Estudos mostram a relação entre introversão e criatividade, que é importante para a identidade da Letônia Imagem: Gunita Metlane/Eyeem/Getty Images
Christine Ro
da BBC Travel
31/08/2018 08h34
Um livro de histórias em quadrinhos mostra um morador da
Letônia, no Leste
Europeu, abrindo um
raro sorriso ao perceber que o clima daquele dia está "perfeito". Ou
seja, nevando muito. Assim, ele não terá o desprazer de encontrar ninguém na
rua. Como ele mesmo diz: "Temperatura abaixo de zero = risco abaixo da
média de um encontro ao acaso".
O livro em quadrinhos foi apresentado pela organização Latvian Literature para
promover a literatura da Letônia na Feira do Livro de Londres, realizada em
abril. Junto à publicação, foi lançada a campanha #IAMINTROVERT ("Sou
introvertido"), que celebra - e carinhosamente faz piada de - sua
população reservada. "Nossa campanha não tem nenhum exagero. Na realidade
é até pior", comenta a escritora e publicitária letã Anete Konste, que
idealizou o projeto.
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Entendi o que ela queria dizer assim que cheguei à república
báltica. Meu primeiro dia andando por Riga, capital da Letônia, foi diferente
de qualquer outra capital europeia. Foi mais sereno. O sol brilhava enquanto eu
me dirigia ao Parque Kronvalda, e às vezes parecia que o único barulho vinha de
carros passando ou turistas conversando.
Quando enfim vi letões caminhando juntos, eles eram em geral
silenciosos e mantinham um bom espaço entre eles. Foi aí que percebi que não
era um povo dos mais sociáveis.
Campanha da organização Literatura da Letônia #IAMINTROVERT
carinhosamente brinca com a tendência introvertida de seu povo Imagem: Toms
Harjo/Latvian Literature
Confirmei essa sensação na viagem de uma hora de trem entre
Riga e Silguda. Enquanto seguíamos rumo ao nordeste por uma densa floresta de
pinheiros, eu e meus amigos brincávamos de adivinhar o nome de filmes.
Começávamos a nos animar e a gritar as respostas quando notamos que éramos os
únicos falando no trem.
Mas por que os letões são tão reservados, pelo menos à
primeira vista?
Não há uma resposta simples, mas estudos mostram uma relação
entre a criatividade e uma preferência pela solidão. Konste percebe isso em sua
área de trabalho. Ela acredita até que a introversão é mais forte no meio
criativo, como entre escritores, artistas e arquitetos.
E psicólogos letões sugerem que a criatividade é tão
importante para a identidade do país que se tornou uma prioridade dos planos
educacional e econômico de governo.
De fato, segundo a Comissão Europeia, a Letônia é o país
europeu com uma das maiores proporções de trabalhadores do campo criativo.
Bairro Solidão
Letões geralmente usam referências autodepreciativas quando
fazem alusão a essa tendência à introversão - que evita o excesso de estímulos
e prefere a solidão, o silêncio e a reflexão.
Exemplos não faltam e vão desde o nome dado a um bairro de
Riga – Zolitūde (Solidão) - a vários hábitos comuns, como o de não sorrir
para estranhos.
Guia turístico de Riga, Philip Birzulis mudou-se para a
Letônia em 1994 - e se surpreendeu ao notar que os letões cruzavam a rua para
evitar o contato com outra pessoa. "Percebi que as pessoas deliberadamente
evitavam umas às outras e mantinham entre cinco e dez metros de distância",
lembra-se.
Até mesmo o Festival de Dança e Música da Letônia, uma
enorme celebração que reúne mais de dez mil cantores de todas as partes do
país, tem traços dessa introversão: ele ocorre apenas a cada cinco anos.
Birzulis brinca que o esforço seria demasiado se ele fosse
mais frequente e diz que esse tipo de "contato íntimo" é exceção, e
não a regra na cultura do país.
Konste dá outro exemplo: é muito comum o letão esperar o
vizinho sair do saguão do prédio para "não ter que cumprimentar um
estranho", diz ela.
Se os letões evitam puxar conversa, isso não significa,
necessariamente, que sejam frios. Afinal, alguns dos passageiros silenciosos do
trem rapidamente nos ofereceram ajuda quando nos mostramos perdidos com o mapa.
