Mirinha Vidente
Cyro de Mattos
Quando se estava em dúvida sobre algo que podia acontecer,
de bom ou ruim, recorriam aos seus dons de vidente. Prenunciava o ano de boa
safra, fartura para o pobre, benesse para o rico, saudável para o mediano.
Evidenciava nas cartas ou no copo de água a desgraça próxima, surto de peste, incêndio
com mortes, enchente pavorosa.
Um rio pequeno, aquele, monótono, torto seu rumo, enganoso.
Virava bicho medonho, levando casas ribeirinhas, invadindo o comércio,
empanturrado de fúria, água volumosa descendo das cabeceiras, do céu cor de
chumbo.
Só voltava ao curso normal, depois que engolisse duas almas
gêmeas, dois irmãos ou irmãs. Segundo Mirinha Vidente, ficassem todos
prevenidos, seria a calamidade maior naquele ano, do transcurso normal desceria
com alarde, assombroso na força das águas.
Duas irmãs chamavam a atenção dos moradores da pequena cidade.
Gêmeas, Marina e Mariana. Rosto de uma,
rosto da outra. Gosto de uma, gosto da outra. Só andavam juntas. O vestido da
mesma cor, o mesmo tecido, o mesmo corte. Ninguém sabia distinguir uma da
outra. Penteado de uma, penteado da outra.
Os risos muito parecidos, confundiam-se até nos gestos
mínimos a quem visse.
Tinham o mesmo tamanho, a mesma cor rosada no rosto, o mesmo
olhar nos olhos pequenos e brilhantes. Quem era Marina? Quem era Mariana? Difícil
saber. No educandário sempre tiraram as mesmas notas. Diplomaram-se em
professora para orgulho dos pais.
De súbito chovera muito nas cabeceiras do rio. Do céu caía
tanta água parecendo que o mundo ia se acabar para aqueles que ali, na pequena
cidade, vivessem. Gente chorando com as casas ribeirinhas levadas nos
redemoinhos das águas. Comércio alagado, mercadorias das lojas ensopadas de
água, a enxurrada aumentava. Carro boiando na correnteza, bicho morto, pau
grande.
Águas comeram parte do barranco no quintal da casa onde as
irmãs gêmeas moravam. As irmãs gêmeas olhavam o espetáculo das águas. Correnteza braba, levava tudo que pela frente encontrava.
Primeiro o barranco rompeu, despencando com Mariana. A irmã
Marina tentou salvá-la. Deu-lhe a mão, ao invés de puxar a irmã foi puxada.
Foram encontradas dias depois, abraçadas, no Poço da Caixa D’Água. A cidade
chorou muito no enterro das irmãs gêmeas como não acontecera antes. Cobriu-se
de um manto escuro, até hoje encobre a cidade quando alguém relembra o triste
acontecimento, um episódio doloroso na memória da cidade, de poucas ruas
calçadas...
Depois que levou as duas irmãs gêmeas, o rio voltou ao seu
curso besta, inofensivo, a paisagem mansa das águas, conforme Mirinha Vidente
havia anunciado.
Cyro de Mattos é escritor e poeta. Primeiro Doutor Honoris
Causa da Universidade Estadual de Santa Cruz. Membro efetivo da Academia de
Letras da Bahia, Pen Clube do Brasil, Academia de Letras de Ilhéus. Autor premiado no Brasil, Portugal, Itália e México.
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