26 de setembro de 2019
Evangelho da corte de Carlos Magno
Paulo Henrique Américo de Araújo
A Idade Média exerce uma atração inegável sobre a
mentalidade moderna, por mais que isso pareça estranho… aos modernistas. A todo
momento, livros, filmes, seriados, novelas, desenhos animados, histórias em
quadrinhos se voltam para aqueles tempos, aludindo a um mundo que já não
existe, um ideal ou sonho fascinante.
Uma ressalva necessária é que a indústria do entretenimento
apresenta castelos, reis, príncipes, princesas e cavaleiros medievais sempre
carregados de deturpações, como bruxaria, esoterismo, degradações morais,
exagerado romantismo e incontáveis outros desvios, muito distantes da Idade
Média real; mas relegam a um seletivo esquecimento os aspectos reais mais
atraentes, sobretudo o fato de que a civilização medieval nasceu do Sangue
precioso de Nosso Senhor Jesus Cristo derramado na Cruz e da ação benemérita da
Santa Igreja Católica. Não obstante, é forçoso constatar que vez por outra o
mundo contemporâneo se inclina diante dos verdadeiros legados medievais, e em
certas ocasiões o faz sem perceber.
São Alcuíno de
Iorque apresenta um manuscrito a Carlos Magno (afresco) – Victor Schnetz, séc.
XIX. Museu do Louvre, Paris.
Para demonstrar esta afirmação, recorro a um artigo de
Antônio Prata na “Folha de S. Paulo”, em 21-4-19.1 O autor relata como
desde jovem havia se acostumado a escrever seus trabalhos usando no computador
a fonte Arial, mas em certa ocasião um problema técnico o obrigou a usar a
fonte Times New Roman. Após o desagrado inicial com esses caracteres que
lhe pareciam antiquados, confessa que passou a simpatizar com as serifas
(pequenos traços e prolongamentos ornamentais acrescentados nas extremidades
das letras), pois constatou a firmeza e solidez que o estilo Times transmitia.
Consequentemente, a fonte Arial começou a lhe parecer um amontoado de
“palitos de fósforo”, e reconheceu que suas crônicas, escritas ao longo de
muitos anos, teriam ganhado em qualidade e beleza utilizando o Times New
Roman.
Remontando aos tempos de Carlos Magno
Os milagres de Notre-Dame – Jean Miélot, séc. XV. Coleção
Philippe “le Bon”, Biblioteca Nacional da França, Paris.
Qual a origem desse estilo de escrita? A resposta envolve
uma curiosa descoberta e uma reverência que a modernidade presta à Idade Média,
sem o perceber. Não se engane o leitor, a denominação Times New Roman não
quer dizer “novos tempos romanos” ou “tempos do novo romano”. Nada mais
equivocado. Primeiramente, o termo “Times” se refere ao jornal “Times” de
Londres, que na década de 1930 estabeleceu como padrão de impressão a tão
conhecida fonte.
Até aqui, portanto, nada parece haver de medieval. Mas de
onde vem o termo New Roman? Na realidade, o padrão adotado pelo jornal
“Times” fizera pequenas alterações em um padrão tipográfico existente há mais
de 500 anos; o qual, por sua vez, remonta a uma época ainda mais distante,
levando-nos aos tempos de Carlos Magno. Quem nos relata as origens da
tipologia New Roman (“novo romano”) é o Prof. Thomas F. Madden,2 da
Universidade de Saint Louis, nos Estados Unidos.
Em fins do século VIII, Carlos Magno chamou a si a restauração
do antigo Império Romano, e o projeto se consolidou no ano 800, quando de sua
coroação como Imperador pelo Papa São Leão III, em Roma. Carlos Magno
estabeleceu sua capital em Aix-la-Chapelle, também chamada “New Rome”, ou seja,
“Nova Roma”.
Tornava-se necessário preservar a cultura romana, que ia
definhando após tantos anos de decadência. O Renascimento Carolíngio foi
propulsionado por um grupo de intelectuais, tendo como líder o famoso monge
Alcuíno de Iorque. Além de muitos outros legados, ele nos deixou a escrita dita
“romana”. Vem dessa época também a “minúscula carolíngia”, isto é, a
diferenciação que nos parece hoje tão banal entre as letras maiúsculas e
minúsculas, até então desconhecida.
Representação de
Gutenberg revisando as primeiras provas da impressão da Bíblia
Com Alcuíno à frente, iniciou-se um árduo trabalho de
pesquisa e cópia dos antigos escritos e documentos romanos. Nessa época já se
conhecia na Cristandade a importância dos monges copistas na reprodução e
conservação de escritos religiosos e litúrgicos dos séculos passados. Mas esse
trabalho não abrangia os manuscritos sobre assuntos temporais, que eram
simplesmente ignorados pelos copistas em geral. Carlos Magno e Alcuíno notaram
essa lacuna, e contrataram copistas para esses importantes documentos,
pagando-os com rendas do próprio Reino.
