Por Edônio Alves
Desta feita, mais uma vez amparado pela relação literatura e
futebol, vamos destrinçar aqui a história de uma grande homenagem, tecida pelas
malhas da ficção. O autor deste conto de futebol é Cyro de Matos, um experiente
escritor que tem no jogo de bola aos pés uma das chaves de sua literatura
abrangente e multifacetada. A análise que fizemos do seu texto, abaixo, visa
tão somente apresentar ao apreciador deste blog (porque uma análise literária
mais abrangente não caberia nesse espaço) a perícia que alguns escritores do
tema têm ao jogar com a palavra como se bola elas fossem. Boa leitura!
***
O goleiro Leleta
Esta é uma narrativa simplória sobre futebol, o que não quer
dizer desprovida de tom dramático e certo lirismo às vezes bucólico, às vezes
elegíaco, que derrama seus efeitos sobre o leitor. O motivo do texto é contar
uma situação humana particular vivida por entre um clima que mistura festa e
alegria com pesar e tristeza. E em meio a tudo isso, o flagrar-se a
universalidade do futebol enquanto motivo de sociabilidade humana presente nas
mais diferentes culturas e nos mais distantes e longínquos rincões do mundo.
O bucolismo do texto é responsável por apresentar ao leitor
essa faceta ubíqua da facilidade do jogo de bola em servir de fator de
congraçamento universal entre os homens estejam onde eles estiverem. Trinta
blocos-parágrafos de texto, quem sabe figurando os trinta anos de existência do
Expressinho de Burburinho do Paraíso, clube de um lugarejo cerca de vinte
quilômetros perto de Rio Claro, cidade onde se desenrola a história, são usados
pelo narrador para contar um dia na sua vida e na vida de Leleta, o goleiro do
time em apreço, que ao evitar um gol defendendo um pênalti em favor do
adversário, dá o primeiro título ao clube fundado pelo seu pai, logo no dia em
que ele morreu.
Depois de apresentar o lócus dos maiores atrativos
da gente pacata dos dois lugarejos em que se desenrola a história, nos dois
blocos-textos que seguem:
“Em Rio Claro existe uma praça com jardim. A bandinha toca
valsas, choros e marchas no coreto, aos domingos pela manhã. O cinema foi
instalado no salão atrás da feirinha. O padroeiro da cidade é Santo Antônio,
sua pequena igreja foi construída numa colina e é avistada de qualquer parte da
cidade. Os fiéis chegam até à igreja depois de subirem uma escadaria com muitos
degraus”.
***
“Burburinho do Paraíso (…) é bastante falado por causa da
feira que funciona na pracinha onde o trem faz uma parada antes de seguir para
o fim da linha, nas imediações do vilarejo de Serra Grande. O movimento é
intenso em Burburinho do Paraíso aos sábados. A feira tem tudo que se possa
imaginar. (…) Os moradores de Burburinho do Paraíso dizem que ali é que é lugar
de viver. Ora essa, é um lugar mais bonito que Rio Claro. Nem se pode comparar”
-,
o narrador desce propriamente às coisas do futebol sugerindo
ligeiramente o clima de rivalidade entre as duas localidades. É esse clima que
vai servindo de pano de fundo para se descortinar, através de uma prosa
escorreita e leve, emocionalmente envolvente e psicologicamente empatizante, o
dia triste de Leleta, vivido na mais esfuziante alegria, com a conquista do
título de campeão pelo clube fundado pelo seu pai e no qual era ídolo da torcida.
“Quando se discute futebol em Rio Claro, na praça ou em
outro lugar, o torcedor do São José Futebol Clube, sem esconder certo orgulho
na voz, diz que o seu time é o mais querido na cidade. É o que tem mais torcida
e mais títulos de campeão, entre os filiados à Liga Amadora de Futebol de Rio
Claro”.
Todavia, há que se registrar, é precisamente esse contraste
de uma cidade maior com um time melhor que prepara e potencializa, ao nível da
narrativa, o impacto dramático do título de campeão, conseguido pelo
Expressinho de Burburinho do Paraíso e vivido por Leleta, justamente no dia em
que este perde seu pai:
“Quem esteve com o goleiro Leleta antes de começar o jogo
ficou admirado de sua passiva tristeza. Ele explicou que queria jogar aquela
partida de qualquer maneira porque nada mais adiantava fazer. ´(…) Essa é uma
hora que chega pra todos nós`, observou, com seu jeito simples. Mas não ia ser
um acontecimento difícil daquele que ia tirar a sua tranquilidade e impedir que
defendesse as cores do Expressinho de Burburinho do Paraíso”.
Consta, como se sabe, que o jogo houve e que o Expressinho
de Burburinho do Paraíso foi campeão sobre o São José Futebol Clube, para a
alegria e a tristeza do seu goleiro Leleta. E consta também que é típico do
futebol o assentar-se sobre certos paradoxos de fundação, como o de separar
para unir, o de perder pra ganhar, por exemplo; e aqui, o de sorrir para
chorar, como conta Cyro de Matos nesta narrativa sob este aspecto bastante
exemplar.
“Tudo era só festa na arquibancada e na geral. A torcida do
Expressinho de Burburinho do Paraíso vibrava e cantava. Torcedores
abraçavam-se. No gramado, um menino, que tinha Leleta como seu maior ídolo e
depois viria a escrever esta história, viu quando o goleiro pegou a bola com as
mãos sujas e aninhou-a no peito, como se estivesse tentando abafar uma dor que
vinha pulsando dentro dele. (…) Geralmente, o goleiro atirava a bola ou sua
camisa para o velho Neco no meio dos torcedores, onde sempre gostava de ficar,
quando o Expressinho de Burburinho do Paraíso ganhava uma partida importante”.
Esta partida era particularmente importante, mas este não é
o fim de tudo porque ainda consta que, então, o goleiro Leleta chorou muito
só – muito só -, debaixo do gol.
PARA SABER MAIS:
O conto O goleiro Leleta, analisado acima, integra
a coletânea de história curtas organizada pelo autor, intitulada Contos
brasileiros de futebol, publicada pela editora LGE, de Brasília, em 2005, e o
livro O Goleiro Leleta e Outras Fascinantes Histórias de Futebol, Prêmio Adolfo
Aizen da União Brasileira de Escritores, Rio de Janeiro, Editora Saraiva, São Paulo, 2009.
https://historiadoesporte.wordpress.com/2013/10/28/de-pai-para-filho-o-goleiro-leleta-e-sua-historia
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