Ela não me enlouquecia,
mas me completava
Nunca
viajei naquela estrada sem me transportar aos verões que passei em Atlantic City
nos tempos de faculdade, em princípios dos anos 70. Tenho fotos daquela época,
mas não preciso delas a fim de evocar o passado. Para isso basta o cenário
conhecido.
Uma hora
depois estávamos no local em que eu passara aqueles verões, trabalhando como
ajudante de garçom num restaurante da cidade vizinha, ao sul. era um prédio
branco com estrutura de madeira, 3 andares que rangiam e uma escada de incêndio
de ferro batido presa na lateral da construção, como um adendo de última hora. Meu
quarto ficava no terceiro andar.
A casa se fora,
bem como outras na rua.
- É como
se tivesse desaparecido no ar – comentei.
Olhei para
o vazio profundo diante de mim e os espectros do meu passado que passavam por
ele. Imaginei-me sentado na varanda, lendo romances, e espreguiçando-me na
praia sob o céu azul e indo de bicicleta para o trabalho, pelo puro prazer de
sentir o vigor de meu corpo jovem.
Então Jayne,
meu primeiro amor, me veio à mente.
- Em que
está pensando? - perguntou minha mulher.
- Nada de mais.
Só nos tempos que passei aqui.
Vi Jayne
pela primeira vez num dia de julho, bem cedo. Eu tinha começado a limpar as
janelas da frente do restaurante quando uma garota se aproximou da entrada. Fiquei
olhando enquanto ela passava pela porta. Quando nossos olhares se encontraram,
ela sorriu e murmurei um olá.
- Sou o
novo ajudante de garçom - disse, sentindo o rosto queimar.
- Sou a
garçonete que já está aqui há tempo demais.
- Mas a
temporada só começou há uma semana.
- Exatamente.
Jayne riu
e foi se preparar para as suas tarefas.
Durante o
dia, eu queria parar no meio da confusão dos fregueses para falar com ela. Sempre
que a avistava meu olhar a seguia, às vezes tão fixamente que teria ficado
constrangido se alguém reparasse. Nos dias seguintes começamos a conversar
durante a pausa do meio da tarde. A princípio encabulado, com a língua presa,
logo passei a falar com uma paixão quase incontrolável, que para mim era
desconhecida.
Pouco
depois nos encontramos na praia. naquela tarde ficamos deitados numa toalha, eu
num estado de quase delírio, minha respiração ofegante com a visão de sua pele
lisa, brilhando ao sol.
Depois
disso, passamos a caminhar ao longo da praia ou ficar em minha casa, ouvindo
canções sobre desejos e perdas que pareciam nos falar diretamente. Não me
lembro mais de nossas conversas, mas não eram tão importantes quanto a simples
presença dela.
Eu já
conhecera outras garotas, tivera até uma namorada no 2º Grau, mas o que sentira
por elas agora parecia insignificante. Esse novo sentimento me consumia por
completo, como é natural no primeiro amor, uma sensação que vem do próprio
sangue, como uma intoxicação ou doença.
Cerca de
um mês após ter conhecido Jayne , levei-a para casa depois de uma festa. No
meio do caminho caiu uma tempestade. Seguimos devagar pelas ruas alagadas, na
escuridão das três da madrugada. Parei o carro diante da casa dela e ficamos
ali sentados, conversando.
- Meu coração
às vezes dá um salto quando penso em você -eu lhe disse.
Ela
sorriu.
- É
verdade.
Certas
noites, deitado na cama ouvindo o murmúrio do oceano, pensar em Jayne podia
realmente fazer meu coração falhar uma batida.
O que mais
poderia provocar essa reação senão o amor? Quase disse isso a ela, mas me
pareceu desnecessário, na doçura daquele casulo que então nos envolvia,
protegendo-nos da chuva.
Deixei
Jayne nessa noite imaginando os longos dias que passaria com ela no futuro.
Aquela,
porém, foi a última vez que nos vimos fora do trabalho. Uma semana depois Jayne
foi sentar-se comigo à “nossa” mesa, nos fundos do restaurante, com ar sério.
- Algum
problema?
Ela
hesitou.
- Meu namorado
e eu fizemos as pazes.
Foi como
se eu tivesse levado um soco no estômago.
- Pensei
que estava tudo acabado.
- Ele diz
que me ama e acho que também o amo.
Não
encontrei nada para dizer.
- Sinto muito.
Passei o
restante dá tarde num atordoamento que pouco diminuiu nas três semanas que
restavam para o fim do verão. Nunca na vida me sentira tão magoado, e pensei
que jamais poderia me refazer disso. Sentia-me amargurado e zangado.
A ferida
se recusava a sarar. Passaram-se muitos meses, mas dentro de mim o lugar antes
ocupado por Jayne me fazia estremecer sempre que eu o tocava.
Então, num
sábado de primavera, dois anos depois, entrei numa livraria da na Filadélfia e
perguntei à garota no alto de uma escada onde poderia encontrar os sonetos de
Shakespeare de que precisava para uma aula de inglês.
Ela olhou
para baixo e me indicou onde era a seção de poesia. Agradeci, encontrei o livro
e logo saí da loja.
No fim de
minha aula de inglês, algumas semanas depois, cheguei ao saguão e vi a moça da
livraria saindo de uma sala próxima. Lembrei-me de seus cabelos cor de trigo, da
voz calorosa, dos olhos verdes inteligentes.