A empreitada não era simples. O Imperador e Alcuíno exigiram
que as cópias fossem feitas usando um tipo de letra de fácil leitura, para
favorecer estudos das gerações futuras; e os espaços entre as letras,
principalmente entre as palavras, deveriam ser bem definidos, para melhor
legibilidade; tudo isso sem esquecer o ornato — as serifas, mencionadas acima.
Geralmente se usava para documentos escritos, naquela época,
o pergaminho (pele de animais), material caro e de confecção difícil. Mas as
novas exigências traziam como consequência o pouco aproveitamento dos espaços
nos pergaminhos. E também contrariavam a tendência da época, que por motivo de
economia e melhor utilização dos pergaminhos forçava os copistas a escrever
letras muito próximas umas das outras e com estilo verticalizado, dificultando
em boa medida a leitura e o entendimento.3
Carlos Magno proporcionou a verba para que todos esses
obstáculos fossem superados. O projeto rendeu frutos incontestáveis, pois mais
de cem mil documentos não religiosos da Antiguidade foram copiados, dos quais
sete mil chegaram até os nossos dias.4
A tipologia “clássica” passou a dominar
Infelizmente, com a morte do grande Carlos e o período
caótico que se seguiu, o método de cópia criado por Alcuíno foi deixado de
lado; e as letras nítidas embelezadas com serifas, da época carolíngia, ficaram
esquecidas por 600 anos. Então algo surpreendente aconteceu, fazendo-as voltar
à luz. Que surpresa foi essa?
Em 1450, Gutenberg apresentou ao mundo uma das mais
importantes invenções da História: a imprensa de tipos móveis, uma máquina para
reprodução de documentos escritos. O difícil trabalho dos copistas tornou-se
assim desnecessário, mas os homens envolvidos na utilização do invento se
depararam com um problema: encontrar um padrão tipográfico ideal para a máquina
de imprensa.5
Não nos esqueçamos de que esses eram homens da Renascença,
por isso rejeitavam tudo o que dizia respeito àquela “época de trevas”
medieval. Queriam desencravar um tipo de letra proveniente da Antiguidade
clássica, romana, pois aí estava a “verdadeira civilização”, segundo eles.
Iniciaram-se as pesquisas. Foram evitados solertemente
documentos sobre temas religiosos ou litúrgicos dos monges copistas, facilmente
reconhecíveis, pois eram registrados com caracteres comprimidos, apertados,
“grotescos” até.
Mais pesquisas, e finalmente encontraram manuscritos com
grafia diferenciada, não relacionados com o cristianismo ou a Igreja Católica.
Eram mais recentes, inspirados em antigos escritos clássicos “profanos”. Além
disso traziam letras espaçadas, bem legíveis – uma padronização distante
daquela “época de trevas” e perfeitamente adequada ao desejo dos pesquisadores.
Satisfeitos, aqueles renascentistas implementaram na máquina
de imprensa a tal tipologia “romana clássica”. Não suspeitavam que fosse
justamente o estilo de letras desenvolvido por Alcuíno e promovido por Carlos
Magno, dois homens símbolos da mesma Idade Média que tais renascentistas tanto
menosprezavam.
A partir das rudimentares máquinas do século XV, a tipologia
“clássica” passou a dominar todas as formas de imprensa e publicações escritas.
Mais recentemente foi incorporada aos sistemas de informática, e até nos
métodos chamados virtuais os caracteres medievais reinam incontestes.
Os mesmos homens que desprezaram ou desprezam a herança
medieval acabaram agindo, sem o saberem, no sentido contrário aos seus próprios
preconceitos, uma espécie de revide histórico às avessas!
“E Deus zombará de seus inimigos”, diz a Escritura
(Salmos 2-4). Também assim a Idade Média se vingou de seus críticos.
* * *
Como vimos no início, o cronista Antônio Prata, ao destacar
a solidez e beleza da fonte Times New Roman, na realidade se curvou ante o
gênio medieval. O mundo moderno faz o mesmo a todo momento, sem o saber. Apesar
de representarem uma rejeição aos ornatos medievais, mesmo as fontes sem
serifas, como a Arial, têm sua origem no estilo dos tempos de Carlos
Magno. O leitor que tem diante dos olhos este texto, seja na versão impressa ou
eletrônica, o lê no mesmo padrão proveniente da Idade Média. Não há, portanto,
como fugir da reverência a essa época histórica. Todos lhe prestam homenagem,
mesmo os seus adversários.
____________________
Notas
Fonte: Revista Catolicismo, Nº 824, Agosto/2019.
2. The Modern Scholar: The Medieval World, Part II: Society,
Economy, and Culture (The Modern Scholar) Audio CD – 2009, Thomas F. Madden,
Universidade de Saint Louis.
3. Geralmente designa-se como gótico esse estilo
de escrita.
4. Nesse conjunto encontram-se obras de Cícero, Marcial,
Estácio, Lucrécio, Terêncio, Júlio César, Boécio, dentre outros.
5. Na Alemanha, as primeiras impressões utilizaram tipos
góticos, como a famosa Bíblia de Gutenberg. Na Itália, o mesmo não ocorreu,
como se vê mais adiante no mesmo artigo.
* * *
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