15 de abril de 2019
Péricles Capanema
Virou coringa a expressão “ponto fora da curva”, tem sido
empregada nas mais diferentes acepções. Umas lisonjeiras; outras, nem tanto,
envolvem censura, às vezes até carregam nota depreciativa. Vou usá-la como
censura. Boi do couro grosso, de há muito acostumado a bordoadas, mesmo as mais
inesperadas, posso bem levar mais umas hoje. Paciência. Segue a vida.
Vem da curva de Gauss (1777-1855), parece, sua origem. É uma
fórmula matemática utilizada na Estatística, que se exprime, graficamente, à
maneira de um sino. A imensa maioria dos eventos analisados estatisticamente
cai dentro do sino. Um ou outro fica fora da curva. É o dito ponto fora da
curva. Por analogia, aplica-se aos que se destacam, estão além do universo
considerado. Daí “fulano é ponto fora da curva em seu meio”. Sicrano, pelo
contrário, desceu muito, ficou “ponto fora da curva entre seus amigos de
infância”. E assim por diante. Multiplicam-se ao infinito as aplicações
analógicas da expressão com raiz na Estatística.
Vou falar do decreto 9.758 de 11 de abril de 2019, triste
ponto fora da curva — bagatela para os superficiais, golpe sério para quem
enxerga fundo. O diploma legal obriga os membros do Poder Executivo a um só
tratamento: senhor (claro, senhora, senhores, senhoras). Por óbvio, exclui da
esdrúxula imposição o Legislativo, o Judiciário, comunicações com autoridades
estrangeiras e outras exceções.
Vossa Excelência não pode mais, agora é só senhor. Vossa
Magnificência, excluído, basta o senhor. Vossa Senhoria, rifado. Doutor, o
simples e familiar doutor, banido, onde já se viu chamar alguém de doutor em
comunicação oficial? Já está muito bom o senhor, para que mais? Ilustre, fora.
Digno, expulso. Respeitável, idem. O tratamento nivelador vale para todos,
presidente, vice-presidente, ministros, reitores, poupa ninguém. Majestade e
alteza já haviam sido enxotadas faz mais de século. Ficou mais simples, é bom,
ruminam alguns. Caminhemos devagar, escapando das armadilhas simplificadoras;
nessa uniformizante e igualitária toada, acabaríamos despencando logo nos
buracos do cumpanhero e do camarada para todo mundo. Camarada
presidente.
Entro por atalho, um exemplo conhecido vai cortar caminho. À
vera, até envolto na legenda, tantas as versões sobre os diálogos, ainda que no
cerne concordantes. O protagonista é Talleyrand (1754-1838), o “príncipe dos
diplomatas”, causeur, brilhante presença de espírito, inteligência
superior. À mesa, em ambiente fidalgo, tratava os assuntos da França e da
Europa com rapidez, objetividade, leveza; eficácia. Sob as formas refinadas, um
auge de senso prático. Em jantares de convívio ameno, depois de cortar a carne,
um de seus recursos, com senso da medida honrava a cada conviva ao regalar um
pedaço. Com o pitéu, ia junto nas palavras, no tom e no gesto certos o
reconhecimento das superioridades devidas à idade, à condição social e ao
mérito. Postura sempre simples e natural; nunca postiça ou enfatuada. A um
eclesiástico destacado ou um príncipe: “Monseigneur, me daria a grande
honra de aceitar um pedaço?” A um duque: “Poderia ter a alegria de
lhe oferecer este pedaço?”. A um marquês: “Me daria a alegria de aceitar
este?” E assim ia, até o mais simples dos convivas.
Ambiente de século XIX, restos do Ancien Régime, Paris,
outros hábitos, sei bem. Resta uma constatação, sem gosto e cultivo do senso do
matizes, sem apreço às variadas fulgurações do espírito, inexiste civilização.
O esplendor das formas constituía ali expressão refinada da “unidade na
variedade” — a palavra universo vem daí. Busco em Isaac Newton: “A
variedade na unidade é a lei suprema do universo”. Variedades harmônicas. Não
agridamos inconsideradamente a variedade. Em resumo, o grande espetáculo de
cultura do salão de jantar de Talleyrand anos a fio, repetida com variações
sem-número de vezes, animou conversas, perenizou-se nas páginas das memórias do
tempo, foi degustada em biografias célebres. Chegou viva até nós com seu fulgor
de alta civilização. Formou personalidades.
Ao longo dos séculos admirações e imitações sensatas foram
nutridas por cenas como a acima descrita em duas pobres pinceladas.
Pedagógicas, alimentam o impulso da perfeição pessoal (e social), assim como um
exemplo de um santo nutre o desejo da ação virtuosa. E aqui repito: precisamos
buscar a simplicidade, mas fugir dos simplismos e simplificações. É raro uma
solução niveladora não padecer pelo menos de simplismo; com frequência,
empobrece o convívio; e, em decorrência incoercível, a própria personalidade.
Amplio. Valores do Brasil antigo levavam naturalmente a
distinguir pessoas e situações com apenas um gesto, uma palavra rápida. Faziam
parte do ambiente cultural que encantou muita gente de relevo que viveu por
aqui. Sempre me impressionou o comentário de Fernand Braudel, dos maiores
historiadores do século XX: “Foi no Brasil que me tornei inteligente. O
espetáculo que tive diante dos olhos era um tal espetáculo de história, um tal
espetáculo de gentileza social que eu compreendi a vida de outra maneira. Os
mais belos anos de minha vida, eu passei no Brasil”.
O que ele viu, espetáculo de gentileza social — de convívio
— que fez entender a vida de forma diversa. Para Braudel, o fundamental em um
historiador era conservar o coração da criança (maravilhar-se), surpreender-se
com os fatos. E olhar o passado como uma criança percebe as primeiras imagens.
Entre 1935 e 1937, floriu no Brasil o coração de criança do historiador,
aperfeiçoou antenas.
Corta. Vamos ser realistas, o Brasil já não está conseguindo
fazer inteligentes os homens potencialmente muito inteligentes. Porque está
morrendo a nossa forma própria de enxergar a realidade, sufocados os ambientes
familiares, onde ela florescia. Corremos risco iminente de já não termos o
olhar que nos distinguia.
E aqui volto ao decreto 9.758 de 11 de abril. Esse malencontreux texto,
para ser benévolo, é ponto fora da curva, pois vem de um governo que já editou
muitas medidas saneadoras — teve muita coisa dentro da curva. Nivelador,
simplificador, aproxima-nos de autômatos. Vira as costas para o Brasil que
cultivava matrizes de juízo e conduta, apreciava diversidades, harmonizava-as,
sabia estimular umas a fortalecer as outras. E com isso criava condições para
convívio enriquecedor de personalidades.
No mesmo pacote do decreto 9.758 veio o revogaço.
Sugestão: incluam o 9.758 no revogaço.
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