19 de Janeiro de 2019
♦ Péricles Capanema
Durante longos períodos na Idade Média e, mesmo depois, o
Papa agiu repetidas vezes como árbitro em conflitos de nações e povos. Dava a
última palavra, acatada por imperadores, reis, outros dirigentes temporais. Não
era função ligada intrinsecamente ao múnus petrino, mas, entre outros fatores,
a enorme respeitabilidade do Soberano Pontífice o empurrava naturalmente, pela
força das coisas, para o centro da vida temporal europeia.
Tarefa edificadora, outros tempos. A laicização da esfera
civil limitou enormemente seu papel em tais matérias. A Santa Sé,
relativamente, poucas vezes agiu como árbitro de forma oficial nos últimos
tempos. Mas dessa longa e benéfica presença dos Papas em matérias temporais,
ficou o hábito de ouvir o Soberano Pontífice, cuja voz não fere apenas os
tímpanos dos católicos, mas de incontáveis pessoas interessadas em conhecer suas
tomadas de posição, por sua evidente relação com o destino dos povos.
Contudo, ainda relativamente recente, em nossa época,
tivemos eco importante da outrora grande relevância dos Vigários de Cristo na
resolução de disputas temporais. Em fins de 1978, a Argentina e o Chile
estiveram à beira de conflito armado por causa do Canal de Beagle, no sul do
continente; brigavam pela posse das ilhas Picton, Lennox e Nueva.
Fracassados os esforços diplomáticos, em 21 de dezembro,
tropas argentinas se puseram em marcha para ocupar as ilhas e, se necessário,
até partes do Chile continental. O 4º Batalhão de Infantaria da Marinha tinha
ordens para nelas desembarcar em 22 de dezembro. As consequências do conflito
militar entre Argentina e Chile, imprevisíveis, mas certamente repercutiriam
provavelmente por décadas em todas as Américas.
Basta alinhar o que hoje é admitido em suas linhas gerais. O
alto comando argentino previa aproximadamente 50 mil baixas nas três primeiras
semanas. O Equador entraria no lado da Argentina. O Peru e a Bolívia apoiariam
a Argentina. Os chilenos pretendiam atacar a usina nuclear de Atucha. Não se
sabe que posição tomaria o Brasil. A guerra com certeza deixaria sequelas
destruidoras, traria dilacerações dificilmente suturáveis na América do Sul.
Poucas horas antes do choque, talvez minutos, Argentina e
Chile aceitaram a mediação de João Paulo II, que enviou à região, como seu
representante, o cardeal Antonio Samoré. Tendo como pano de fundo a
respeitabilidade pontifícia, os dois países, depois de negociações difíceis,
chegaram a um acordo, ilhas para o Chile e controle marítimo da área para os
argentinos.
Em 29 de novembro de 1984 no Vaticano assinaram declaração
conjunta de paz e amizade. Hoje, sem sequelas, são duas potências amigas. Ação
papal edificadora ou edificante, se quisermos. Atitudes que constroem.
Viro a página, mas permaneço na América do Sul (e Central) e
também em assuntos temporais. Na mensagem de Natal de 2018 (25 de dezembro), o
Papa Francisco afirmou “que este tempo de bênção permita à Venezuela encontrar
de novo a concórdia e que todos os membros da sociedade trabalhem
fraternalmente pelo desenvolvimento do país, ajudando os setores débeis da
sociedade”. Sobre a Nicarágua disse: “diante do Menino Jesus os habitantes da
Nicarágua se redescubram irmãos para que não prevaleçam divisões e discórdias,
mas que todos se esforcem em favorecer a reconciliação e em construir juntos o
futuro do país”. Só.
