impede de dormir com minha mulher, como com a senhora.
Ontem mesmo o fez, quase às minhas vistas. Ora, justamente porque gosto dele é
que tenciono usar de represálias e limitar a isso toda a minha vingança. Assim
como ele possuiu minha esposa, é justo que eu possua a dele. É o mínimo que
posso exigir. Se me recusa esta satisfação informo-lhe que não me será difícil
surpreendê-lo e tratá-lo de um modo que nenhum dos dois haverá de apreciar.
A dama recusava-se a crer que o
marido lhe fosse infiel, mas Zeppa, relatou-lhe o que fizera para obter a
certeza. Essas particularidades acabaram por persuadi-la.
- Já que o senhor resolveu
vingar-se em mim, do ultraje do meu marido, estou disposta a consentir, mas sob
a condição de que farás as pazes com sua mulher; eu, por meu turno, perdoo de
bom grado o que ela me fez.
- Fique tranquila – replicou Zeppa
– encarrego-me de tudo e, comprometo-me a lhe ofertar uma das mais belas joias
que se possam ver. A seguir, pôs-se a beijá-la apaixonadamente, conduzindo-a
delicadamente para cima do cofre e ali a usou quanto tempo quis.
Spinelloccio, a que tudo ouvira,
sentiu tamanha cólera que julgou estourar de raiva e se o temor pelo
ressentimento de Zeppa não o detivesse, não haveria insulto que não dirigisse à
mulher, embora estivesse encerrado daquela forma. Considerando, porém, que o
ofensor era ele, e que o amigo apenas lhe retribuía cornos por cornos, decidiu ser
mais do que nunca seu amigo.
A vizinha, no entanto, descendo do
cofre, solicitou a joia prometida. Zeppa abrindo a porta do quarto, chamou a
mulher, que ao entrar, disse à visitante:
- Você me devolveu um pão por um
bolo.
- Minha mulher, - disse o marido
interrompendo-a – abre este cofre. – Depois, voltando-se para a vizinha
surpresa por ver ali o esposo, disse-lhe:
- Cá está, minha bela senhora, a
joia prometida.
Seria difícil dizer qual dos dois
teve maior vergonha, se Spinelloccio, que sabia de como acabavam de traí-lo, ou
se sua mulher, por ver que o marido ouvira tudo quanto ela dissera e fizera com
Zeppa. Saindo do cofre, disse Spinelloccio, sem entrar em explicações:
- Estamos quites, meu vizinho; e se
quiseres atender à minha sugestão, continuaremos bons amigos como dantes. Já
que a única coisa que nos faltava compartilhar eram nossas mulheres, sou de
opinião de que as tenhamos em comum.
Zeppa aceitou a oferta e os quatro
almoçaram juntos na mais perfeita união. Daí para diante, cada mulher teve dois
maridos e cada marido duas mulheres, sem que jamais houvesse entre eles a menor
desinteligência em torno do fato.
(CONTOS DE ALCOVA)
Compilados
por Yves Idílio
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GIOVANNI BOCCACCIO
“Quando Deus criou Giovanni, duplicou
a criação”.
Com estas simples palavras um crítico, certa
vez, definiu fielmente a vida e a obra de Boccaccio.
Tudo o que escreveu é vida, é
alegria e acima de tudo é gargalhada. Nada respeitou, nem religiões, nem
preconceitos, nem ideais, mas no fundo suas conclusões tinham um quê, ainda que
disfarçado, de moralismo, medroso e receoso...
Nada melhor para retratá-lo do que
suas próprias palavras referindo-se aos interesses comerciais da família que
ele deixava em completo abandono: - “Que meu pai trate disso: corre-lhe ouro
nas veias; nas minhas corre sangue”.
Com Rabelais, Boccaccio forma a dupla
máxima da sátira e do humor, quase que se poderia dizer referindo-nos às suas
obras, nesse gênero: Depois deles – O Dilúvio.
Com “VARIAÇÕES EM TORNO DA LEI DO
TALIÃO”, o “conteur” irreverente do ‘Decameron’, nos dá uma demonstração da sua
verve incomparável e do seu modo simplista e indiferente de acomodar as
coisas...
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