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quarta-feira, 7 de outubro de 2020

VARIAÇÕES EM TORNO DA LEI DO TALIÃO – Giovanni Boccaccio

 


           Ouvi contar, que viviam há muito tempo atrás em Siena, dois bons burgueses, de nome um, Spinelloccio Tamena e o outro, Zeppa de Mino. Estavam ambos na flor da idade, moravam na mesma rua e estimavam-se muito. Casados, cada qual possuía uma linda mulher. Spinelloccio, que ia a miúde à casa de Zeppa, estivesse ele ou não, apaixonou-se pela esposa do vizinho e tão bem lhe soube fazer a corte que não tardou em obter-lhe os favores. Tais relações duraram longo tempo sem que o marido enganado desconfiasse da traição. Entretanto, a familiaridade reinante entre sua mulher e o amigo acabou por lhe inspirar inquietação e a fim de esclarecer se eram ou não fundadas suas suspeitas, resolveu certo dia esconder-se à hora em que Spinelloccio costumava visitá-lo. Este, mal chegando, procurou-o e como a dona da casa, que o supunha na rua informasse que estava ausente, pôs-se logo a beijá-la e ela a retribuir beijo por beijo. Zeppa, que assistia às carícias do lugar onde se escondera, silenciou, para ver qual seria o resultado desse jogo. Em resumo: - viu sua mulher com Spinolloccio entrar no quarto de dormir e fechar a porta à chave.

            É fácil imaginar com deve Zeppa, ter ficado indignado com esta dupla traição. Considerou, no entanto, que seus gritos, longe de diminuírem o ultraje, somente viriam aumentar sua vergonha, achou melhor não dar o alarma e contentou-se em conjeturar um meio de se vingar sem fazer escândalo. Imediatamente, sua imaginação forneceu-lhe um meio muito conveniente.

            Tendo Spinelloccio saído, entrou Zeppa, no quarto e encontrou a esposa a ajeitar o penteado desfeito.

            - Que fazes aí, minha mulher? – perguntou-lhe.

            - Não estás vendo?

            Sim, de fato vejo e vi também outra cousa que bem quisera não haver presenciado. – Relatou-lhe então o que assistira. A mulher, tomada de pavor, percebendo que não havia meio de negá-lo, tudo co0nfessou e em prantos, pediu-lhe perdão.

            - Não me poderias fazer injúrias maior – disse o marido – eu te perdoarei, mas sob a condição de fazeres o que eu te ordenar.

            - Serás obedecido.

            - Pois bem! Quero que marques uma entrevista com Spinelloccio, para amanhã as nove horas; chegarei um minuto depois dele; assim que me ouvires manda-o esconder-se nesse grande cofre e fecha-o à chave. Feito isto, dir-te-ei o resto. Segue minhas ordens com presteza e juro-te que te perdoarei e até mesmo esquecerei tua afronta.

            A mulher tudo prometeu para merecer o perdão, cumprindo com exatidão as instruções do marido.

            Às nove horas do dia seguinte, Spinelloccio e Zeppa estavam juntos. O primeiro, que combinara com a esposa do amigo ir encontrá-la nessa hora, pretextou um almoço ao qual disse não poder faltar, a fim de poder despedir-se.

            - Ainda não é hora do almoço, portanto não vás tão cedo.

            - Não me incomodarei de chegar antes da hora, porque tenho de tratar de negócios com o dono da casa na qual vou almoçar.

            E se despediu, dirigindo-se para a residência de sua amante. Mal adentraram ao quarto, Zeppa se fez ouvir na escada. A mulher, fingindo-se apavorada, convence o conquistador a enfiar-se no cofre, tranca o mesmo e sai do quarto. Surge Zeppa e pergunta-lhe se o almoço está pronto.

            - Ficará pronto em um minuto.

            - Acabo de deixar Spinelloccio – replicou o marido – ele hoje vai almoçar fora com um amigo e já que sua esposa ficará completamente só, vai e convida-a para vir almoçar conosco.

            A dama, a quem a lembrança de sua falta e o receio de ser punida tornava obediente, atendeu à ordem do marido e tanto insistiu com a vizinha, a quem convenceu que não deveria aguardar o marido, que afinal a levou consigo. Recebeu-a Zeppa, com grandes demonstrações de amizade e depois de fazer sinal à mulher para que fosse à cozinha, tomou a outra pela mão e levou-a para o quarto cuja porta fechou com o ferrolho.

