Caçador Guinó
Cyro de Mattos
Quando era
pequeno ouviu o caçador Guinó dizer no alpendre da casa de quatro águas: ”Os
netos dos fazendeiros de cacau não serão
fazendeiros de cacau...” Voz lerda: ”Cacau gosta de chuva. E as chuvas vão
escassear com tanto desmatamento que não para.” Não chegou a compreender o que
o caçador Guinó quis dizer com o futuro sombrio que o tempo estava reservando
para a lavoura. As matas eram profundas
de tão escuras e se estendiam por baixadas e serras, até lá onde ninguém
consegue alcançar e o céu acurva. As chuvas caíam sempre grossas, demoradas, os
homens nunca iriam conseguir desbastar tantas léguas de mata, que cobriam a
terra por léguas e léguas.
Vivera na fazenda períodos felizes da vida, infância
despreocupada, dias alegres chegados dos campos de chuva e flor. Passavam
ligeiros sem que percebesse, de tanto prazer que lhe davam. Derrubava na
jaqueira a fruta madura com o podão. Comia a jaca mole e doce sem pressa, sob a
sombra dos cacaueiros. Andava de volta para a casa com os passos misturando-se
com as folhas secas do chão, os ruídos quebrando o silêncio das roças. O suor
molhava a camisa, respirava o ar puro feito de árvore e flor, que o envolvia
dos pés à cabeça.
Quando anoitecia, colocava o banquinho para o caçador Guinó sentar-se
junto dele no alpendre. Aquele negro de corpo roliço, olhos quase imóveis,
nariz achatado, lábios grossos, sabia contar como ninguém histórias com bichos,
pássaros, peixes e assombrações. Era o único que podia andar dias na mata
turva. Os homens curvavam–se à sua vontade quando o assunto era a mata trevosa.
Os pés descalços, pequenos, mas resistentes. Munido de farinha, carne-seca e
aguardente, cruzava a mata fechada em todas as direções, como que guiado pelo
faro invisível de um bicho atento.
Conhecia as árvores pela casca e folhas. Os pássaros pelos pios e
cantos. Os bichos pelos ruídos e odores. As flores pelos cheiros e cores. Tinha
dois cães espertos, que o acompanhavam em suas andanças pela mata. Um colar com
dentes de caititu no pescoço. Espingarda e bornal a tiracolo.
A primeira
vez que apareceu no terreiro já tinha uma cicatriz feia no braço esquerdo,
marca deixada pela dentada de uma onça. Pelos cabelos brancos e pele com vincos
no rosto, dava para se observar que era um homem idoso, boca quase desdentada,
apenas quatro dentes, dois na parte de cima e dois na de baixo. O pai Alvinho
perguntou uma vez onde ele morava, respondeu que era numa caverna abandonada
por uma onça pintada com duas crias já grandes, bem longe dali, perto de uma
cachoeira que caía da serra numa pancada forte e formosa. Tinha aberto uma
clareira lá, onde plantou uma roça de milho e feijão, não adiantou nada, não
vingou nenhuma coisa nem outra, as chuvas grossas que caíram nas semanas
azedaram tudo. Adiantou que só caçava para comer o necessário, o mesmo fazia
quando pescava num ribeirão de águas claras. Só matava o macho de cada caça, de
preferência quando o bicho estava velho. Conhecia a idade do bicho perseguido
pelo fôlego. Bicho velho não corre muito, cansa mais rápido e se entrega.
Quando uma fêmea ou filhote caía no laço, soltava.
Uma vez por mês aparecia na fazenda, os cachorros rodeando a
casa, farejando tudo. O pai perguntou se ele quisesse morar na fazenda,
escolhesse o tipo de serviço que mais agradasse, nas roças de cacau ou na lida
com os animais de serviço ou até mesmo derrubando pau grande na mata. Ninguém
nasce sabendo, tudo na vida tem um começo, o pai incentivando para ele ficar
com a gente. Terminou aceitando, vindo trabalhar como apontador dos pedações de
mata contendo árvores com muita madeira de lei.
Durante o tempo que
ficou na fazenda, nunca deixou de ir caçar à noite na mata fechada. Uma vez
falou para os trabalhadores que a onça não mete medo nestas bandas, nem o
gavião-gigante, nem a cobra enorme da lagoa. O que mete medo mesmo é um bicho
que anda em duas pernas aqui em cima, este é o mais perigoso. Onde só um manda,
os demais não andam porque vivem se arrastando com a canga que lhes foi botada.
Ele mesmo já tinha passado por isso na pele, no tempo que foi escravo, lá no
Engenho de Porto Verde. Num momento de distração do feitor, fugiu da senzala,
saiu disparado pelo canavial, ganhando cortes das folhas da cana, ferindo-se no
corpo todo. Passou fome, sede, frio, noites acordadas. Rezou para os espíritos
da mata, dormiu em cima de árvore, mas ficou livre para sempre, melhor do que
ser escravo é viver como caçador dentro da mata braba.
Pai Alvinho, ao saber daquelas falas dele, achou que era uma
afronta que merecia ser corrigida. Mandou que ele não ficasse mais na fazenda,
fosse morar na mata, era lá o seu lugar, no meio dos bichos de pelo e de pena,
que ele tão bem conhecia e entendia como ninguém neste mundo.
Foi
justamente o que aconteceu. O caçador
Guinó foi morar na mata, perigosa, escura, de tão fechada. Nunca mais se ouviu
falar dele.
..............
Cyro de Mattos é escritor e poeta. Editado no exterior.
Membro da Academia de Letras da Bahia. Doutor Honoris Causa da Universidade
Estadual de Santa Cruz -Uesc.
* * *
Nenhum comentário:
Postar um comentário