Em 5 de janeiro, 20 ex-presidentes e chefes de governo
latino-americanos, entre os quais Oscar Arias, Prêmio Nobel da Paz (1987),
ex-presidente da Costa Rica, Eduardo Frei, ex-presidente do Chile, Vicente Fox
e Felipe Calderón, ex-presidentes do México, César Gaviria, Andrés Pastrana e
Álvaro Uribe, ex-presidentes da Colômbia, Fernando de la Rua, ex-presidente da
Argentina, divulgaram severa carta que haviam enviado ao Papa Francisco. De
forma serena e respeitosa se confessam escandalizados com a atitude papal por
favorecer as ditaduras venezuelana e nicaraguense, assassinas da liberdade e
promotoras da miséria popular. Diz a missiva:
“Conhecemos sua preocupação pelo sofrimento que hoje
padecem, sem distinções, todos os venezuelanos e, agora, os nicaraguenses. Os
primeiros são vítimas da opressão de uma narcoditadura militarizada, que pisa
de maneira sistemática os direitos a vida, liberdade, integridade pessoal e, a
mais, como consequência de suas políticas públicas deliberadas e de uma
deslavada corrupção que escandaliza mundialmente, submete-os a fome
generalizada e falta de remédios.
Os segundos, em meados do ano, foram vítimas de onda de
repressão com quase 300 mortos e 2.500 feridos. De modo que nos preocupa o
chamado de Vossa Santidade à concórdia, já que no contexto atual pode
entender-se sua fala como um pedido aos povos, que são vítimas, para que entrem
em acordo com seus algozes; no particular, o caso venezuelano, com um governo
que causou 3.000.000 de refugiados, numa diáspora que a ONU julga chegará a 5,4
milhões de pessoas em 2019”.
Lembra a seguir o texto, com base em João XXIII, que os que
oprimem não contribuem à unidade.
A censura dos 20 presidentes e chefes de governo é
gravíssima: para eles, o Papa Francisco está equiparando vítima e algoz,
opressores e oprimidos. Com isso favorece o opressor e o algoz. É acusação de
conduta escandalosa, demolidora.
Poucos dias depois da carta, em 8 de janeiro, documento
oficial da Conferência Episcopal Venezuelana declarou ilegítimo o novo governo
Maduro que se iniciaria no dia 10 de janeiro. Afirma o texto:
“É um pecado que clama ao céu querer manter a toda custa o
poder e pretender prolongar o fracasso e ineficiência dessas últimas décadas. É
moralmente inaceitável. A convocação [da eleição presidencial] foi ilegítima
como o é a Assembleia Nacional Constituinte imposta pelo Poder Executivo.
Portanto a pretensão de iniciar um novo período presidencial em 10 de janeiro
de 2019 é ilegítima”. E reconheceu a Assembleia Nacional como único poder
legítimo: “A Assembleia Nacional, eleita com o voto livre e democrático
dos venezuelanos, atualmente é o único órgão do poder público com legitimidade”.
No dia 10 de janeiro tomou posse o novo governo, festejado
ruidosamente por representantes da China, Rússia, Cuba, Irã, Turquia, Vietnam,
Coreia do Norte, (Gleisi Hoffmann, presidente do PT, estava lá, o PC do B
também mandou representante, havia ainda outros enviados da extrema esquerda
brasileira), — ausentes a maior parte dos países da América do Sul, União
Europeia, OEA, Estados Unidos. No meio daquela “societas sceleris” (a expressão
brota incoercível, já que ali se reuniam para promover um governo opressor),
com luz soturna brilhava monsenhor George Koovakod, encarregado de negócios da
Santa Sé, enviado especial, a quem Nicolás Maduro agradeceu a presença no
início do discurso. Vem natural à mente a denúncia de Paulo VI de 7 de dezembro
de 1968 do “misterioso processo de autodemolição” que se havia
instalado na Igreja Católica.
Edificação e escândalo. As intervenções papais nos assuntos
temporais edificavam, isto é, construíam. Nossa época tem deixado claro que,
para escândalo dos fiéis, podem também demolir. Paro por aqui, as palavras
faltam; morrem na boca, sufocadas pelo respeito filial. Deus tenha pena de nós.
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