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segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

MEU ÚNICO E VERDADEIRO AMOR - Albert Di Bartolomeo


Ela não me enlouquecia,
mas me completava



Minha mulher e eu seguíamos para a praia – um fim de semana prolongado, de quatro dias, em Stone Harbor, com uma parada em Atlantic City.

            Nunca viajei naquela estrada sem me transportar aos verões que passei em Atlantic City nos tempos de faculdade, em princípios dos anos 70. Tenho fotos daquela época, mas não preciso delas a fim de evocar o passado. Para isso basta o cenário conhecido.

            Uma hora depois estávamos no local em que eu passara aqueles verões, trabalhando como ajudante de garçom num restaurante da cidade vizinha, ao sul. era um prédio branco com estrutura de madeira, 3 andares que rangiam e uma escada de incêndio de ferro batido presa na lateral da construção, como um adendo de última hora. Meu quarto ficava no terceiro andar.

            A casa se fora, bem como outras na rua.

            - É como se tivesse desaparecido no ar – comentei.

            Olhei para o vazio profundo diante de mim e os espectros do meu passado que passavam por ele. Imaginei-me sentado na varanda, lendo romances, e espreguiçando-me na praia sob o céu azul e indo de bicicleta para o trabalho, pelo puro prazer de sentir o vigor de meu corpo jovem.

            Então Jayne, meu primeiro amor, me veio à mente.

            - Em que está pensando? - perguntou minha mulher.

            - Nada de mais. Só nos tempos que passei aqui.

            Vi Jayne pela primeira vez num dia de julho, bem cedo. Eu tinha começado a limpar as janelas da frente do restaurante quando uma garota se aproximou da entrada. Fiquei olhando enquanto ela passava pela porta. Quando nossos olhares se encontraram, ela sorriu e murmurei um olá.
 
            - Sou o novo ajudante de garçom - disse, sentindo o rosto queimar.

            - Sou a garçonete que já está aqui há tempo demais.

            - Mas a temporada só começou há uma semana.

            - Exatamente.

            Jayne riu e foi se preparar para as suas tarefas.

            Durante o dia, eu queria parar no meio da confusão dos fregueses para falar com ela. Sempre que a avistava meu olhar a seguia, às vezes tão fixamente que teria ficado constrangido se alguém reparasse. Nos dias seguintes começamos a conversar durante a pausa do meio da tarde. A princípio encabulado, com a língua presa, logo passei a falar com uma paixão quase incontrolável, que para mim era desconhecida.

            Pouco depois nos encontramos na praia. naquela tarde ficamos deitados numa toalha, eu num estado de quase delírio, minha respiração ofegante com a visão de sua pele lisa, brilhando ao sol.

            Depois disso, passamos a caminhar ao longo da praia ou ficar em minha casa, ouvindo canções sobre desejos e perdas que pareciam nos falar diretamente. Não me lembro mais de nossas conversas, mas não eram tão importantes quanto a simples presença dela.

            Eu já conhecera outras garotas, tivera até uma namorada no 2º Grau, mas o que sentira por elas agora parecia insignificante. Esse novo sentimento me consumia por completo, como é natural no primeiro amor, uma sensação que vem do próprio sangue, como uma intoxicação ou doença.

            Cerca de um mês após ter conhecido Jayne , levei-a para casa depois de uma festa. No meio do caminho caiu uma tempestade. Seguimos devagar pelas ruas alagadas, na escuridão das três da madrugada. Parei o carro diante da casa dela e ficamos ali sentados, conversando.

            - Meu coração às vezes dá um salto quando penso em você -eu lhe disse.

            Ela sorriu.

            - É verdade.

            Certas noites, deitado na cama ouvindo o murmúrio do oceano, pensar em Jayne podia realmente fazer meu coração falhar uma batida.

            O que mais poderia provocar essa reação senão o amor? Quase disse isso a ela, mas me pareceu desnecessário, na doçura daquele casulo que então nos envolvia, protegendo-nos da chuva.

            Deixei Jayne nessa noite imaginando os longos dias que passaria com ela no futuro.

            Aquela, porém, foi a última vez que nos vimos fora do trabalho. Uma semana depois Jayne foi sentar-se comigo à “nossa” mesa, nos fundos do restaurante, com ar sério.

            - Algum problema?

            Ela hesitou.

            - Meu namorado e eu fizemos as pazes.

            Foi como se eu tivesse levado um soco no estômago.

            - Pensei que estava tudo acabado.

            - Ele diz que me ama e acho que também o amo.

            Não encontrei nada para dizer.

            - Sinto muito.

            Passei o restante dá tarde num atordoamento que pouco diminuiu nas três semanas que restavam para o fim do verão. Nunca na vida me sentira tão magoado, e pensei que jamais poderia me refazer disso. Sentia-me amargurado e zangado.

            A ferida se recusava a sarar. Passaram-se muitos meses, mas dentro de mim o lugar antes ocupado por Jayne me fazia estremecer sempre que eu o tocava.

            Então, num sábado de primavera, dois anos depois, entrei numa livraria da na Filadélfia e perguntei à garota no alto de uma escada onde poderia encontrar os sonetos de Shakespeare de que precisava para uma aula de inglês.

            Ela olhou para baixo e me indicou onde era a seção de poesia. Agradeci, encontrei o livro e logo saí da loja.

