Uma Amizade Antiga
Cyro de Mattos
O livro é esse amigo que nos acompanha há séculos,
possibilitando o crescimento interior. Conhecemos outras vozes do mundo com
esse amigo. Inauguramos a vida com novos olhares, superamos vícios e medos. Sabemos
de casos que divertem, viajamos por terras nunca conhecidas. Damos voo à razão
através da linguagem que usa para cada tipo de leitor. Um de seus milagres
consiste em tornar leve todo o peso terrestre feito de solidões, angústias e
perdas. Sua amizade não trilha os caminhos do interesse, transpira sinceridade.
Com ele aprendemos que só talento não basta para quem quiser se tornar um
filósofo, cientista ou poeta. É necessário o hábito da leitura. Esse amigo está
pronto para dizer que, vivendo na sua companhia, a vida fica mais fácil.
Matamos até a morte.
Gosta de se mostrar nas livrarias. O lugar mais digno para
acomodá-lo em nossa casa é a biblioteca. Quem não tem poder aquisitivo para
adquiri-lo, pode achá-lo em uma
biblioteca pública. Lá está nas prateleiras o amigo solidário, esperando
nossa visita para uma conversa útil. Mostra muitas coisas numa cumplicidade que
informa, dá prazer, encanta. Faz aparecer paisagens impossíveis, que vão
entrando na medida em que uma página puxa a outra.
Livro xilografado, impresso com pranchas de madeira
gravadas. Em rolos de papiro e também de pergaminho, no Egito. Nas telas de
seda da China. Recolhido em manuscritos, no trabalho paciente e anônimo dos
bibliotecários de Alexandria. Livro da sabedoria, do Antigo Testamento.
Filosófico, científico e literário. Repositório do pensamento humano, dos povos
para os povos, de geração em geração, com seus rumores milenares.
Vem contribuindo para que o mundo mantenha portas e janelas
abertas, o sol acenda manhãs, o vento sopre momentos que somam. Das formas
primitivas às técnicas de editoração moderna, com esse amigo, como o braço ao
abraço, os seres humanos aprendem que os dias de exercitar a existência e
conhecer o outro ficam menos falhos.
O padre Antônio Vieira disse certa vez
que “o livro é um mudo que fala, um surdo que responde, um cego que via, um
morto que vive.” Acho que a fala da
nossa maior figura da oratória sacra combina com o que eu li num para-choque de
caminhão: “Quem não lê, mal fala, mal ouve, mal vê.” Verdade. Hoje, na minha terceira idade, reli O
Pequeno Príncipe, de Antoine Saint-Exupéry, a seguir O Velho e o Mar, de Ernest
Hemingway. Saí depois para a vida rejuvenescido.
De cabeceira ou de bolso, o livro é esse fiel amigo por vias
e arredios, capaz de dizer silêncios por meio dos sinais visíveis da escrita.
Fiquei certa vez abatido por conta da afeição que nutro por
esse amigo. Quando morei na fazenda São Bernardo, nas imediações de Ferradas,
chão onde nasceu o romancista do mundo Jorge Amado e o poeta Telmo Padilha, os livros que trouxe do Rio de Janeiro ficaram
encaixotados até que pudesse comprar uma estante digna de recebê-los. E, numa
noite sem estrelas, a chuva caiu pesada na terra centenária. O telhado velho da pequena casa não suportou o
volume da água que corria por entre as calhas.
Em pouco tempo, poças d’água formaram-se em vários cantos da casa por
causa das goteiras.
No outro dia, encontrei molhados os caixões que guardavam
velhos amigos. Lembro que apressado fui retirando do primeiro caixão Além dos Marimbus, de Herberto Sales, Uma Vida em Segredo, de
Autran Dourado”, Poesias, de Manuel Bandeira, O Salto do Cavalo Cobridor, de
Assis Brasil, Fábulas, de La Fontaine, Dom Quixote, de Cervantes, Timeless Stories for Today and Tomorrow, de
Ray Bradbury, Hamlet, de Faulkner, The Grass Harp, de Truman Capote, A Metamorfose, de Kafka, O Muro, de Sartre, e
A Moveable Feast, de Ernest Hemingway. Foram os livros mais atingidos pela
chuva que caíra naquela noite cortada por relâmpago e
trovoada. Páginas manchadas, letras borradas, capas danificadas. Ainda tentei
salvá-los, espalhando-os abertos no passeio para que fossem aquecidos pelos
raios de um sol tímido.
Aqueles livros haviam sido adquiridos com o dinheiro da
mesada que o pai mandava para o moço do interior na Capital, onde cursava a
Faculdade de Direito. Outros foram comprados nos meus anos de jornalista no Rio
de Janeiro. Meu coração sentia um tremor quando descobria um desses amigos na
vitrina, balcão ou prateleira de livraria, acenando-me para que fosse
adquiri-lo.
À noite peguei no sono como um herói inútil. Acordei
deprimido no outro dia. Aqueles que não consegui salvar tinham me ofertado
ricos momentos de leitura, horas de sonho e palavras de amor varando as
madrugadas. Madrugadas do homem solitário, que, no silêncio da noite, lograva extrair
sentidos da vida com aqueles companheiros especiais. Jamais esqueci isso.
Cyro de Mattos é escritor e poeta. Doutor Honoris Causa
da Universidade Estadual de Santa Cruz. Publicado em Portugal, Itália, Espanha,
Alemanha, França, Dinamarca, Rússia e Estados Unidos. Premiado no Brasil e
exterior. Membro efetivo da Academia de Letras da Bahia e de Ilhéus. Comendador
da Ordem do Mérito do Governo da Bahia
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