Ela me viu
e sorriu reconhecendo-me.
- A garota
da escada - disse eu, quando nos aproximamos.
- Os
sonetos de Shakespeare.
- Você
sempre se lembra dos livros que as pessoas procuram?
- Quando vale
a pena lembrar das pessoas.
A resposta
me fez sorrir.
Ambos
estávamos indo para outras aulas, mas fizemos as apresentações antes de nos
despedir.
Depois
disso encontrei Susan várias vezes, sim em geral nos cumprimentávamos ou
fazíamos alguma brincadeira e seguíamos nossos caminhos. Às vezes nos
encontrávamos nos fundos da biblioteca do campus e nos sentávamos à sombra dos
plátanos, conversando. Se ela não aparecesse, tudo bem. Éramos apenas amigos,
sem compromisso, e eu preferia assim. Depois da angústia que vivera com Jayne,
tornara-me desconfiado e não me abria com ninguém.
Entretanto, uma tarde o assunto da conversa chegou a nossos pais.
- Acho que
você gostaria de minha mãe - disse eu -, mas meu pai morreu quando eu tinha 11
anos.
Não tivera
a intenção de mencionar algo que raramente contava, mesmo a amigos íntimos, e
quase desejei ter ficado calado.
Susan
tocou meu braço.
- Já faz
algum tempo – eu disse.
- Mesmo
assim, sinto muito. – Uma sombra passou por seus olhos, em geral tão
brilhantes. – Perdi o meu no fim do 2º Grau.
Foi minha
vez de lamentar.
Ficamos
ali sentados por algum tempo na tarde preguiçosa, emudecidos por aqueles
pensamentos. Mas, como percebi na época, uma das virtudes de Susan era não
permitir que as mágoas da vida sufocassem as alegrias, e logo passamos a falar
de assuntos mais animados. Algumas semanas depois começamos a namorar.
Naquele verão fui para Atlantic City pela
última vez como universitário. Sentia-me mais velho, mais sábio e certamente
menos ingênuo. E havia uma sensação de algo terminando – a juventude, e tudo
que ela traz e que temos de abandonar para levar uma vida estável e
responsável. Aquela viagem também foi diferente porque Susan de vez em quando
ia me visitar, nos fins de semana.
Como eu
trabalhava de dia, só tínhamos as noites para estarmos juntos. As horas eram
preciosas, e muitas vezes as passávamos à beira-mar, apenas conversando, como
se tivéssemos guardado para o outro tudo que não podíamos expressar aos demais.
Em algumas
noites o luar formava um caminho sobre a água, ligando a praia ao horizonte.
- É como se
pudéssemos caminhar sobre ele – comentei, certa vez.
- Aonde nos
levaria?
- Aonde
quiséssemos, é o que gosto de pensar.
- E aonde
você iria?
- Não sei,
mas gostaria que você fosse comigo.
- Com
prazer.
Ficamos
abraçados, enquanto a noite avançava e esfriava. Foi ali, com as ondas
quebrando no escuro, que deixei Susan penetrar nos recessos secretos que eu
guardara minhas feridas. Ela os tocou com delicadeza e, quando me revelou os
próprios receios e desejos, descobri o que era o amor verdadeiro.
Depois que
Susan tomava o ônibus de volta à Filadélfia e eu ficava só, muitas vezes lhe
escrevia. Ela guardou essas cartas, amareladas, numa bolsa de seda rosa no
fundo de uma cômoda há muito tempo com a família, que ganhamos de sua mãe
quando nos casamos. Eu também tenho as cartas de Susan. Quando as leio,
lembro-me do motivo por que quis passar a vida ao lado dela.
Susan e eu nos levantamos cedo na
manhã seguinte e fomos à praia para “cumprimentar o oceano”, como ela costuma
dizer. Atravessamos os vários quarteirões no ar ainda fresco, no silêncio
típico das manhãs no litoral.
- É tão
lindo – disse Susan, apertando minha mão, e concordei.
No alto as
gaivotas voluteavam e gritavam enquanto caminhávamos descalços na areia fresca
e úmida. Depois paramos, sentei-me junto de uma duna, e Susan ficou na beira
d’água, olhando o mar ou procurando conchas e pedras interessantes. De vez em
quando se voltava para mim, emoldurada pelo sol brilhante do início da manhã.
O primeiro
amor, pensei, pode marcar profundamente, mas quando o amor perdura e cresce é
porque une e alimenta o que há de mais caro, belo e nobre em duas pessoas. E
porque compreende e perdoa o que é menos do que isso.
O primeiro
amor pode invadir nosso sangue com um efeito estonteante, mas o amor duradouro
toma conta da alma. Assim, o amor se torna algo muito mais poderoso do que
carne e osso. Ele nos completa, dando-nos a integridade de que precisamos para
navegar em segurança pela vida.
Eu poderia
passar horas observando minha mulher, as ondas se quebrando e avançando sobre
seus pés descalços.
Num mundo
por vezes desfigurado pelo sofrimento e pela angústia, senti uma gratidão
profunda por ter o sol surgido para mim num amor como aquele. Eu o sentia
naquele momento, fluindo sem parar entre nós dois, inteiramente unidos e
completos como os mares – um porto contra todas as tormentas.
(Reader’s Digest SELEÇÕES - Março 2000)
* * *
Nenhum comentário:
Postar um comentário