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terça-feira, 23 de julho de 2019

MIRINHA VIDENTE – Cyro de Mattos



Mirinha Vidente
Cyro de Mattos


          Quando se estava em dúvida sobre algo que podia acontecer, de bom ou ruim, recorriam aos seus dons de vidente. Prenunciava o ano de boa safra, fartura para o pobre, benesse para o rico, saudável para o mediano. Evidenciava nas cartas ou no copo de água a desgraça próxima, surto de peste, incêndio com mortes, enchente pavorosa.

          Um rio pequeno, aquele, monótono, torto seu rumo, enganoso. Virava bicho medonho, levando casas ribeirinhas, invadindo o comércio, empanturrado de fúria, água volumosa descendo das cabeceiras, do céu cor de chumbo.

          Só voltava ao curso normal, depois que engolisse duas almas gêmeas, dois irmãos ou irmãs. Segundo Mirinha Vidente, ficassem todos prevenidos, seria a calamidade maior naquele ano, do transcurso normal desceria com alarde, assombroso na força das águas.
 
          Duas irmãs chamavam a atenção dos moradores da pequena cidade. Gêmeas, Marina e Mariana.  Rosto de uma, rosto da outra. Gosto de uma, gosto da outra. Só andavam juntas. O vestido da mesma cor, o mesmo tecido, o mesmo corte. Ninguém sabia distinguir uma da outra. Penteado de uma, penteado da outra.
 
          Os risos muito parecidos, confundiam-se até nos gestos mínimos a quem visse.

          Tinham o mesmo tamanho, a mesma cor rosada no rosto, o mesmo olhar nos olhos pequenos e brilhantes.  Quem era Marina? Quem era Mariana? Difícil saber. No educandário sempre tiraram as mesmas notas. Diplomaram-se em professora para orgulho dos pais.

          De súbito chovera muito nas cabeceiras do rio. Do céu caía tanta água parecendo que o mundo ia se acabar para aqueles que ali, na pequena cidade, vivessem. Gente chorando com as casas ribeirinhas levadas nos redemoinhos das águas. Comércio alagado, mercadorias das lojas ensopadas de água, a enxurrada aumentava. Carro boiando na correnteza, bicho morto, pau grande.

          Águas comeram parte do barranco no quintal da casa onde as irmãs gêmeas moravam. As irmãs gêmeas olhavam o espetáculo das águas.  Correnteza braba, levava tudo que pela frente encontrava.

          Primeiro o barranco rompeu, despencando com Mariana. A irmã Marina tentou salvá-la. Deu-lhe a mão, ao invés de puxar a irmã foi puxada. Foram encontradas dias depois, abraçadas, no Poço da Caixa D’Água. A cidade chorou muito no enterro das irmãs gêmeas como não acontecera antes. Cobriu-se de um manto escuro, até hoje encobre a cidade quando alguém relembra o triste acontecimento, um episódio doloroso na memória da cidade, de poucas ruas calçadas...
 
          Depois que levou as duas irmãs gêmeas, o rio voltou ao seu curso besta, inofensivo, a paisagem mansa das águas, conforme Mirinha Vidente havia anunciado.

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Cyro de Mattos é escritor e poeta. Primeiro Doutor Honoris Causa da Universidade Estadual de Santa Cruz. Membro efetivo da Academia de Letras da Bahia, Pen Clube do Brasil, Academia de Letras de Ilhéus. Autor premiado no Brasil, Portugal, Itália e México.

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