Rio, do Brasil
Meu coração recrimina quando ajo como se o Rio de Janeiro
não merecesse ser a cada golpe inaugurado pelos meus olhos. Não fosse em si uma
dádiva que me chegou junto com a vida que arfa teimosa. Uma paisagem cuja
beleza é centro da fantasia brasileira, nela estão encravados os mitos
nacionais.
Com estofo de heroína, aguento as benesses e os malefícios,
examino os efeitos de seu repertório urbano na psique carioca. De caráter dual,
espécie de Juno de duas faces, o Rio oscila entre pobres e ricos que esbarram
nas esquinas sob falsa harmonia social. Contudo falam todos a mesma língua, a
despeito dos tropeços gramaticais. Aliás, no capítulo linguístico, o carioca
demonstra pendor para narrar. Seu humor inventa histórias que não viveu. Mas
perdoa quem o lançou ao fogo do inferno e merece o cárcere. Pois sua frágil
cidadania não ausculta as graves mentiras que lhe contam. Acolhe os políticos
como membro da família.
No teatro carioca, as classes sociais simulam entender-se no
período carnavalesco ou diante de uma desgraça. Os desprovidos da sorte ainda
confiam no que lhes prometem os donos do poder público.
O Rio é belo, sem dúvida, mas não lê. Quase todos igualam-se
na escassez de conhecimento. Não dispõem de um arsenal de saberes que apure o
seus direitos cidadãos.
É uma cidade musical. Domina o Stradivarius e o tamborim.
Seu carnaval dita pautas temporariamente felizes. Descendo das comunidades, as
escolas de samba causam assombro com sua refinada estética. Sua arte maior sara
as feridas, reconcilia-nos com a vida indigna.
Cumprimos no Rio, berço, ribalta e cova nossas, as etapas de
nossas biografias. Devemos à pedagogia da cidade a esplêndida mestiçagem. Ela é
o epicentro do Brasil, a metáfora eternizada por Machado de Assis em sua obra.
É proibido, porém, contemporizar com as mazelas morais com
que tentam abortar o Rio. O veneno que a elite política nos injetou, há que
vomitar. Mas como amo esta urbe, afugento o desencanto. Há que restaurar a
cidadania ofendida. Entoar o hino pátrio enquanto exaltamos o privilégio de
viver sob a resplandecência deste céu que se abate azulado sobre nós com a
força do seu mistério . Estou cansada de pessimismo.
O Globo, 24/12/2017
Nélida Piñon - Quinta ocupante da Cadeira 30 da ABL, eleita
em 27 de julho de 1989, na sucessão de Aurélio Buarque de Holanda e recebida em
3 de maio de 1990 pelo Acadêmico Lêdo Ivo. Em 1996-1997 tornou-se a primeira
mulher, em 100 anos, a presidir a Academia Brasileira de Letras, no ano do
seu Centenário.
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