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quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

CHEGADA DO NAVIO - Gibran Khalil Gibran



             Al-Mustafa, o Eleito e o Bem-Amado, que era uma aurora em seu próprio dia, esperava havia doze anos, na cidade de Orphalese, o regresso de seu navio, que o levaria de volta à ilha onde nascera.

            E no ano décimo segundo, ao sétimo dia de Ailul, o mês da colheita, galgou o monte fora da cidade e olhou para o mar; e deparou com seu navio chegando com a névoa.

            Então, as portas de seu coração abriram-se, e sua alegria voou longe sobre o mar. E, fechando os olhos, orou no silêncio de sua alma.

            Mas ao descer o monte, foi invadido pela tristeza, e pensou no seu coração:
  
            “Como poderei ir-me em paz e sem pena? Não, não será sem um ferimento na alma que deixarei esta cidade.

            Longos foram os dias de amargura que passei dentro de suas muralhas, e longas as noites de solidão; e quem pode despedir-se sem tristeza de sua amargura e de sua solidão?

            Muitos foram os pedaços de minha alma que espalhei nestas ruas, e muitos são os filhos de minha ansiedade que caminham, desnudos, entre estas colinas, e não posso abandoná-los sem me sentir oprimido e entristecido.

            Não é uma simples vestimenta que dispo hoje, mas a própria epiderme que arranco com minhas mãos.

            Nem é um mero pensamento que deixo atrás de mim, mas um coração enternecido pela fome e a sede.

            Contudo, não posso demorar-me por mais tempo.

            O mar, que chama a si todas as coisas, está me chamando, e devo embarcar.

            Pois permanecer aqui, enquanto as horas queimam-se na noite, seria congelar-me e cristalizar-me num molde.

            De bom grado levaria comigo tudo o que está aqui. Mas como fazê-lo?

            A voz não leva consigo a língua e os lábios que lhe deram asas.

            É isolada que deve procurar o éter.

            É também só e sem ninho que a águia rumará rumo ao sol.”

            E quando atingiu o pé da colina, virou-se novamente para o mar e viu seu navio aportar e, no convés, agruparem-se os marinheiros, os homens de sua terra Natal.

            E sua alma gritou-lhes e lhes disse:
             
            “Filhos de minha velha mãe, que correis na crista das vagas impetuosas,

            Quantas vezes navegastes nos meus sonhos. E agora chegais ao meu despertar, que é meu sonho mais profundo.

            Disposto me encontrais a partir, e minha impaciência, de velas desfraldadas, está à espera do vento.

            Tomarei apenas mais um hausto de ar neste ambiente sereno, volverei para trás somente mais um olhar afetuoso.

            E, logo após, juntar-me-ei a vós, marujo entre marujos.

            E tu, vasto mar, mãe sempre acordada,

            Que, sozinho, és paz e liberdade para o rio e o regato,

            Uma só volta fará ainda esta corrente, um só murmúrio sussurrará ainda nesta clareira,

            Depois, virei a ti, gota ilimitada a um oceano ilimitado.”

            E enquanto caminhava, viu homens e mulheres abandonarem suas hortas e vinhedos e apressarem-se rumo às portas da cidade.

            E ouviu suas vozes chamarem seu nome, e anunciarem de campo a campo, um para o outro, a chegada de seu navio.

            E disse consigo mesmo:
    
            “Será acaso, o dia da separação o dia do encontro?

            E será dito que meu anoitecer era, na verdade, minha aurora?

            E o que oferecerei àquele que deixou seu arado no meio do rego, e àquele que imobilizou a roda de seu lagar?

            Converter-se-á meu coração numa árvore de abundantes frutos que colherei e lhes distribuirei?

            E correrão meus desejos como um manancial onde lhes encherei os copos?

            Sou, acaso, uma harpa para que em mim toque a mão do Onipotente, ou uma flauta para que Seu sopro me atravesse?

            Um ser em procura de silêncios, eis o que sou, e que tesouros tenho descoberto nos meus silêncios que possa distribuir com segurança?

            Se esse é o dia de minha colheita, em que campos plantei a semente, e em que estações esquecidas?

            Se esta é, na verdade, a hora de levantar minha lanterna, a chama que nela brilhará não será minha.

            Vazia e apagada erguerei minha lâmpada.

            E o guardião da noite a abastecerá de azeita e a acenderá também.”
  
            Essas coisas, ele expressou em palavras. Mas muitas outras, permaneceram inexpressas no seu coração. Pois nem ele podia externar seu segredo mais profundo.


            E quando entrou na cidade, o povo inteiro o recebeu, e todos estavam clamando seu nome numa só voz.

            E os anciãos da cidade aproximaram-se e disseram:

            “Não nos deixeis ainda.

            Foste um meio-dia em nosso crepúsculo, e tua juventude deu-nos sonhos para sonhar.

            Tu não és um estranho ou um hóspede entre nós, mas nosso filho e nosso bem-amado.

            Não condenes ainda nosso olhar a sofrer a fome de tua face.”

            E os sacerdotes e as sacerdotisas disseram-lhe:

            “Não consintas que as ondas do mar nos separem já, e os anos que entre nós passaste se tornem uma lembrança.

            Andaste entre nós como um espírito, e tua imagem tem sido uma luz que iluminou nossas faces.

            Muito te temos amado. Mas silencioso foi nosso amor, e com véus tem estado coberto.

            Porém, agora, ele grita e chama-te em alta voz e quer revelar-se a ti.

            Pois assim tem sido sempre com o amor. Ele só conhece a sua própria profundidade na hora da separação.”
  
            E outros vieram também e imploraram-lhe. Mas ele não lhes respondeu. Abaixou apenas a cabeça. E os que os rodeavam viram suas lágrimas caírem sobre o peito.

            E caminhando com o povo, chegou à grande praça em frente ao templo.

            E uma mulher chamada Almitra saiu do santuário. E ela era vidente.

            E ele a encarou com excessiva ternura, pois fora ela a primeira a procurá-lo e nele crer no dia de sua chegada à cidade.

            E ela o saudou dizendo:

           “Profeta de Deus em procura do infinito, quantas vezes sondaste as distâncias à espera de teu navio.

            E agora teu navio chegou, e tu deves partir.

            Profunda é tua nostalgia pela pátria de tua recordações e a morada de teus maiores desejos; e nosso amor não te quer prender, nem nossas necessidades te reterem.

          Uma coisa, porém, te pedimos: antes de nos deixares, fala-nos e dá-nos algo de tua verdade.

            E nós a transmitiremos a nossos filhos, e eles a transmitirão aos seus filhos, e ela não perecerá.

            Na tua soledade, vigiaste por nossos dias e, na tua vigília, escutaste os gemidos e os risos de nosso sono.

            Agora, revela-nos a nós próprios, e conta o que te foi dado descobrir do que existe entre o nascimento e a morte.”


            E ele respondeu:

            “Povo de Orphalese, de que poderia falar-vos senão do que está agora se movendo dentro de vossa alma?”

          

(O PROFETA)
Gibran Khalil Ginran

           
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Gibran Khalil Gibran - Poeta libanês, viveu na França e nos EUA. Também foi um aclamado pintor. Seus textos apresentam a beleza da alma humana e da Natureza, num estilo belo, místico, conseguindo com simplicidade explicar os segredos da vida, da alegria, da justiça, do amor, da verdade.
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