            No fim de minha aula de inglês, algumas semanas depois, cheguei ao saguão e vi a moça da livraria saindo de uma sala próxima. Lembrei-me de seus cabelos cor de trigo, da voz calorosa, dos olhos verdes inteligentes.

            Ela me viu e sorriu reconhecendo-me.

            - A garota da escada - disse eu, quando nos aproximamos.

            - Os sonetos de Shakespeare.

            - Você sempre se lembra dos livros que as pessoas procuram?

            - Quando vale a pena lembrar das pessoas.

            A resposta me fez sorrir.

            Ambos estávamos indo para outras aulas, mas fizemos as apresentações antes de nos despedir.

            Depois disso encontrei Susan várias vezes, sim em geral nos cumprimentávamos ou fazíamos alguma brincadeira e seguíamos nossos caminhos. Às vezes nos encontrávamos nos fundos da biblioteca do campus e nos sentávamos à sombra dos plátanos, conversando. Se ela não aparecesse, tudo bem. Éramos apenas amigos, sem compromisso, e eu preferia assim. Depois da angústia que vivera com Jayne, tornara-me desconfiado e não me abria com ninguém.

            Entretanto, uma tarde o assunto da conversa chegou a nossos pais.

            - Acho que você gostaria de minha mãe - disse eu -, mas meu pai morreu quando eu tinha 11 anos.

            Não tivera a intenção de mencionar algo que raramente contava, mesmo a amigos íntimos, e quase desejei ter ficado calado.

            Susan tocou meu braço.

            - Já faz algum tempo – eu disse.

            - Mesmo assim, sinto muito. – Uma sombra passou por seus olhos, em geral tão brilhantes. – Perdi o meu no fim do 2º Grau.

            Foi minha vez de lamentar.

            Ficamos ali sentados por algum tempo na tarde preguiçosa, emudecidos por aqueles pensamentos. Mas, como percebi na época, uma das virtudes de Susan era não permitir que as mágoas da vida sufocassem as alegrias, e logo passamos a falar de assuntos mais animados. Algumas semanas depois começamos a namorar.

            Naquele verão fui para Atlantic City pela última vez como universitário. Sentia-me mais velho, mais sábio e certamente menos ingênuo. E havia uma sensação de algo terminando – a juventude, e tudo que ela traz e que temos de abandonar para levar uma vida estável e responsável. Aquela viagem também foi diferente porque Susan de vez em quando ia me visitar, nos fins de semana.

            Como eu trabalhava de dia, só tínhamos as noites para estarmos juntos. As horas eram preciosas, e muitas vezes as passávamos à beira-mar, apenas conversando, como se tivéssemos guardado para o outro tudo que não podíamos expressar aos demais.

            Em algumas noites o luar formava um caminho sobre a água, ligando a praia ao horizonte.

          - É como se pudéssemos caminhar sobre ele – comentei, certa vez.

          - Aonde nos levaria?

          - Aonde quiséssemos, é o que gosto de pensar.

            - E aonde você iria?

           - Não sei, mas gostaria que você fosse comigo.

            - Com prazer.

            Ficamos abraçados, enquanto a noite avançava e esfriava. Foi ali, com as ondas quebrando no escuro, que deixei Susan penetrar nos recessos secretos que eu guardara minhas feridas. Ela os tocou com delicadeza e, quando me revelou os próprios receios e desejos, descobri o que era o amor verdadeiro.

            Depois que Susan tomava o ônibus de volta à Filadélfia e eu ficava só, muitas vezes lhe escrevia. Ela guardou essas cartas, amareladas, numa bolsa de seda rosa no fundo de uma cômoda há muito tempo com a família, que ganhamos de sua mãe quando nos casamos. Eu também tenho as cartas de Susan. Quando as leio, lembro-me do motivo por que quis passar a vida ao lado dela.

            Susan e eu nos levantamos cedo na manhã seguinte e fomos à praia para “cumprimentar o oceano”, como ela costuma dizer. Atravessamos os vários quarteirões no ar ainda fresco, no silêncio típico das manhãs no litoral.

            - É tão lindo – disse Susan, apertando minha mão, e concordei.

            No alto as gaivotas voluteavam e gritavam enquanto caminhávamos descalços na areia fresca e úmida. Depois paramos, sentei-me junto de uma duna, e Susan ficou na beira d’água, olhando o mar ou procurando conchas e pedras interessantes. De vez em quando se voltava para mim, emoldurada pelo sol brilhante do início da manhã.

            O primeiro amor, pensei, pode marcar profundamente, mas quando o amor perdura e cresce é porque une e alimenta o que há de mais caro, belo e nobre em duas pessoas. E porque compreende e perdoa o que é menos do que isso.

            O primeiro amor pode invadir nosso sangue com um efeito estonteante, mas o amor duradouro toma conta da alma. Assim, o amor se torna algo muito mais poderoso do que carne e osso. Ele nos completa, dando-nos a integridade de que precisamos para navegar em segurança pela vida.

            Eu poderia passar horas observando minha mulher, as ondas se quebrando e avançando sobre seus pés descalços.

            Num mundo por vezes desfigurado pelo sofrimento e pela angústia, senti uma gratidão profunda por ter o sol surgido para mim num amor como aquele. Eu o sentia naquele momento, fluindo sem parar entre nós dois, inteiramente unidos e completos como os mares – um porto contra todas as tormentas.


(Reader’s Digest SELEÇÕES - Março 2000)

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