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segunda-feira, 5 de março de 2018

PACIFICAÇÃO - Rosiska Darcy de Oliveira


Pacificação


A intervenção das Forcas Armadas na segurança do Rio, bem ou mal recebida, é um fato consumado.

É muito possível que a decisão sobre a intervenção tenha atendido aos baixos interesses políticos de um presidente em agonia e seus acólitos contumazes que, mais que tudo, temem a prisão. A ninguém surpreenderia uma manobra fria e manipuladora urdida nos porões do Jaburu.

Muitas das reações contrárias à intervenção obedecem à mesma lógica do interesse político, perguntando quem ganha e quem perde em seus cálculos eleitoreiros. Lula chamou a atenção para as oblíquas pretensões eleitorais do presidente. Bolsonaro bravateou que ninguém roubará sua bandeira, como se a segurança tivesse dono. O interesse político há muito se dissociou do interesse público. A população só é visível quando as pesquisas de opinião traduzem as tragédias em prováveis votos futuros.

Do ponto de vista da população desamparada por serviços públicos em frangalhos, sofrendo na carne a violência, a questão é saber se este fato consumado será o ponto de inflexão, o freio no descontrole da segurança pública sensível no aumento da violência, territórios dominados pelo tráfico e paralisia da polícia minada pela corrupção. Ou uma bala de prata que, errando o alvo, provoque o efeito contrário, a aceleração de todos esses processos nefastos.

Estamos, portanto, diante de uma situação de altíssimo risco em que não cabem precipitações que ponham tudo a perder. Inteligência, perseverança, bom senso e capacidade de escuta serão necessários aos responsáveis da intervenção.

Se a intervenção na segurança fracassar, uma sociedade convivendo com a barbárie no seu cotidiano, tomada pela exasperação, poderia recorrer a uma candidatura truculenta que aumentaria o caos, levando de cambulhada direitos e liberdades.

Há uma aposta possível na capacidade operacional deste Exército brasileiro que, nas palavras do fundador do Viva Rio, Rubem César Fernandes, que trabalhou com os militares na bem-sucedida missão de paz no Haiti, se reinventa como força de estabilização e de pacificação. Pacificação é o que se espera das Forças Armadas no Rio de Janeiro.

A intervenção na segurança pública tem motivado em pessoas desesperadas com a espiral da violência uma retórica guerreira.
Reação explicável por um imenso cansaço, pelo desgaste das esperanças e pela confessa incapacidade do governo do estado de defender a população contra o crime organizado, encastelado em territórios ocupados, e contra o crime desorganizado que se espalha, epidêmico, em um ambiente propício de desordem e impunidade. E pelo medo com boas razões partilhado por toda a população. Essa retórica guerreira, no entanto, seria como apagar um incêndio com gasolina. O desespero, ainda que compreensível, é péssimo conselheiro.

As Forças Armadas estão assumindo uma grave responsabilidade. Se a intervenção na segurança pública for, de fato, um impulso na reconstrução do Rio, a dimensão policial e militar precisará ser completada por um leque muito mais amplo de ações sociais, como há anos vem sendo dito e redito por todos que se debruçam seriamente sobre o desafio da segurança.

Escolas, creches, postos de saúde, trens e ônibus dependem para funcionar da garantia da ordem pública. No caos em que estamos vivendo, restabelecer a ordem pública, reduzir a violência e estancar a corrupção é o começo,o meio e o fim do processo de pacificação.

A atitude da população do Rio não pode ser a de vítima inerte ou espectadora atenta. Sua participação não atenderá a uma receita que alguém lhe dê como tarefa. Cabe a ela mesma a autoria de suas iniciativas.

A expectativa positiva da maioria da população coexiste com a desconfiança, em muitos, de que a legítima aspiração à paz seja mais uma vez frustrada. Os fatos falarão por si. A confiança se constrói no tempo. O monitoramento das operações de pacificação é essencial na construção da confiança.

Este é o papel das lideranças comunitárias, da mídia e de todos aqueles que, na democracia, têm o direito de opinar sobre o que afeta suas vidas. Quanto maior a interação entre os militares e a população, melhor, cabendo à Justiça o exercício de sua função de balizamento dos limites da lei, como ocorreu no debate sobre a legalidade do mandado coletivo de busca e apreensão.

O futuro é incerto, sabemos, mas é sempre pelas brechas da incerteza que a esperança se infiltra. O Rio de Janeiro é resistente. Agora, mais do que resistir, é preciso pacificar. Reconhecer a queda, não desanimar e dar a volta por cima.

O Globo, 24/02/2018

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Rosiska Darcy de Oliveira - Sexta ocupante da cadeira 10 da ABL, eleita em 11 de abril de 2013. É escritora e ensaísta. Sua obra literária exprime uma trajetória de vida. Foi recebida em 14 de junho de 2013 pelo Acadêmico Eduardo Portella, na sucessão do Acadêmico Lêdo Ivo, falecido em 23 de dezembro de 2012.


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