Naquele
instante, sozinha com seus pensamentos, dona Basti, como era também chamada, passou
a relembrar os tempos idos. Quando chegou com o marido para aquelas terras, há sessenta
anos, tudo aquilo era mato. Nenhum vizinho havia por perto. Os dois deram duro,
trabalharam muito, soaram no cabo do machado e da enxada, até as mãos se
abrirem em calos e depois se transformarem em grossas lixas. A roça prosperou. Não
era grande, mas o cacau que produzia dava o suficiente para a família viver sem
preocupações com o futuro. Depois veio o progresso no Município e a vida
melhorou nas suas terras; onde havia apenas uma trilha como caminho, passava
agora uma estrada de rodagem. Quantas vezes já não acordou assustada com o
ronco dos caminhões, passando perto, na estrada! Quem diria! Chegou a murmurar alto
dona Bastiana. Além de caminhões carregados de cacau, até uma marinete passava
diariamente fazendo a linha Itabuna-Palestina.
Aquela
fazenda era o seu mundo. Pouco sabia do que se passava fora dele. Ali, tudo lhe
contava uma história ou falava ao seu coração, como o frondoso sapotizeiro que
o marido plantou para ela ao lado da casa; a jaqueira perto da barcaça tinha tantos
anos quanto o seu neto caçula; foi plantada no dia em que ele nasceu. Quantas e
quantas vezes tinha olhado aquelas serras lá longe, aquele por de sol. Quantas vezes
tinha palmilhado aquele chão ao longo de sessenta anos, no seu-dia-a-dia de
labutas. E a velha casa cujas paredes eram testemunhas dos seus risos nos dias
de alegria e de suas lágrimas nos dias tristes, como na morte da filha e, por
último, seu marido. Ali estava a sua vida e ali queria findar os seus dias.
Agora, quando
pouco tempo lhe resta, depois de anos e anos de trabalho e penúrias, surge essa
questão que vem lhe amargurar a vida. E se perder na Justiça? O que será dela e
dos netos? Estarão todos na miséria. Foi num dia assim, calorento, nesse mesmo
lugar, que tudo começou. Era uma tarde de sábado e os netos tinham ido fazer feira
em Palestina, distante dali poucas léguas. Ela estava a dar comida a suas criações,
como costumava, quando um moço sorridente e de boa aparência apeou à sua porta.
Quem era, não sabia, mas o diálogo foi amável:
- Boa
tarde, minha tia.
- Boa
tarde. Vá se chegando pra frente.
- Como vai
vosmecê nesse conforto?
- Conforto
num banco véio, duro como esse, meu filho? Quem sou eu para merecê conforto.
- Não diga
isso!
Enquanto tomava assento num tamborete
que lhe foi oferecido, continuou o recém-chegado:
- Vosmecê
está até parecendo a mãe de Ganga Zumba sentada num trono.
- Ganga o
quê?
- Ganga
Zumba. Sabe quem foi ele? Um negro valente, tio de Zumbi.
- Hum!
- Pois é.
Vosmecê tá parecendo uma rainha daqueles tempos de Palmares.
- Minha mãe falava muito em Zumbi. Quando menina,
ouvi as histórias dele.
À sombra
do terreiro, o sorridente visitante enxugou o suor do rosto com um lenço de
cambraia puxado do bolso do paletó.
- E a
fazenda, como vai?
- Mais ou menos. Com a “mela”
perdemos um bocado de cacau, mas é tudo como Deus quer. E eu estou aqui conversando
sem nem conhecer vosmecê. Se tá procurando meus netos, estão todos três fazendo
feira em Palestina.
- Só vim
fazer uma visitinha a vosmecê. Tenho fazenda aqui perto, isto é, a minha sogra,
mas como eu agora estou à frente dos negócios depois da morte do velho, ando
sempre aqui.
- Vosmecê
é genro de dona Marocas? Conheci sua mulher pequenininha. Seu sogro era um
homem de bem. Foi um bom vizinho.
