A cada dia, recebemos melhores notícias sobre a queda no número de vítimas da Covid-19. Mesmo que a vacina ainda demore, estamos aprendendo a lidar com os meios de controle parcial da pandemia. Com algum sucesso, tentamos descobrir modos de sobreviver ao vírus, sem nos deixarmos imobilizar pelo terror que sua existência nos provoca. As conversas privadas e os debates públicos sobre como seremos, nós e o mundo, depois da pandemia se multiplicam e são um sinal saudável de que o pânico passou, com o pessimismo que poderia nos paralisar. Agora sabemos que o mundo não vai acabar, embora se torne outra coisa. E discutimos planos para seu futuro, em cada uma de nossas atividades.
Embora novinho, inventado há apenas 125 anos, o cinema é o
velho patriarca, o avozinho da família do audiovisual que inaugurou no final do
século XIX. O mundo virtual, assim como qualquer outra novidade no gênero, tem
sido um resultado do que ele começou em dezembro de 1895. Do som à cor, da
televisão ao streaming, tudo o que, nesse universo, apareceu depois da
invenção do cinema foi gerado por ele ou é uma consequência do que ele foi.
Não compreendo as críticas radicais, quase histéricas, de
gente como Martin Scorsese ao streaming. Não compreendo por que um grande
cineasta, com quem tantos jovens aprenderam tanto, se posiciona contra o
desenvolvimento de sua atividade. Lembra os intelectuais reacionários que, em
1927, se negaram a assistir a “O cantor de jazz”, como uma manifestação contra
o som no cinema. A mesma tradição que lamentou a cor (um disfarce da realidade,
criado para nos esconder o mundo real) e amaldiçoou a tela larga (os mais
espirituosos diziam que o Cinemascope só servia para filmar procissão religiosa
e desfile militar). O streaming é uma multiplicação de resultados obtidos pelo
cinema, seja na criação, seja na difusão, num formato doméstico que pode vir a
ser o destino social do ser humano. O que ficou claro durante a crise
mundial provocada pela pandemia.
O coronavírus jogou o ser humano nos braços de dois estados
de espírito morais que andavam esquecidos ou abandonados: a solidão e a
solidariedade. É possível que nunca mais voltemos a ser a humanidade tensa
destes últimos tempos, em busca de resultados imediatos por meio de disputas
acirradas, sem ordem de sentimentos ou princípios comuns. Uma humanidade que
nunca esteve satisfeita porque, por falta de consistência e significância, nada
lhe era suficiente. A pandemia nos revelou um mundo em que somos obrigados a
nos organizar sozinhos, sabendo entretanto que, sem o outro, nunca seremos
nada. Solidão e solidariedade são, por acaso, as circunstâncias humanas
originais do espectador de cinema.
Não sei prever se a sala de cinema vai desaparecer, em razão
do crescimento do streaming ou do que for. Mas é claro que, com as novas, claras
e imensas telas de nossos receptores de TV, teremos menos vontade de sair de
casa para ver um filme na rua cheia de atropelos. Imagino, mas não sei dizer
com total clareza, como essa economia se organizaria, porque é sempre muito
difícil prever tendências que não são exatas. Ainda não sabemos nem como a
pandemia há de terminar, com que costumes novos, quais e quantos serão os
mortos e suas qualidades. Ninguém é capaz de controlar tais cifras.
Sempre pensei o cinema como a mais clara e bela expressão de
uma cultura, de um povo, de um país. Por intermédio dele, descobrimos o que
somos e o que queremos ser. Mas o cinema não é uma necessidade primária, sem a
qual não se pode viver. Ele se estrutura a partir de circunstâncias aleatórias,
em que o fator principal será sempre o gosto de seus frequentadores. Entendendo
por gosto a soma de elementos que vão da emoção ao conhecimento, do saber ao
sentir etc. Não ouso prever esse gosto, nem mesmo no curtíssimo prazo.
Quando o cinema surgiu como espetáculo popular, se pensou
que os teatros fechariam. E, quando a televisão tomou conta de nosso tempo de
lazer, se dizia que o cinema tinha acabado. Não aconteceu nem uma coisa, nem
outra. O novo não é necessariamente o fim do que havia antes; ele pode ser
também uma consequência ou uma recuperação do que precisava mudar no que havia
antes.
O Globo, 14/09/2020
https://www.academia.org.br/artigos/depois-da-pandemia
Carlos Diegues - Décimo ocupante da Cadeira 7 da ABL, eleito
em 30 de agosto de 2018 na sucessão do Acadêmico Nelson Pereira dos Santos e
recebido pelo Acadêmico Geraldo Carneiro em 12 de abril de 2019.
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