A metáfora das cisternas e fontes
Eu sou fã de carteirinha do mestre Rubem Alves e
ler os seus livros tem me ajudado a ser um professor melhor e um ser humano
melhor. A forma simples que ele conseguia transmitir grandes ensinamentos me
encanta e faz perceber que a famosa frase do Leonardo da Vinci é a mais
pura verdade: “A simplicidade é o último grau de sofisticação”.
Li um texto no qual ele falava sobre as pessoas cisternas e
as pessoas fontes. Confira!
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William Blake foi um poeta inglês a quem aconteciam
aforismos. Disse «aconteciam» porque aforismos são como relâmpagos. Acontecem.
Iluminam repentinamente o céu vindos não se sabe donde. Como os relâmpagos, com
um poder para rachar rochas. Hoje um dos seus relâmpagos aconteceu: «As
cisternas contêm; as fontes transbordam.»
«Cisternas» são buracos que se fazem na terra para guardar a
água da chuva. São muito úteis em regiões áridas onde a chuva é rara e os rios
não correm.
A água que a cisterna contém não brota dela. É um outro que
a põe lá.
As fontes são outra coisa. São símbolos de vida. Parodiando
o Riobaldo eu digo: «Onde as fontes borbulham tudo é alegria.»
Para se ter uma fonte não é preciso cavar. É a própria água
que cava o seu buraco. A terra não consegue conter a sua pressão para sair. É
uma erupção vulcânica, a terra ejaculando a vida.
Olhando-se para o fundo de uma fonte através de sua água
cristalina a gente vê a areinha a ser lançada para cima pela força da água. A
água vai saindo sem parar até que transborda dos limites do seu buraco,
transformando-se num filete de água que pode, eventualmente, transformar-se num
rio.
Um outro aforismo de Blake dá-nos a chave para decifrar o
sentido deste: «O homem que nunca altera suas opiniões é como água parada: gera
répteis na sua mente.» Cisterna é um lugar de água parada que pode gerar
répteis. A «fonte» é um lugar de águas sempre novas que transbordam.
São metáforas de dois tipos de pessoas. Há pessoas que são
«cisternas» e há pessoas que são «fontes».
E são metáforas de dois tipos de educação. Há uma educação
cisterna e uma educação-fonte.
A educação cisterna quer encher o buraco chamado aluno com
uma água que não brota dele. A educação-fonte não quer colocar água dentro do
aluno. Quer é fazer brotar a fonte que mora dentro dele, escondida.
Lembrei-me do Pequeno Príncipe: «O deserto é belo porque em
algum lugar ele esconde uma fonte».
Uma criança é bela porque dentro dela há
uma fonte escondida.
Toda a gente tem uma fonte. Com frequência essa fonte está
enterrada com entulho.
Rubem Alves
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Sendo professor eu posso afirmar que nosso sistema
educacional ainda é extremamente arcaico e contribui para que nossos
queridos alunos deixem de ser fontes e passem a ser cisternas.
O que leva a isso é o modelo conteudista. Tem um
professor especializado para cada matéria: Matemática, Física, Química,
Biologia, Português, Inglês, História, Geografia…
O objetivo é encher o máximo possível os alunos de
conteúdos. Para que? Nem os professores sabem explicar.
Quando os alunos perguntam pra que precisam estudar tanta
coisa, a resposta quase unânime dos professores é: “Você precisa disso pra
fazer a prova do ENEM. Depois que você passar nunca mais vai precisar disso
novamente…”.
E infelizmente, eu também digo a mesma coisa, porque é a
verdade do nosso país! Aproveito até para comentar sobre a última prova do
ENEM, a do ano 2017. Comparada com os anos anteriores, ela estava absurdamente
mais difícil e específica. Foi-se o tempo no qual a prova era aquele mamão com
açúcar para interpretar um gráfico simples ou uma tabela mais simples ainda.
Eu sou formado em Física e teve questões de Física que se
você me perguntar como resolve eu vou dizer simplesmente: “Não sei!”. Tamanho
era o grau de dificuldade dessa prova.
Não consigo imaginar como uma prova como essa pode
contribuir para que os estudantes sejam fontes. Ela só reforça o modelo que já
vem se perpetuando há séculos.
Antes de concluir, quero comentar sobre algo que já falei
tempos atrás na fanpage do blog e ilustra perfeitamente a proposta do texto do
Rubem.
Em 2013 eu dei aula em uma escola da periferia de Fortaleza.
Uma escola na qual a quase totalidade dos alunos eram muito pobres e
desfavorecidos.
Foi uma verdadeira oficina de aprendizados na minha vida o
tempo que fiquei lá. Sempre digo que eu aprendi muito mais com os alunos do que
fui capaz de transmitir a eles.
Tinham alunos com capacidades natas extraordinárias, que não
eram valorizadas por causa do contexto no qual viviam. Dentro de uma periferia,
com mortes e assaltos acontecendo quase em cada esquina!
Um aluno em especial era o líder de uma das turmas. Era
muito querido pelos colegas e deixava o ambiente da sala com uma energia
incrível.
Era comunicativo, sabia se expressar como ninguém, tinha
liderança, sabia tocar vários instrumentos musicais sem nunca ter feito
escolinha de nada. Sabia atuar em peças de teatro com uma destreza que me
deixava de queixo caído etc.
No entanto, ele detestava Matemática e Física, as
disciplinas que ministrava. A gente se dava super bem e ele tinha um enorme
respeito por mim. Mas quando chegava as provas, seu resultado era um desastre
total, e quando chegava a hora de dar a nota dele, e me “estrebuchava” como se
diz. Eu dizia pra mim mesmo: “Quem sou eu pra dar uma nota dessa para um
garoto tão bom, tão talentoso?…”.
Eu me sentia muito mal em fazer isso. Estava, ao lhe dar
nota baixa, lhe fazendo se transformar em uma cisterna e deixando de ser uma
fonte.
Se ele fosse incentivado a fazer um curso de teatro ou de
comunicação e se desenvolvesse nisso, certamente ele se tornaria mais e mais
fonte a cada dia, mas a escola faz o contrário, ela enterra esses talentos
incríveis.
Esse é só um exemplo do que acontece o tempo todos nos 4
cantos desse país. Qualquer professor de escola que ler esse texto vai se
identificar com o que estou dizendo. Isso é praticamente um desabafo em relação
a um sistema educacional que já faliu há muito tempo e me parece que vem
ganhando força. Foi por isso que comentei sobre a prova ENEM 2017.
Reflita sobre esse genial texto do mestre Rubem Alves e esse
relato vivido por mim e procure alimentar o lado fonte que certamente existe
dentro de você e que talvez esteja adormecido por causa da vida e da sociedade
que acabaram lhe transformando numa cisterna…
ISAIAS COSTA
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Isaias Costa, 28 anos. Sou Bacharel em Física e Mestre em
Engenharia Mecânica. Descobri o meu amor pela escrita nas dificuldades que
passei no meu caminho, aliado ao prazer de ler sobre Filosofia, Psicologia e
Teologia.
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