- Como ia
dizendo, passei por aqui para lhe fazer uma visitinha e lhe oferecer uma pechincha,
um rádio que resolvi vender. Enquanto falava, ia retirando de um saco de couro
pendurado no cabeçote da sela o objeto da venda.
- Para que
eu quero rádio, meu filho! Na minha idade só penso em morrer.
- Vosmecê ainda
vai comer muita farinha e ouvir muitas notícias com esse rádio, minha tia. Olhe
aqui. Novo, bom. Só quero me desfazer dele para substituir por outro ao gosto de
minha mulher. Ela quer um grande, pra botar na sala.
- Só se o José
se interessar, porque o dele andou aí dando uns defeitos, meio arruinado.
- Pois
então! A Senhora fica com este, mostra ao José, depois resolve.
- Não, seu
moço! Só com ele. Eu não me meto nesses negócios.
- Ora, minha
tia. Que mal há em vosmecê ficar com o rádio para mostrar a seu neto? rádio grande,
bom.
Enquanto
falava, foi retirando de uma pequena pasta que trazia à mão um bloco de papel e
a caneta.
- Está
aqui o seu rádio. A senhora precisa ouvir as notícias que se passam por aí,
ouvir música sertaneja. Uma beleza!
- Eu por
mim não quero. Só se meus netos quiserem.
- Então!
Depois eu passo aqui, um dia desses, para saber a resposta. Sou seu vizinho, a
minha fazenda, isto é, de minha sogra, é logo ali adiante.
- E se meu
neto não quiser?
- Não tem
importância. Levo o rádio de volta. Agora, tia, basta a senhora assinar nesta
folha de papel. E só um sinal de que recebeu. É só a assinatura.
- Não tô
comprando, né?
- É que a
gente é da vida e da morte. Isto é só pra saber que vosmecê recebeu.
- Eu mal
esgarrancho meu nome. Nunca tive escola. Só aprendi assinar pra não fazer
feio no dia do casamento, na hora de assinar no livro. Taí!
- Pronto, tia. Que letra bonita! Já vou
chegando, antes que a tarde caia.
Depois de
mais alguns minutos de conversa fiada, sempre sobre a fazenda de dona Bastiana,
o visitante se despediu.
Deus o
acompanhe, meu filho.
- Vosmecê vai
gostar do rádio. Até à vista!
O
cavaleiro deu de rédea e partiu sorridente, com uma folha de papel assinada em
branco metida no bolso. Continuando a enxugar o suor da testa com o lenço de
cambraia, pegou a estrada e seguiu para casa contente da vida.
Dona Bastiana
deu um longo suspiro. Os olhos se embaçaram de lágrimas. Agora aquela cobrança
na Justiça de um dinheiro que ela nunca tomou emprestado, nunca viu. Quantia tão
grande que a obrigaria a vender a roça para pagar.
Como iria viver
se perdesse a sua roça, a casa onde nasceram a filha e os netos e onde desejava
morrer? O seu mundo estava ameaçado e longe dele não aguentaria, assim falava
o seu coração.
Que
notícias lhe trariam os netos? Estavam lutando na justiça para desfazer o “caxixi”
miserável, armado pelo moço sorridente. Lutavam para salvar a fazenda. Conseguiriam?
O advogado dava esperanças.
Dona Basti
olhou mais uma vez a estrada, buscando ansiosa a chegada dos netos, enquanto enxugava
com a manga da blusa as lágrimas grossas e quentes que lhe desciam pelo rosto cansado.
(TERRAS DO SUL)
Helena Borborema
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HELENA BORBOREMA - Nasceu em Itabuna. Professora
de Geografia lecionou muitos anos no Colégio Divina Providência, na Ação
Fraternal e no Colégio Estadual de Itabuna. Formada em Pedagogia pela Faculdade
de Filosofia de Itabuna. Exerceu o cargo de Secretária de Educação e Cultura do
Município.
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