Como explica Justīne Vernera, tradutora e jornalista
freelancer da cidade medieval de Cēsis, no nordeste da Letônia: "No país,
não manter uma conversa o tempo todo não é rude ou desconfortável. Falar o
tempo todo que é mais visto como arrogância do que ficar em silêncio às
vezes".
Mas se esse comportamento reservado pode parecer difícil
para quem chega, alguns letões logo apontam que outros países também têm
predisposição para a introversão.
Birzulis menciona o exemplo dos suecos, enquanto Konste cita
os filandeses. E a arquiteta Evelina Ozola, cofundadora do site Fine Young
Urbanists, comenta: "No quesito introversão, não somos tão diferentes dos
estonianos".
Também é importante lembrar que a população letã não é
homogênea.
No país, há russos e outros grupos minoritários, com seus
vários níveis de integração linguística e cultural. Também há diferenças
geracionais daqueles que cresceram no período de forte vigilância e estilo de
vida coletivo da União Soviética.
A geração mais jovem foi criada sob ares mais cosmopolitas e
um sistema capitalista. Por isso, é impossível definir um traço cultural único
e universal - ainda que a valorização do espaço privado ultrapasse as gerações.
Uma pista para explicar a introversão dos letões pode estar
na geografia do país: baixa densidade populacional e florestas densas. Ozola
explica que os letões "simplesmente não estão acostumados a ver muitas
pessoas ao redor. É bastante incomum ter de esperar por uma mesa no restaurante
ou se sentar muito perto de outra pessoa no jantar. Há espaço suficiente no
país para manter a distância".
Até os moradores urbanos da Letônia têm forte apreço pela
natureza e visitam regularmente a zona rural.
É particularmente romantizada na cultura letã a imagem da casa
na fazenda: uma construção isolada na área rural, autossuficiente e tipicamente
de madeira. Ela faz inclusive parte do Cânone Cultural da Letônia - uma lista
de 99 itens e pessoas consideradas muito importantes para o país.
Na realidade, esse tipo de propriedade praticamente
desapareceu no século 20 por conta da imposição do estilo coletivista
soviético. "Entre 1948 e 1950, a proporção de habitações rurais caiu de
89,9% para 3,5% e, assim, os padrões tradicionais de vida foram praticamente
erradicados ", comenta Ozola.
Mesmo assim, o apego por essa imagem persiste.
Vernera ressalta que a autossuficiência faz parte da
identidade letã. "Ainda temos essa mentalidade de viver isoladamente: não
nos encontramos em cafés durante o dia, não abordamos pessoas na ruas",
diz.
Hoje, apesar de ser um dos países menos habitados da Europa,
quase dois terços dos moradores da Letônia vivem em apartamentos (relativamente
pequenos). Esta é uma das maiores proporções da Europa, de acordo com
estatísticas do Eurostat.
"A Letônia é povoada de maneira desigual, com a maioria
das pessoas vivendo perto umas das outras nos centros urbanos", diz Ozola.
Uma pesquisa da empresa imobiliária Ektornet, entretanto,
aponta que mais de dois terços dos letões gostariam de morar em casas isoladas.
Ozola especula que essa desconexão pode explicar em parte por que o espaço
privado é tão importante para os letões.
Eles precisam, contudo, ter cuidado com o que desejam.
De acordo com o site de notícias Politico, a população da
Letônia está diminuindo rapidamente devido à migração para o exterior e
registra um dos declínios populacionais mais intensos do mundo.
Assim, a nação que adora espaço está conseguindo exatamente
isso.
Psicólogos têm investigado como os traços psicológicos,
incluindo a introversão, afetam as atitudes dos letões em relação aos
refugiados, já que a migração pode ser uma ferramenta necessária para conter a
perda populacional.
Aos visitantes e recém-chegados que se surpreendem com a
característica, Vernera sugere: "Diria a qualquer estrangeiro que não
tenha medo desse silêncio inicial. Quando o estrangeiro conhece um letão e
passa um tempo com ele, percebe que somos realmente amigáveis. Não somos uma
nação muito teatral, somos geralmente bastante honestos. Não vamos dizer a
todos que gostamos deles - então se um letão diz isso, é realmente
verdade".
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