1 de março de 2020
Tomada da Bastilha em 14 de julho de 1789
Plinio Maria Solimeo
No prólogo de sua completíssima biografia de Santo Afonso de
Ligório,[i] o
erudito historiador e hagiógrafo francês Padre Berthe [quadro abaixo] debuxa em
rápidos traços a situação religiosa na França no início do século XX.
Escrevendo em 1906, referindo-se aos nefastos efeitos da
diabólica Revolução Francesa: “Já faz 100 anos que a Revolução ataca a
Igreja de Deus com um furor sempre crescente. […] Atualmente ela derruba a
golpes de machado todas as instituições cristãs: laiciza a família, a escola, o
hospital, a caserna, o cemitério e até a rua, proibida doravante ao Deus feito
homem”.
Pe. Augustin Berthe
Entretanto, após investir contra o altar e o trono, a
Revolução de 1789 fez um recuo tático: com a Concordata de Napoleão e
particularmente com a Restauração dos Bourbons em 1814, ela permitiu que a
situação religiosa na França de certo modo se recompusesse e a Igreja
recomeçasse a inspirar a vida pública dos franceses. Contudo, como os
revolucionários não estavam dormindo, mas tinham apenas mudado de tática,
ganharam amplamente as eleições em 1879 e começaram a trabalhar para acabar
coma influência da Igreja sobre o Estado, ainda relativamente forte.
Assim, nesse mesmo ano suprimiram a obrigação do repouso
dominical, e no ano seguinte interditaram as congregações religiosas e
expulsaram a Companhia de Jesus. Em 1881 secularizaram os cemitérios, até então
ligados à Igreja, e em 1882 laicizaram a escola primária, tirando-a do âmbito
religioso.
Mas isso ainda não satisfazia a sanha dos revolucionários:
em 1884 eles suprimiram as orações públicas na Câmara dos Deputados e
restabeleceram o divórcio. No ano seguinte fecharam as Faculdades de Teologia
geridas pelo Estado e laicizaram os hospitais, que até então sob a tutela da
Igreja. Em 1886 laicizaram o pessoal de ensino nos estabelecimentos laicos e em
1887 retiraram os símbolos religiosos dos tribunais. Em 1889 decretaram a
convocação dos seminaristas e clérigos para o serviço militar, e finalmente, em
1904, romperam as relações diplomáticas com a Santa Sé e decretaram a separação
da Igreja e do Estado[ii].
Enquanto os revolucionários demoliam assim toda a influência
da Igreja na esfera temporal, o que faziam os católicos, majoritários no país?
Como foi possível — pergunta o Padre Berthe — “reduzir os católicos a esse
estado de escravidão” na outrora Filha Primogênita da Igreja, sem que
houvesse uma reação proporcional?
Para o ilustre eclesiástico, isso só se deu porque os
católicos em geral se esqueceram de que a Igreja é militante e, portanto, que devem
lutar contra o demônio, o mundo e a carne. Mas, sobretudo, porque “a
maioria não quis compreender que o cataclismo de 1789 não foi uma revolução
comum, mas a Revolução dos povos contra Deus e contra seu Cristo, a apostasia
das nações”.
Eis como o Pe. Berthe descreve a consequência dessa
apostasia dos católicos: “Cegos voluntários, em presença das ruínas que se
acumulavam, continuavam a repetir ‘que o mal não é tão grande, que todos os
séculos se assemelham, e que os homens sempre foram os mesmos’. Eles dormirão
em seu otimismo até o dia em que, com a religião e a moral destruídas, a
sociedade desmoronará sob os golpes do socialismo”.
Mas é preciso citar os “colaboracionistas” — aqueles
católicos “esclarecidos e progressistas” como os há hoje —, “que
julgavam que se devia poupar [a Revolução], aceitando seus princípios, louvando
como ela a liberdade, o progresso, a civilização moderna, aconselhando mesmo à
Igreja de se reconciliar com o direito novo, de sacrificar suas imunidades, e
de se mostrar menos intransigente em matéria de moral, de ascetismo, de
exegese, de história, de tradições”.
É o que sucede também em nossos dias quando, para adaptar a
Igreja ao “espírito do mundo”, se leva tudo de roldão, provocando o
desfazimento da vida de família com a avalanche homossexual, a teoria de
gênero, o aborto etc., tendo como consequência, sobretudo, a terrível crise que
devasta a Santa Igreja.
