Numa voz doída, ela arrancava suspiros e lágrimas dos fiéis,
calados, rostos contritos, naquele trecho de rua em que a procissão parava.
Pai Salvador,
Misericordioso,
Toca no meu peito
O sofrimento teu.
Fadiga, sede, fome.
Cuspe, espinho, sangue.
Chicotada, prego
Madeira feita cruz,
Meu Pai, perdoai
Os pecados meus.
Naquele ano, em que caiu uma chuva rala durante a procissão,
usava as botinas novas que minha mãe presenteou-me no aniversário. A procissão
voltava pela avenida do comércio depois de percorrer algumas ruas próximas ao
centro da cidade. A imagem de Nosso Senhor Morto já ia entrar na igreja para
ser colocada no altar quando a beata Detinha teve uma crise de nervos, chegando
a desmaiar. O padre passou um pouco de água benta na testa da beata, rezou e
pediu que os fiéis cantassem com fervor. Os cantos entoados na pequena praça
repleta de gente acordaram a beata, que começou a chorar alto e ao mesmo tempo agradecer ao Jesus Salvador por
ter ali mesmo tirado dela os maus pensamentos e perdoado seus pecados.
No dia de procissão havia tanta gente na igreja e na praça
que uma agulha não cabia lá dentro nem no lado de fora. As botinas novas
apertavam os meus pés. Então pedi à minha mãe que me deixasse ir embora para
casa, não queria ficar para ouvir a fala do padre encerrando a procissão. “Os
calos estão doendo muito, não aguento mais”, disse aporrinhado, ameaçando
chorar. Ela ordenou baixinho no meu ouvido que ficasse comportado,
acrescentando que a procissão já estava chegando ao fim.
Preferi não obedecer minha mãe. Esperei que ela se
ajoelhasse com os demais fiéis na igreja para fazer a oração do
creio-em-deus-pai, de olhos fechados, para apressado tirar dos meus pés as
botinas. Em casa disse à minha mãe que tinha resolvido agir daquela maneira
porque não suportava mais as botinas apertadas queimando meus dedos. Tive que
tirá-las para evitar que acontecesse comigo uma situação pior do que a da beata
Detinha. Como ela, desmaiaria ali mesmo na igreja. Mas a água benta que o padre
passaria na minha testa, as orações e os cantos entoados com fervor pelos fiéis
pouco iriam adiantar para que eu não ficasse desmaiado durante muito tempo.
Claro que minha mãe compreendeu. Em vez de sermão, da sua
voz bondosa escutei que eu não me preocupasse. Não ia calçar mais aquelas
botinas apertadas. Mas uma vizinha da casa em frente, que sempre estava de
mal-estar com a vida, disse à minha mãe que não aprovava o meu procedimento,
observando que se fosse com um filho dela receberia um castigo. Achava que
menino mimado daquele jeito poderia não ser um homem de temperamento forte no
futuro.
*Cyro de Mattos é escritor, poeta e advogado aposentado.
Diplomado em capoeira regional pela Escola de Capoeira do Mestre Bimba, em
Salvador, 1960. Tem no prelo da Editora Mazza, de Belo Horizonte, o livro
“Poemas de Terreiro e Orixás”.
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