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terça-feira, 2 de abril de 2019

MAIS SEMANA SANTA - Cyro de Mattos


           
A tristeza estava nos ares por onde a procissão passava com o corpo de Nosso Senhor Morto deitado na cama, as pessoas sofrendo pelas pedras do caminho. Gente acompanhava a procissão descalça para pagar alguma promessa em razão da graça alcançada através da bondade do Cristo Salvador. Dona Olívia, a mulher do dono do hotel, vestida num comprido vestido roxo, que tocava os pés, os cabelos compridos caindo nas costas, fazia o papel de Maria Madalena. A matraca tocava, a procissão parava enquanto ela exibia o rosto do Cristo no sudário.

            Numa voz doída, ela arrancava suspiros e lágrimas dos fiéis, calados, rostos contritos, naquele trecho de rua em que a procissão parava.

             Pai Salvador,
            Misericordioso,
           Toca no meu peito
          O sofrimento teu.
         Fadiga, sede, fome.
        Cuspe, espinho, sangue.
       Chicotada, prego
      Madeira feita cruz,
     Meu Pai, perdoai
     Os pecados meus.

            Naquele ano, em que caiu uma chuva rala durante a procissão, usava as botinas novas que minha mãe presenteou-me no aniversário. A procissão voltava pela avenida do comércio depois de percorrer algumas ruas próximas ao centro da cidade. A imagem de Nosso Senhor Morto já ia entrar na igreja para ser colocada no altar quando a beata Detinha teve uma crise de nervos, chegando a desmaiar. O padre passou um pouco de água benta na testa da beata, rezou e pediu que os fiéis cantassem com fervor. Os cantos entoados na pequena praça repleta de gente acordaram a beata, que começou a chorar alto e ao mesmo tempo agradecer ao Jesus Salvador por ter ali mesmo tirado dela os maus pensamentos e perdoado seus pecados.

            No dia de procissão havia tanta gente na igreja e na praça que uma agulha não cabia lá dentro nem no lado de fora. As botinas novas apertavam os meus pés. Então pedi à minha mãe que me deixasse ir embora para casa, não queria ficar para ouvir a fala do padre encerrando a procissão. “Os calos estão doendo muito, não aguento mais”, disse aporrinhado, ameaçando chorar. Ela ordenou baixinho no meu ouvido que ficasse comportado, acrescentando que a procissão já estava chegando ao fim.

            Preferi não obedecer minha mãe. Esperei que ela se ajoelhasse com os demais fiéis na igreja para fazer a oração do creio-em-deus-pai, de olhos fechados, para apressado tirar dos meus pés as botinas. Em casa disse à minha mãe que tinha resolvido agir daquela maneira porque não suportava mais as botinas apertadas queimando meus dedos. Tive que tirá-las para evitar que acontecesse comigo uma situação pior do que a da beata Detinha. Como ela, desmaiaria ali mesmo na igreja. Mas a água benta que o padre passaria na minha testa, as orações e os cantos entoados com fervor pelos fiéis pouco iriam adiantar para que eu não ficasse desmaiado durante muito tempo.

            Claro que minha mãe compreendeu. Em vez de sermão, da sua voz bondosa escutei que eu não me preocupasse. Não ia calçar mais aquelas botinas apertadas. Mas uma vizinha da casa em frente, que sempre estava de mal-estar com a vida, disse à minha mãe que não aprovava o meu procedimento, observando que se fosse com um filho dela receberia um castigo. Achava que menino mimado daquele jeito poderia não ser um homem de temperamento forte no futuro.


*Cyro de Mattos é escritor, poeta e advogado aposentado. Diplomado em capoeira regional pela Escola de Capoeira do Mestre Bimba, em Salvador, 1960. Tem no prelo da Editora Mazza, de Belo Horizonte, o livro “Poemas de Terreiro e Orixás”.

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