Resenha: Bolerus, de Vanderley Sampaio
(*) Marcos Fidêncio
Não há como não estabelecer uma relação entre “Bolero” e
“Bolerus”. O primeiro é um gênero musical nascido na Europa e depois trazido
para a América, em especial para Cuba, onde se misturou com ritmos africanos.
Já o segundo é um besouro. Isso mesmo. Um inseto da ordem dos coleópteros. Qual
seria então a provocação do autor com tal título? Fazer o nosso pensamento
dançar? Colocar um inseto zunindo na nossa cabeça para remexer os neurônios,
rearranjando nossas viciadas sinapses, tão acostumadas ao óbvio? Façamos uma
síntese: um besouro atrevido, às vezes irritante e desafiador como o grilo
falante de Disney ou a mosca da sopa de Raul, que nos tira da nossa cômoda
posição e nos faz encontrar novas formas de fazer o pensamento dançar. Talvez
seja isso. E não adianta dedetizar!Também é inútil dormir, que a dor não passa.
Mas vamos ao livro. Em primeiro lugar, julgo necessário
estabelecer aqui uma definição acerca do estilo de cada escritor. Trata-se do
modo com que as palavras são escolhidas e dispostas na prosa ou na poesia. É
como se o autor tocasse uma música e as palavras dançassem de acordo com o
ritmo dos sons produzidos por ele. Às vezes uma dança lenta, às vezes
acelerada, grave ou aguda, harmoniosa... E, em alguns momentos, ele pode até
emitir acordes dissonantes pelos cinco mil alto-falantes das páginas da sua
obra. Senhoras e senhores, ele também pode pôr os olhos grandes sobre o mundo
para cantá-lo do seu próprio modo aos leitores!
Na obra "Bolerus", primeira reunião de poemas de
Vanderley Sampaio, a trilha sonora é fortemente marcada pelo concretismo. Na
maioria dos poemas, com destaque para "Pingos nos is" e "Um
espinho", isso fica muito claro e pode ser facilmente comprovado na
própria diagramação dos versos. Sampaio se preocupa com a disposição espacial
das palavras em alinhamentos geométricos, buscando com extrema competência uma
forma para veicular a expressão poética, concentrando suas preocupações na
materialidade da palavra, nos seus aspectos sonoro e visual, tal qual fizeram
Haroldo de Campos, Augusto de Campos e Décio Pignatari, no final dos anos 50,
mandando às favas as métricas e rimas tradicionais. Afinal, nem sempre a
adequação tem que ser perfeita ao modo de Bilac. Como já disse Caetano, nem
tudo é métrica e rima, às vezes é dor! A dor de romper, como faz Sampaio.
Por isso, "Bolerus" tem um leve cheiro de
Tropicalismo na medida em que flexibiliza versos, aproveita espaços em branco
como parte da significação, transforma as palavras em objetos, explorando a
sonoridade e a visualidade. Mas também é deliciosamente contaminado por um sutil
sabor de poesia-práxis ao se preocupar com os aspectos semânticos das palavras,
fazendo uso de neologismos, decompondo termos, abrindo a possibilidade de
múltiplas leituras, levando em conta a capacidade própria de interpretação de
cada leitor.
A predominância de um estilo em que conteúdo e forma se
enamoram e brigam ao mesmo tempo em cada um dos versos, nos leva a compreender
o porquê da escolha de tal canto. Possivelmente, as influências dos estudos
semióticos do autor, formado em jornalismo, são sentidas aí. As leituras de
Peirce, Pignatari, Umberto Eco e outros grandes pensadores, durante seu período
na Unesp (Universidade Estadual Paulista), onde ele concluiu a sua primeira
graduação, dão o tom e a partitura para que o poeta torne seus instrumentos
afinadíssimos, o papel e a caneta, notadamente em noites solitárias e
inquietas, como ele mesmo revela em alguns textos – “Escuridão”, “Sozinho”, “A
noite que traiu as águas” e “Carta à Madrugada”, por exemplo – e embale as
palavras com tal maestria.
