O Natal da
menina começava uma semana ou mais antes da data marcada no calendário. Uma
alegria íntima, cheia de expectativas, tomava conta do seu espírito, dias e
dias antes da festa. A data do nascimento de Cristo não era tão comercial como
nos dias atuais, embora não faltasse espírito mercantil entre os adultos. Era
uma festa na qual predominava um sentimento de espiritualidade. Não havia ainda
a força dominante da mídia para induzir somente ao material, eliminando toda a
pureza do sentimento da grande festa cristã. Era esta uma festa de fraternidade,
isso se evidenciava no costume de se presentear amigos e vizinhos. Nunca
faltavam os cartões de Boas Festas, mesmo para os mais distantes, que não
podiam ser esquecidos.
As casas
comerciais, lojas, açougues, farmácias, padarias, armazéns, todos tinham por
cortesia distribuir bonitos calendários com os fregueses. As farmácias ainda distribuíam
com os compradores os almanaques “Cabeça de Leão”, “Capivarol”, “Saúde da Mulher”
e “Biotônico Fontoura”. Entre os vizinhos havia a troca de bolos e compotas
caseiros, enviados com o maior esmero. Para os mais chegados, ia o queijo de
cuia ou uma garrafa de bom vinho. Dos compadres ou clientes das roças, chegavam
gordos perus e leitoas. Enfim, todos tinham alguma coisa para dar e receber, num
intercâmbio fraternal.
Na rua do
comércio, isto é, no Buri (Sete de Setembro) e na Praça Adami, o Natal era de
muita festa ao ar livre, jogos e quermesses.
Numa dessas
festas, na década de trinta, a Praça Adami foi cenário de dois fatos que
causaram alegria às crianças: a instalação do primeiro parque de diversões com
sua roda gigante - uma sensação na cidade -, e uma máquina de fazer pipocas - uma
novidade. As gambiarras aumentavam o ar de festividade. Semanas antes do Natal,
as lojas se enchiam de brinquedos. Nos lares, era uma azáfama com os
preparativos da limpeza de assoalhos, pintura de paredes, confecção de arranjos
e enfeites. Era tempo de engorda dos Perus cevados especialmente para a ceia, do
bolo inglês, dos sequilhos. Mas para a menina, a alegria culminava com a
elaboração do presépio que o pai fazia para ela e os irmãos. Deixando de lado qualquer
compromisso, ele tirava o domingo mais próximo do Natal para armar com os
filhos, embora crianças, o esperando presépio. Era uma festa. Todos colaboravam
na confecção, com trabalho e ideias, colocando as inúmeros figurinhas conforme o
gosto e a imaginação de cada um. Um bonito painel mandado pintar com cenário da
cidade de Belém servia de fundo. Grãos de arroz e milho plantados com
antecedência, em latinhas, formavam a grama que dava o verde nas planícies
bíblicas. Areia fina trazida da praia, e conchinhas contornavam lagos de
espelho. Rebanhos de ovelhas de celuloide ou cerâmica eram espalhados sobre montes
feitos de papel amassado pintado de roxo-terra e pastagens.
Pronto o
presépio, achado bonito, tudo no devido lugar, o Deus-Menino com os
pais na manjedoura, os patinhos na Lagoa, os Reis Magos com seus camelos,
pastores, rebanhos, tudo enfim, estava instalada a grande alegria do Natal. Agora
era só esperar os presentes e aí vinha a expectativa. No dia previsto, os
meninos procuravam acordar bem cedo para pegar Papai Noel em flagrante, mas o
velhinho nunca foi “pego” como se diz hoje. Entrava na casa para deixar os
presentes junto ao presépio, e saía sem nunca ter sido visto pelas crianças. Este
era um mistério que fazia um dos encantos do dia de Natal e motivo de muitas cogitações.
Fazendo parte dos festejos, estava a
visita a outros presépios que muitas famílias armavam e toda criança gostava de
ver. O da Igreja era bonito, mas um tanto solene para a menina. As figuras
sagradas, os Magos e os animais, uns na manjedoura, outros trilhando uma
estrada, guiados por uma grande estrela brilhante, eram admirados com todo
respeito, em silêncio. Outros presépios eram também visitados, grandes e
bonitos como o de dona América Freire, na Rua Duque de Caxias, e o de dona Gabriela,
que ocupavam metade da sala, mas o que mais empolgava a menina era o de dona
Chiquinha, na rua Paulino Vieira. Este era a grande atração, não só pelo
tamanho, mas pela curiosidade que despertava. Além das tradicionais figuras, havia
uma estrada de ferro com a locomotiva, um enorme dragão se balançando de uma
árvore, aviões pendurados por finos arames, dinossauros, baleias nadando no
lago, um exército de soldadinhos de chumbo com metralhadoras, até um
arranha-céu se destacava no meio do modesto casario da cidade de Belém. Aquela
profusão de figuras fazia a alegria da menina que não se fartava de buscar com
os olhos as coisas e seres exóticos do presépio de dona Chiquinha. Esse presépio,
para o espírito de uma criança, era tão bonito que nunca foi esquecido.
Tempos
bons os daqueles Natais de Itabuna! O Natal da Missa do Galo , na porta da
igreja de São José , na Praça Olinto Leone, à qual todos podiam ir sem medo, alegres,
rezando sob a luz das estrelas, na missa campal, despreocupados porque
voltariam incólumes para casa; da troca de presentes que todos podiam dar, das
festas de rua de que todos participavam e se divertiam em família, das
quermesses, das casas cheirando a folhas de pitangueira, dos presépios armados com
tanta pureza de espírito, com tanto amor
e singeleza de coração que tudo se tornava possível, até mesmo a capacidade de
deixar uma lembrança que foi guardada como uma das mais lindas recordações de
uma menina.
(RETALHOS)
Helena Borborema
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Helena Borborema - Nasceu em Itabuna. Professora de
Geografia lecionou muitos anos no Colégio Divina Providência, na Ação Fraternal
e no Colégio Estadual de Itabuna. Formada em Pedagogia pela Faculdade de
Filosofia de Itabuna. Exerceu o cargo de Secretária de Educação e Cultura do
Município. (A autora)
“Filha do Dr. Lafayette Borborema, o primeiro advogado de Itabuna. É autora de ‘Terras do Sul’, livro em que documento, memória e imaginação se unem num discurso despretensioso para testemunhar o quadro social e humano daqueles idos de Tabocas. Para a professora universitária Margarida Fahel, ‘Terras do Sul’ são estórias simples, plenas de ‘emoção e humanidade, querendo inscrever no tempo a história de uma gente, o caminho de um rio, a esperança de uma professora que crê no homem e na terra’” (Cyro de Mattos)
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