Um lugar perigoso
Ciro Gomes decretou que as eleições de 2018 serão uma
brincadeira de meninos. Marina fica fora do jogo por falta de testosterona.
Jogo agressivo, coisa de macho. Discursava para empresários, falando grosso.
Será que alguém riu? Ou protestou? Ou passou despercebida essa manifestação —
Ciro, de novo — de machismo explícito?
Outro pretendente à Presidência da República, parlamentar,
disse à deputada Maria do Rosário que não a estupraria porque ela não merecia.
Uma agressão que foi parar no Supremo Tribunal Federal. Bolsonaro virou réu,
mas seus possíveis eleitores aumentaram.
Enquanto o Brasil caminha, célere, de volta à Idade da
Pedra, no país de Donald Trump, notório predador, um poderoso produtor de
Hollywood, campeão de premiações no Oscar, foi apeado de seu trono
cinematográfico quando atrizes famosas denunciaram uma prática bem conhecida
das mulheres. Harvey Weinstein cobrava propinas sexuais para deixar que essas atrizes
ascendessem ao estrelato. A antessala do sucesso era o quarto de hotel do
produtor.
Agora, que elas ousaram falar, abriram-se as comportas de um
mar de ressentimentos até então represados, que inundaram a imprensa mundial.
As francesas ecoaram o protesto das americanas e publicaram na internet
milhares de depoimentos sobre situações vividas de assédio, agressões sexuais e
estupros. Passada a fase de catarse virtual, foram para a rua. A jornalista
Carol Galand, que convocou a manifestação no asfalto, disse que queria fazer
uma coisa diferente de uma zoeira nas redes sociais.
Com esses milhões de cacos de vida, vai-se compondo o puzzle perfeito
do que é o achincalhe e a violência sexual que, no mundo inteiro, ameaçam as
mulheres moral e fisicamente. Essa denúncia, que viralizou nos Estados Unidos e
na França, ganhou as ruas e muda uma situação imemorial e global. Quebrou-se o
silencio que garantia a impunidade, acabou o medo.
Por um estranho mecanismo gerado na experiência vivida, as
mulheres transformavam as agressões que sofriam em sentimento de culpa. Como se
de alguma maneira elas provocassem essas agressões, o que lhes foi tantas vezes
repetido, sobretudo nas delegacias quando denunciavam casos de estupro e eram
acusadas de provocar com as roupas que usavam o estuprador, transformado em
vítima de uma irresistível sedutora.
O mesmo acontecia nos casos de assédio sexual. Essa
chantagem que paira sobre as mulheres se revela na atitude de empregadores que
despedem não quem assedia e, sim, quem é assediada. Na França das liberdades e
dos direitos humanos assim foi em 95% dos casos em que mulheres denunciaram
seus chefes. O mito da mulher sedutora que desgraça um homem é tão velho quanto
Adão e Eva.
As propinas sexuais cobradas por quem tem autoridade sobre
as mulheres são uma forma de prostituí-las. Envenenam e muitas vezes invalidam
os projetos profissionais daquelas que dizem não. Levantam suspeitas sobre o
sucesso profissional das mulheres. Que preço teriam pago?
Esse clima perverso, de promessas, ou o seu avesso, de
ameaças veladas ou não, alimentam uma cumplicidade masculina que começa em
piadas e comentários jocosos e termina em conivência com as atitudes mais vis.
Essa cumplicidade é constitutiva da relação de poder dos homens sobre as
mulheres, um fator de humilhação e intimidação que pode atingir qualquer uma,
em qualquer idade ou classe social.
A quebra do silêncio torna irrefutável a gravidade de um
escândalo mundial: o assédio e a violência sexual ainda são absolvidos pela
cultura, mesmo quando proibidos pela lei.
O Conselho Nacional de Justiça divulgou que em 2016
tramitaram nos tribunais mais de um milhão de processos referentes à violência
doméstica contra a mulher. Um processo para cada cem mulheres brasileiras. Ao
longo do ano passado tramitaram na Justiça mais de 13 mil casos de feminicídio,
o assassinato da mulher por ódio, desprezo ou perda de controle sobre ela. O
Anuário de Segurança Pública registrou 45.500 casos de estupro em um ano.
Cifras de uma guerra suja e covarde.
Dar um basta nessa aberração é um imperativo civilizatório.
A violência contra as mulheres não é um hábito doentio que o tempo e a
impunidade transformaram em direito não dito. Não pode ser naturalizada,
degrada a todos. É um crime contra a humanidade.
Assédio sexual, violência doméstica, estupro, feminicídio
são gradações de uma mesma evidência: na segunda década do século XXI, a
dignidade das mulheres ainda é uma abstração negada na vida real.
O mundo é um
lugar selvagem e perigoso para o sexo feminino.
O Globo, 04/11/2017
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Rosiska
Darcy de Oliveira - Sexta ocupante da cadeira 10 da ABL, eleita em 11 de
abril de 2013. É escritora e ensaísta. Sua obra literária exprime uma trajetória
de vida. Foi recebida em 14 de junho de 2013 pelo Acadêmico Eduardo Portella,
na sucessão do Acadêmico Lêdo Ivo, falecido em 23 de dezembro de 2012.
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