As traduções são muito mais complexas do que se imagina. Não
me refiro a locuções, expressões idiomáticas, palavras de gíria, flexões
verbais, declinações e coisas assim. Isto dá para ser resolvido de uma maneira
ou de outra, se bem que, muitas vezes, à custa de intenso sofrimento por parte
do tradutor. Refiro-me à impossibilidade de encontrar equivalências entre palavras
aparentemente sinônimas, unívocas e univalentes. Por exemplo, um alemão que
saiba português responderá sem hesitação que a palavra portuguesa
"amanhã" quer dizer "morgen". Mas coitado do alemão que vá
para o Brasil acreditando que, quando um brasileiro diz "amanhã",
está realmente querendo dizer "morgen". Raramente está.
"Amanhã" é uma palavra riquíssima e tenho certeza de que, se o Grande
Duden fosse brasileiro, pelo menos um volume teria de ser dedicado a ela e outras,
que partilham da mesma condição.
"Amanhã" significa, entre outras coisas,
"nunca", "talvez", "vou pensar", "vou
desaparecer", "procure outro", "não quero", "no
próximo ano", "assim que eu precisar", "um dia
destes", "vamos mudar de assunto", etc. e, em casos
excepcionalíssimos, "amanhã" mesmo. Qualquer estrangeiro que tenha
vivido no Brasil sabe que são necessários vários anos de treinamento para
distinguir qual o sentido pretendido pelo interlocutor brasileiro, quando ele
responde, com a habitual cordialidade nonchalante, que fará tal ou qual coisa
amanhã. O caso dos alemães é, seguramente, o mais grave. Não disponho de
estatísticas confiáveis, mas tenho certeza de que nove em cada dez alemães que
procuram ajuda médica no Brasil o fazem por causa de "amanhãs"
casuais que os levam, no mínimo, a um colapso nervoso, para grande espanto de
seus amigos brasileiros - esses alemães são uns loucos, é o que qualquer um
dirá.
A culpa é um pouco dos alemães, que, vamos admitir,
alimentam um número excessivo de certezas sobre esta vida incerta, número quase
tão grande como a quantidade exasperante de preposições que frequentam sua
língua (estou estudando "auf" e "au" no momento, e não
estou entendendo nada). São o contrário dos brasileiros, a maior parte dos
quais não tem a menor ideia do que estará fazendo na próxima meia hora, quanto
mais amanhã.
Talvez tudo se reduza a uma questão filosófica sobre a
imanência do ser, o devenir, o princípio de identidade e outros assuntos do
quais fingimos entender, em coquetéis desagradáveis onde mentimos a respeito de
nossas leituras e nossos tempos na Faculdade. No plano prático, contudo, a
coisa fica gravíssima. Se o Brasil tivesse fronteiras com a Alemanha, não digo
uma guerra, mas algumas escaramuças já teriam eclodido, com toda a certeza - e
a Alemanha perderia, notadamente porque o Brasil não compareceria às batalhas
nos horários previstos, confundiria terça-feira com sexta-feira, deixaria tudo
para amanhã, falsificaria a assinatura oficial no documento de rendição,
receberia a Wehrmacht com batucadas nos momento, mais inadequados e estragaria
tudo organizando almoços às seis horas da tarde.
Falo por experiência própria. When in Rome do as the Romans
do ditado que deve ter uma versão latina muito mais chique, mas, infelizmente,
não disponho aqui de meus livros de citações, para dar a impressão aos leitores
de que leio Ovídio e Horácio no original. Mas, em inglês ou em latim, acho esse
um pensamento de grande sabedoria e procuro segui-lo à risca, na minha atual
condição de berlinense, tanto assim que, não fora minha tez trigueira e meu
alemão abestalhado, ninguém me distinguiria, fosse por traje ou maneiras, dos
outros berlinenses bebericando uma cervejinha ali na Adenauerplatz.
Fica tudo, porém, muito difícil em certas ocasiões, como
hoje mesmo. O telefone tocou, atendi, falou um alemão simpático e cerimonioso
do outro lado, querendo saber se eu estaria livre para uma palestra no dia 16
de novembro, quarta-feira, às 20:30h. Sei que é difícil para um alemão
compreender que esse tipo de pergunta é ininteligível para um brasileiro. Como
alguém pode marcar alguma coisa com tanta precisão e antecedência, esses
alemães são uns loucos. Mas não quis ser indelicado e, como sempre, recorri a
minha mulher.
- Mulher - disse eu, depois de pedir que o telefonador
esperasse um bocadinho. - Eu tenho algum compromisso para o dia 16 de novembro,
quarta-feira, às 20:30h?
- Você está maluco? - disse ela. - Quem é que pode responder
a esse tipo de pergunta?
- Eu sei, mas tem um alemão aqui querendo uma resposta.
- Diga a ele que você responde amanhã.
- E quando ele telefonar amanha? Ele é alemão, ele vai
telefonar amanhã, ele não sabe o que quer dizer amanhã.
- Ah, esses alemães são uns loucos. Você é escritor, invente
uma resposta poética, diz a ele que a vida é um eterno amanhã.
Achei uma ideia interessante, mas não a usei, apenas disse
que ele telefonasse amanhã. Mas claro que não sei o que dizer amanhã e fui
dormir preocupado, tanto assim que ainda incomodei minha mulher com uma
cotovelada. Afinal, os alemães são organizados, é uma vergonha a gente não
poder planejar as coisas tão bem quanto eles. Que é que eu faço?
- Ora - respondeu ela, retribuindo já cotovelada -, pergunte
a ele se os alemães planejaram a reunificação para agora. E, se ele for
berlinense, pergunte se ele não preferia deixá-la para amanhã.
- Touché - disse eu, puxando o cobertor para cobrir a cabeça
e resolvendo que amanhã pensaria no assunto.
(Um brasileiro em Berlim, 1993.)
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João Ubaldo Ribeiro
Sétimo ocupante da Cadeira nº 34 da ABL, eleito em 7 de
outubro de 1993, na sucessão de Carlos Castello Branco e recebido em 8 de junho
de 1994 pelo Acadêmico Eduardo Portella. Faleceu no dia 18 de julho de
2014, no Rio de Janeiro, aos 73 anos.
Fonte: http://www.academia.org.br/
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