            - Que significa isto? – perguntou a visitante – Foi para isto que me convidou para almoçar? É esta, então, a amizade que dedica a meu marido?

            - Antes de se ofender, minha senhora, - respondeu Zeppa, segurando-lhe a mão e aproximando-se do cofre – queira ouvir o que lhe tenho para dizer, gostava muito de seu esposo como se meu irmão fosse. Quanto à amizade que ele me devota, ignoro se é sincera; o que sei, é que ela não o impede de dormir com minha mulher, como com a senhora. Ontem mesmo o fez, quase às minhas vistas. Ora, justamente porque gosto dele é que tenciono usar de represálias e limitar a isso toda a minha vingança. Assim como ele possuiu minha esposa, é justo que eu possua a dele. É o mínimo que posso exigir. Se me recusa esta satisfação informo-lhe que não me será difícil surpreendê-lo e tratá-lo de um modo que nenhum dos dois haverá de apreciar.

            A dama recusava-se a crer que o marido lhe fosse infiel, mas Zeppa, relatou-lhe o que fizera para obter a certeza. Essas particularidades acabaram por persuadi-la.

            - Já que o senhor resolveu vingar-se em mim, do ultraje do meu marido, estou disposta a consentir, mas sob a condição de que farás as pazes com sua mulher; eu, por meu turno, perdoo de bom grado o que ela me fez.

            - Fique tranquila – replicou Zeppa – encarrego-me de tudo e, comprometo-me a lhe ofertar uma das mais belas joias que se possam ver. A seguir, pôs-se a beijá-la apaixonadamente, conduzindo-a delicadamente para cima do cofre e ali a usou quanto tempo quis.

            Spinelloccio, a que tudo ouvira, sentiu tamanha cólera que julgou estourar de raiva e se o temor pelo ressentimento de Zeppa não o detivesse, não haveria insulto que não dirigisse à mulher, embora estivesse encerrado daquela forma. Considerando, porém, que o ofensor era ele, e que o amigo apenas lhe retribuía cornos por cornos, decidiu ser mais do que nunca seu amigo.

            A vizinha, no entanto, descendo do cofre, solicitou a joia prometida. Zeppa abrindo a porta do quarto, chamou a mulher, que ao entrar, disse à visitante:

            - Você me devolveu um pão por um bolo.

            - Minha mulher, - disse o marido interrompendo-a – abre este cofre. – Depois, voltando-se para a vizinha surpresa por ver ali o esposo, disse-lhe:

            - Cá está, minha bela senhora, a joia prometida.

            Seria difícil dizer qual dos dois teve maior vergonha, se Spinelloccio, que sabia de como acabavam de traí-lo, ou se sua mulher, por ver que o marido ouvira tudo quanto ela dissera e fizera com Zeppa. Saindo do cofre, disse Spinelloccio, sem entrar em explicações:

            - Estamos quites, meu vizinho; e se quiseres atender à minha sugestão, continuaremos bons amigos como dantes. Já que a única coisa que nos faltava compartilhar eram nossas mulheres, sou de opinião de que as tenhamos em comum.

            Zeppa aceitou a oferta e os quatro almoçaram juntos na mais perfeita união. Daí para diante, cada mulher teve dois maridos e cada marido duas mulheres, sem que jamais houvesse entre eles a menor desinteligência em torno do fato.

 

(CONTOS DE ALCOVA)

Compilados por Yves Idílio

 

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GIOVANNI BOCCACCIO

 

          “Quando Deus criou Giovanni, duplicou a criação”.

            Com estas simples palavras um crítico, certa vez, definiu fielmente a vida e a obra de Boccaccio.

           Tudo o que escreveu é vida, é alegria e acima de tudo é gargalhada. Nada respeitou, nem religiões, nem preconceitos, nem ideais, mas no fundo suas conclusões tinham um quê, ainda que disfarçado, de moralismo, medroso e receoso...

            Nada melhor para retratá-lo do que suas próprias palavras referindo-se aos interesses comerciais da família que ele deixava em completo abandono: - “Que meu pai trate disso: corre-lhe ouro nas veias; nas minhas corre sangue”.

            Com Rabelais, Boccaccio forma a dupla máxima da sátira e do humor, quase que se poderia dizer referindo-nos às suas obras, nesse gênero: Depois deles – O Dilúvio.

            Com “VARIAÇÕES EM TORNO DA LEI DO TALIÃO”, o “conteur” irreverente do ‘Decameron’, nos dá uma demonstração da sua verve incomparável e do seu modo simplista e indiferente de acomodar as coisas...

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