Minha Rua
Cyro de Mattos
Era estreita a nossa rua. No verão de céu azul, os raios de
sol coavam a manhã fresca. Não existiam fronteiras em nossa rua, pelo menos no
quarteirão onde eu morava. As famílias pareciam uma só, tamanha a intimidade
que existiam entre elas. Havia convívio harmonioso entre os vizinhos, fosse dia
de festa ou de tristeza.
No tempo das férias escolares, havia nos passeios jogo de
tampilha, pião e leilão de brinquedos. Jogar bola de gude ou bola era no meio
da rua. Natural que durante o jogo surgissem disputas acaloradas, bate-boca,
empurrões e até briga. Em pouco tempo tudo voltava ao normal. Os dias retomavam
a sua temperatura agradável, como se nada de mais houvesse acontecido entre os
que brigavam durante o jogo de futebol. Agora de vez em quando um nariz podia
ficar quebrado, ao receber um murro bem dado, só porque o amigo caiu na
besteira de ficar teimando e dizendo que ali na rua o estilingue mais certeiro não era o do irmão. No fim da tarde, o irmão chegava com a capanga cheia de
passarinhos, eram abatidos com bala de estilingue no Jardim da Prefeitura ou em
alguma roça próxima à cidade. O irmão no estilingue era mesmo um campeão.
Ninguém ali na rua duvidasse da pontaria dele. Cada balaço que ele desferia
acertava em passarinho pousado até em cocuruto de árvore alta.
Nossa rua ficava impregnada de um aroma verde, quando o
homem passava com o tabuleiro de verduras na cabeça. Os ares coloridos, todos
os dias, com o roxo da beterraba, o verde do repolho e o laranja da cenoura.
Era iluminada com a gritaria dos companheiros. Zoada havia
de canto a canto. Corneta, apito, bangue-bangue, jogo de bola, pião rodava na
mão e no chão.
Do que eu mais gostava era do jogo de bola. Quando a mulher
gorda chegava ao batente da porta, segurando a bola, que ela no mesmo instante
furava, não encontrava um menino sequer para perguntar quem foi o pestinha que
acertou daquela vez a sua vidraça, dando-lhe outra vez um prejuízo danado.
Cedo, no outro dia, os companheiros voltavam ao jogo com
bola de pano. Os lances aguerridos, rosto vermelho e suado, cabelos assanhados.
Palavrão, bate-boca e, aos gritos, a comemoração da vitória.
A vidraça da janela de alguns dos moradores de nossa rua não
deixaria de ser acertada.
Ó que saudade da minha rua! Hoje, vejo-a estreita e nem tão
comprida. Outrora tão grande para mim e os companheiros.
O mundo ali cabia dentro das cores da verdura no tabuleiro.
Bastava-se no leilão dos brinquedos, troca de gibi ou
figurinhas do álbum de artistas do cinema americano, bala de estilingue nos
quintais frutíferos, para não se falar no jogo de bola.
Ah, viver era uma canção verde como verde todos os dias a
gente ouvia a voz do verdureiro.
Verde na voz dos companheiros colhendo coentro nos passeios.
Abóbora nas valetas.
Couve-flor nos calçamentos.
Cyro de Mattos é escritor e poeta com prêmios literários
importantes, no Brasil e exterior. Doutor Honoris Causa da Universidade
Estadual de Santa Cruz, Membro efetivo da Academia de Letras da Bahia, Pen
Clube do Brasil e Ordem do Mérito do Governo da Bahia, no grau de
Comendador.
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