22 de abril de 2020
Péricles Capanema
Não vai falar do covid-19? Tenha paciência, tratar de
plenitude? Que atualidade tem isso? Calma, vou escrever sobre o covid-19. E por
que escolhi logo plenitude? Sei, o assunto não dá manchete, parece do mundo da
lua, desinteressante, frio. Incende para mim, precisa queimar; quanto mais,
melhor.
Em linhas muito gerais, vou discorrer sobre uma plenitude, a
humana. Com temperança, buscar a própria plenitude, em qualquer âmbito (moral,
cultural, financeiro), é direito humano. Devagar. Plenitude tem (apenas) a
atualidade do perene; no caso, perenidade de enorme relevância. Semanas atrás,
em escrito sobre objeto parecido, observei: “Eles são perenes. Com efeito,
em muitos sentidos o que é verdadeiramente atual deixa ver sempre a nota do
perene — eco do imorredouro no presente. O resto é só o momentâneo, o
passageiro, o fugaz, o efêmero, o fugidio, sei lá o que mais. Realidades breves
evanescentes, minguando rumo ao nada.”
Estou convencido, é imprescindível manter o assunto
plenitude em lugar alto em nosso panorama mental. Jamais retirá-lo daí —
providência simples, irriga todo o espírito. Se permanecer no horizonte de
grande número de pessoas, vai estimular avanço civilizatório, será vacina
contra retrocessos e atrasos que, em última análise, fortalecem a opção
preferencial pela atrofia, parte integrante da política, já de séculos, mesmo
que inconfessada, das correntes revolucionárias. Exemplos paroxísticos e
próximos são Cuba e Venezuela. No século passado, foram macabros e didáticos
exemplos (melhorando, advertências), celebrados pelos progressistas mundo
afora, a Revolução Cultural Chinesa e o Camboja do Khmer Rouge — pelo menos,
até a revelação, ainda hoje parcial, da realidade dantesca. Muita gente no
Brasil, de alto a baixo da escala social, movida pela mitomania igualitária, fez
a opção preferencial pela atrofia, não vai mudar nunca. Os partidos de esquerda
e o “progressismo católico” estão abarrotados delas. E não só lá.
Otto Lara Resende comentava, Nelson Rodrigues era uma “flor
de obsessão”. Com isso queria significar, o amigo repetia sempre alguns pontos.
Batia, rebatia, martelava, reiterava, insistia, reafirmava, recordava, repisava
as mesmas trilhas. Atalhos perenes. O dramaturgo recifense concedia ser e no, é
isso mesmo. “Sou um obsessivo e houve alguém que me chamou de ‘flor de
obsessão’. Exato, exato, e graças a Deus. O que dá ao homem um mínimo de
unidade interior é a soma de suas obsessões.” Morreu 40 anos atrás, até
hoje seus textos são dos mais lidos no Brasil. Ninguém se lembra, ou quase
tanto, quais eram seus críticos. Depois de frigir os ovos, tem coisa mais atual
que a perenidade?
Entre companhia vasta, ou seja, pessoas que viam utilidade
na repetição, Nelson Rodrigues teve uma de especial relevo, Napoleão. “A
repetição é a mais forte figura da retórica”, garantia. Para que serve a
retórica? Persuadir. E o melhor instrumento para convencer seria a repetição,
opinião de alguém com forte propensão de convencer pelo fuzil e chicote.
Acho também, pelo menos na confusão da atual quadra
histórica, é indispensável repetir alguns assuntos (plenitude, um deles), mesmo
com o recurso disfarçado pelo emprego de meios variados. Martelar até que os
argumentos entrem e se acomodem na cachola. Pode parecer obsessivo; paciência,
precisa. Um dia, quem sabe o tema da plenitude humana exploda nas manchetes, é
anelo meu, seja tratado como valor que acho normal lhe seja atribuído;
relevância dispensada por todos, claro, mas em especial pelos que decidem os
rumos da nação.
Verdade, aspiro que seja preocupação central dos que decidem
os rumos danação. Não estou aqui me referindo, todavia, sobretudo a quem tenha
destaque no Executivo, Legislativo, Judiciário, empresariado, meios de
divulgação, academia. Longe disso. Foco realidade diferente. Refiro-me em
particular a gente espalhada em todos os meios sociais que, entre outros
atributos, tenha amplitude de vistas, bom caráter, dotes de observação,
pensamento próprio, esteja interessada no bem comum, saiba valorizar doutrina e
movimentos de alma no público. Coloca-se, pela força dos fatos, à frente do
povo, tem influência decisiva nos seus destinos.
Talentos, se quisermos, qualidades naturais, desde que não
permaneçam latifúndio improdutivo, são o mais importante ativo de um povo, mais
que qualquer outro. Em contas finais decidem seu bem-estar e presença na
História. Florescê-los é o decisivo. Grandes benfeitores, quem os estimula, das
sementes aos frutos; criminosos, quem os atrofia, impedindo que das sementes
surjam árvores, plenitude daquelas.
Nas pessoas, nas famílias, nos grupos sociais, latejam
talentos já plenamente desabrochados, outros pelo meio do caminho, outros ainda
latentes, mananciais para aperfeiçoamentos futuros. Levá-los à perfeição, mesmo
que relativa, cabe primeiramente às famílias, à escola, a instituições
próprias, aos mais variados ambientes sociais. De maneira suplementar, ao
Estado. Não é coisa de um dia. Acontece, qualidades em uma família levam duas,
três gerações para se desenvolverem plenamente. Volto a Napoleão, “a
educação de uma criança começa vinte anos antes de ela nascer, com o nascimento
de sua mãe”. Infelizmente, em cada geração a imensa maioria das qualidades
naturais não chega ao pleno florescimento, à plenitude, enfim. Mais ainda, não
é raro, em cada geração, antigos reservatórios de conhecimentos, costumes, modos
de fazer e de ver a vida de enorme valor acabam indo para o ralo, somem. E é
preciso começar do chão outra vez.
Hoje, em frangalhos, a família perdeu muito de sua
capacidade formativa. Mas, de si, é a estufa natural para o florescimento das
sementes. A seguir, de forma suplementar, outros grupos sociais. Todos somos,
uns para os outros, em ocasiões próprias, mestres, modelos, regentes.
Ponto escamoteado, mas central, convém ser realçado, pois é
foco difusor de excelência, um dos reflexos da plenitude. Nas mais variadas
elites de um povo, elites de artesãos, de escritores, de empresários, de
políticos, de diplomatas, de professores, de cozinheiros e cozinheiras,
sociais, de financistas, de seleiros, o tempo vai depositando valioso acervo de
perfeições humanas, necessárias ao bem comum, que é crime desconhecer,
subestimar, a elas ser indiferente; mais ainda, atacar. Pelo contrário, o dever
é estimulá-las com proporção, pois favorecem o aperfeiçoamento social.
Preciso fechar. Reflitamos sobre plenitude; pessoal,
familiar, social. O mundo pós-pandemia será muito melhor, se dermos ao tema o
lugar merecido.
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