Senhora do amanhecer
O vento em Delfos zunia e eu pensava como é antigo e aflito
o desejo de adivinhar o futuro. Deve ter sido esse barulho do vento que parecia
uma voz contando ao Oráculo o que ninguém ainda sabia que levava os poderosos
de então a buscar conselho de quem podia prever o amanhã. Tantos erros, tantas
guerras, quem sabe levadas pelo errático conselho dos ventos. Fiz essas
anotações no meu diário de bordo na primeira viagem que fiz à Grécia.
O desvalimento humano, a angústia diante da incerteza
atravessaram os séculos, tão doloridos que, em todos os cantos da terra, uma
bola de cristal ou uma simples vidente de subúrbio trazem um parco alívio a
quem se pergunta o que vem por aí.
Diante do absurdo da morte há até mesmo quem
aceite a promessa da vida eterna.
O que será de nós, questão fatal nesse limiar do Ano Novo,
perguntam-se os brasileiros, jogando flores brancas ao capricho das ondas,
esperando uma resposta amiga da Rainha do Mar.
A incerteza fez-se a regra do mundo, o princípio que rege
todas as coisas e conviver com ela é o verdadeiro purgatório contemporâneo, sem
que nenhum céu mais adiante seja de fato garantido, abandonados que somos ao
jogo incerto do acaso e da necessidade. O destino se cumpre na medida em que se
escreve, afirma um dos meus autores preferidos, o prêmio Nobel de medicina
Jacques Monod.
O futuro não é uma história pronta que um vidente vai buscar
em algum lugar secreto ou que o vento sussurra. O futuro não está em lugar
nenhum, ele não existe senão como expectativa presente.
O futuro não está escrito senão na ilusão de jogadores que
multiplicam apostas, ele é uma página em branco onde um autor imaginativo pode,
a qualquer momento, escrever o improvável.
O jogo mais desafiante e paradoxal é o calculo das
improbabilidades. Nada nos resta pois senão, a cada dia, fazer escolhas
assumindo a autoria de nossos destinos. Não há que temer as encruzilhadas de um
labirinto. Elas não são a certeza de um beco sem saída, são a oportunidade de
fazer a boa escolha.
É pelas frestas da incerteza que se infiltra a esperança. A
esperança não é um sentimento abstrato, uma prece passiva a um Deus silencioso
e opaco. Se fosse, seria paralisante. Tampouco tem a ver com otimismo ou
pessimismo. Estes estão mais próximos das certezas, do sim ou do não.
A esperança habita a terra de ninguém da incerteza onde o
improvável não está excluído. A esperança tem vida própria e nos expulsa das
cavidades da memória onde se escondem fundadas decepções. É ela que, quando um cansaço imenso busca o testemunho das desilusões, vira as costas e anuncia
que viaja nua para o futuro. Afirma que os otimistas podem se enganar e que os
pessimistas já se enganam no ponto de partida. Antes de partir, alerta: “tenho
uma boa notícia”. E é ela que todos querem ouvir.
Ela, a senhora do amanhecer.
A esperança é arquiteta de destinos, é recusa de aceitar o
mal como inexorável vitorioso, é teimosa e insolente. Não faz previsões
otimistas ou pessimistas, constrói realidades, faz acontecer. A desesperança,
sua irmã gêmea, também é construtora de realidades.
Ao reverso. É cúmplice do
inimigo, ajuda a derrota.
Nesse fim de ano tenho sentido os brasileiros
desesperançados. O momento presente é desanimador. Porém, projetar o presente
no futuro é um equivoco que congela o tempo e ignora o legado do passado. Já
vivemos dias piores, anos de chumbo e sombra. De lá para cá refundamos a
democracia, vencemos a inflação, diminuímos as desigualdades.
Caímos em um pesadelo histórico. Não deixamos por isso de
ser mais de 200 milhões de habitantes, vivendo em um imenso território, donos
de bens naturais inestimáveis como a Amazônia e bacias hidrográficas de dar
inveja a um mundo assombrado pela carência de água e de ar puro.
Uma cultura em que desaguaram três cosmogonias tão estranhas
uma a outra, que há quinhentos anos negociam essas contradições com um
sentimento de incompletude, buscando uns nos outros o que não somos e nos
reconhecendo nessa gente original que nos tornamos, sedimentada por séculos de
miscigenação, cuja identidade é um paradoxo, diversidade que se fez identidade
e que conhece bem “a dor e a delícia de ser o que é”.
É essa cultura que nos une, esse país que nos irmana e essa
identidade que nos salva. Que o ódio não abra suas asas mórbidas sobre nós. Que
justiça seja feita reparando todo o mal que nos foi feito. Que todos os deuses
do Brasil nos ajudem a preservar essa “estranha mania de ter fé na vida” e a
construir um Ano Novo mais feliz. Feliz Ano Novo.
O Globo, 30/12/2017
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Rosiska Darcy de Oliveira - Sexta ocupante da cadeira 10 da
ABL, eleita em 11 de abril de 2013, é escritora e ensaísta. Sua obra literária
exprime uma trajetória de vida. Foi recebida em 14 de junho de 2013 pelo
Acadêmico Eduardo Portella, na sucessão do Acadêmico Lêdo Ivo, falecido em 23
de dezembro de 2012.
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