No poema "Semântica", porém, Sampaio dá mostras de
que nem só de “gestalt” vivem seus versos ao nos mandar engolir, tirar, jogar
ou privar a palavra se não for semântica, ou seja, caso ela não esteja
carregada de significado. A psicologia das formas, também apreendida pelo autor
em seus estudos unespianos, sugere ao leitor não se ater apenas ao particular
da palavra-objeto, mas também ao todo, à imagem produzida, que muitas vezes
redunda em figuras geométricas reveladoras. Por outro lado, cada palavra particular
tem o seu valor e não pode ser completamente desprezada.
Prova disso está na página seguinte, em "Termo",
poema em que ele demonstra que as palavras não devem ser salpicadas ao modo de
um saleiro, sem razão, sem destino ou dose certa. Cada termo precisa ser
próprio. "E se lhe parecer impróprio, talvez não tenha sido minucioso o
suficiente". Ainda bem que, segundo o poeta, generoso com todos os que se
arriscam a cantar sem muito critério, "a insuficiência do termo nem sempre
prejudica a noite".
Com relação às indagações acerca da minha análise, como
amigo e admirador do autor, eu posso garantir que tive o cuidado de tecê-la com
o necessário distanciamento. Meus estudos de sociologia neste momento evocam
Bordieu: “os circuitos de consagração social serão tanto mais eficazes quanto
maior a distância social do objeto consagrado”. Consagro o trabalho de Sampaio
pela qualidade, pelo prazer da leitura, pelo compromisso com a seriedade e
porque conheço sua trajetória poética, sempre constante e paralela ao oficio de
jornalista, que ele igualmente desempenhou com brilhantismo. A poesia acompanha
o autor desde a mais tenra idade e tenho certeza de que esse livro é apenas o
primeiro de muitos que ainda virão, afinal, eu sei de uma colônia de bolerus que
ainda não voaram para as primeiras páginas. Por enquanto, são apenas ninfas em
crescimento... Ou, quem sabe, já estão zunindo na cabeça de um certo poeta.
(*) Marcos Fidêncio é jornalista formado pela Unesp (câmpus
de Bauru/SP). Também cursou Ciências Sociais na Unesp (câmpus de Marília/SP) e
se especializou em Marketing na Univem (Marília/SP).
Sinopse do livro
Bolerus é um termo instigante para dar nome a um livro que
nos sugere uma leitura sem plano de voo definido, em que podemos assistir à dança
dos versos construindo imagens, cadências e zumbidos. Nesses poemas e outros
delírios líricos de Vanderley Sampaio, somos confrontados com nossos devaneios
e temores mais cotidianos ao mesmo passo em que desejamos conhecer o segredo do
Universo. O incômodo e inusitado besouro cascudo, que pousa sobre nossas
cabeças nas noites quentes e inquietantes, esconde também asas leves e frágeis,
que enternecem nossa fúria existencial. E assim, pareando questionamento e
desejo, confusão e silêncio, ludicidade e solidão, somos todos convidados a
surtar de poesia e a dançar com os insetos barulhentos que sobejam nossos mais
profundos pensamentos. (Rose Almeida, bacharel em Letras pela USP e poeta no
blog Absurtos).
Sobre o autor
Vanderley Sampaio nasceu em Garça (SP), no ano de 1972.
Começou a escrever poesia na adolescência, quando também mergulhou no teatro
como ator amador. Jurando que iria voltar, "pediu um tempo" às artes
cênicas, para cursar Jornalismo na Unesp, em Bauru (SP). Descumpriu sua
promessa e seguiu a vida sem palcos, atuando como jornalista por nove anos e
depois como servidor público. Mudou-se para São Paulo (SP) e formou-se em
Direito pela USP. Mas a poesia sempre se manteve presente em sua vida. Alguns
de seus poemas foram publicados em jornais, sites e nas redes sociais,
especialmente no blog Absurtos.
Ficha Técnica
Título: Bolerus
Autor: Vanderley Sampaio
Editora: Scortecci Editora
Edição: 1ª
ISBN: 978-85-366-5355-6
Ano: 2017
Formato: 14 x 21 cm - 120 páginas
Gênero: Poesia brasileira
Preço de capa: R$ 35,00
Faixa etária: livre
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