Continuando com o Padre Berthe, por causa dessa colaboração
ou pela falta do espírito de luta, “se nós perdemos bom número de nossas
posições, é porque não as quisemos defender muito vigorosamente. […] Em tempo
de guerra, todo homem é soldado; em tempo de perseguição, todo cristão deve
dizer como os Macabeus: ‘Antes a morte à apostasia!’”.
Qual é a solução que nos apresenta? A que ele propõe era
válida para o início do século XX, mas hoje, por causa da profunda crise na
Igreja, precisaria de uma adaptação, a qual exigiria uma nova envergadura para
combater o mal.
Afirma o autor: “O melhor meio de reanimar nos corações
a santa chama do entusiasmo cristão é colocando sob os olhos dos católicos a
vida e os combates daqueles que se fizeram cavaleiros de Cristo e de sua
Igreja. Nos primeiros séculos, quando o sangue corria aos borbotões, liam-se
nas assembleias as Atas dos mártires, e os homens, as mulheres e as crianças,
levados pelo exemplo, corriam em busca do suplício”.
O Padre Berthe apresenta Santo Afonso Maria de Ligório [quadro
ao lado] como modelo para enfrentar a crise: “Lancemos um simples golpe de
vista sobre sua longa carreira e dar-nos-emos conta das vitórias que obteremos
sobre os inimigos de Deus se soubermos lutar com o mesmo espírito, a mesma
coragem, as mesmas armas desse campeão de nossa santa e nobre causa”.
Ele então sintetiza em poucas linhas o perfil desse grande
santo: “Quando o jovem cavaleiro napolitano estava na idade de compreender
o que se passava no mundo, três tipos de sectários — os jansenistas, os
regalistas e os filósofos — trabalhavam em concerto para arruinar o
catolicismo. Voltaire e Rousseau semeavam por toda parte os princípios da
Revolução que oprimem hoje o mundo inteiro. Não tendo no coração outra paixão
senão a de propagar o reino de Jesus Cristo salvando as almas resgatadas pelo
seu sangue, Afonso abandonou seu palácio, seu direito de primogenitura, suas
esperanças de futuro [era famoso advogado no Fórum de Nápoles], suspendeu sua
espada no altar de Nossa Senhora da Misericórdia e entrou na milícia sagrada, a
fim de levar seu socorro ao povo de Deus”.
Continua o Padre Berthe: “Revestido dessa armadura [da
penitência], ele empunha o gládio e marcha contra o inimigo. Seu gládio não é o
da palavra, como a espuma dos retóricos, mas o gládio do grande Apóstolo, que
penetra até a divisão da alma e do espírito e quebra todas as resistências. […]
Por toda parte veneram o santo, o taumaturgo, o profeta, porque Deus está
visivelmente com ele, a Virgem se digna iluminá-lo com um brilho todo celeste
enquanto ele prega ao povo”.
O grande Doutor da Igreja, no entanto, deseja fazer render
todos os talentos que recebeu do Criador. “Ele deseja que todos os
cristãos se compenetrem de seu espírito cavalheiresco. Por seus numerosos
escritos dirigidos às diversas classes da sociedade, ele se esforça para
despertar por toda parte a fé, o amor de Jesus Cristo, o zelo pela salvação das
almas. Suas calorosas exortações vão encontrar os bispos em seus palácios, os
padres em seus presbitérios, os religiosos e as religiosas em suas celas, os
próprios reis em seus tronos”.
Finalmente, conclui o Padre Berthe: “E quando esse
grande homem, apóstolo, fundador, bispo, asceta, moralista, apologista, tinha
assim, durante meio século, sustentado a Igreja e repelido o mundo, Deus lhe
pôs sobre os ombros a cruz de seu Divino Filho, e o fez subir, durante 20 anos,
a montanha do Calvário. […] Crucificado em seu coração até se ver caluniado
junto ao Papa e expulso da Congregação da qual era fundador, ele
exclamou: Fiat! Crucificado em sua alma até sentir-se abandonado pelo
próprio Deus, ao bordo do inferno, cercado de demônios que o incitavam ao
desespero, ele aceita a prova, triunfa de todos seus inimigos e morre sorrindo
à Virgem Maria, que vem buscá-lo para conduzi-lo ao Céu. […] Os católicos mais
ou menos seduzidos pela ilusão liberal aprenderão do santo Doutor a morrer antes
que transigir com a Revolução ou ceder a Satã um só dos direitos que pertencem
a Cristo e à sua Igreja”.
[i]R.P.Berthe, Saint
Alphonse de Liguori – 1696 – 1787, Tomo I, Librairie de laSainte Famille,
Paris, 1906.
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