O Lenhador
Era uma
vez... Meus meninos!
Era uma
vez!... Atenção!
Eu vou
contar-vos a história
do lenhador
do sertão.
Guarde-a bem
na memória,
ou, antes,
no coração.
Um lenhador derribava,
àtoa, sem precisão,
tudo quanto ele encontrava
que fosse vegetação.
A sua pobre
avozinha
toda a noite
e todo o dia,
(mas sempre
falando em vão...)
sem se
cansar, lhe dizia:
“Meu
filho!... Tem compaixão!
“Respeita a
imagem das árvores,
“porque elas
têm coração”.
E o lenhador chaboqueiro,
a rir-se, como um selvagem,
dizia que os seus conselhos
não passavam de bobagem.
Assim, risonho,
o malvado,
acordando muito
cedo,
pegava do
seu machado
e levava o
dia inteiro
esfrangalhando o arvoredo.
E a sua
triste avozinha,
sempre a
chorar, mas em vão,
a toda hora
do dia,
como quem
faz oração,
de joelhos,
lhe repetia
que tivesse
compaixão
da santidade
das árvores,
que têm alma
e coração.
Pois bem: nesse mesmo
dia,
a soltar feros rugidos,
sem atender aos gemidos
da sua avó, da avozinha
centenária de janeiros,
o bruto, o bruto dos brutos,
derribou dois ingazeiros
carregadinhos de frutos.
E a sua avó, coitadinha,
que tantas mágoas já tinha,
piedosa, assim lhe falou:
“Meu
netinho: sê bondoso,
“como foi
teu santo avô!
“por que foi
que decepaste
“aqueles
dois ingazeiros,
“dois amigos
fraternais!
“Vai pedir
perdão, meu filho,
“perdão para
os teus pecados
“aos dois
troncos decepados
“desses Cristos
vegetais!”
D’uma feita, o criminoso,
cantando, jogou no chão
um pé de jacatirão,
tão moço e tão extremoso,
que, com fraternal carinho,
com carinho paternal,
guardava entre os seus verdores
o ninho de um cardeal.
E a velha, que não cansava
de aconselhar o impiedoso
naquele eterno estribilho,
ainda assim suplicava:
“Meu filho, meu pobre filho,
“Tuas ações são contadas
“pelo mal que tu fizeres!
“Respeita todas as árvores,
“que ainda mesmo agigantadas,
“são fracas, como as mulheres”.
Doutra
feita, o renegado,
sem um
tiquinho de dó,
desgalhou a laranjeira
da
pobrezinha da avó,
uma velha
laranjeira,
cujas flores
enfeitaram,
há meio século
passado,
seu vestido
de noivado,
quando ela e
o morto adorado
na igrejinha
se casaram.
E a avó, sempre com o perdão,
sempre, sempre repetia:
“Tu mataste a laranjeira
“que há tempos já não floria!
“É debalde que eu te imploro!
“Eu sei que te imploro em vão!
“Mas, filho! Tem caridade!
“Tem um tico de piedade
“da pobre vegetação”.
Mas, qual!... Meus filhos! O homem
já não tinha coração!
Vede quanta perversão!
Do lado do capinzal,
lá, onde pastava o gado,
erguia-se um grande ipê,
que o avô tinha plantado
No tempo, em que ele podia
no seu roçado roçar,
depois de levar na roça
com a sua enxada a cavar,
debaixo daquela sombra,
nas horas quentes do dia,
vinha o velho descansar.
Se era noite
de luar,
ali, num
banco de pedra,
com a viola
conversando,
o velho, já
caducando,
rasgava o peito a cantar.
Pois bem. Um dia, o
tinhoso,
a fera desnaturada,
o tirano dos tiranos,
quis destruir, as escolhas
aquela planta sagrada
aquele templo de folhas,
que tinha mais de cem anos.
Mas quando o rei das florestas,
aos golpes do seu machado,
já começava a pender,
o grande amaldiçoado
viu uns borbulhos de sangue
do tronco velho escorrer!!!...
sacudiu fora o machado,
e deu de perna a valer.
E foi correndo... Correndo!...
E os troncos que ia revendo
das plantas que decepou,
eram braços levantados
de uns homens, desenterrados,
a gritar: - Vai-te, impiedoso!...
- Vai-te embora, cão tinhoso!...
- Cão danado! Cão leproso!
- Foi Deus quem te castigou! –
E foi correndo... correndo!...
Cada vez corria mais!...
Quis parar!... Olhou pra atrás!...
Mas vendo o ipê debruçado,
como um Cristo ensanguentado,
cada vez corria mais!!
Numa curva do caminho,
um pobre velho
ranchinho,
abandonado, avistou!
Quer ver se para e descansa,
e o ranchinho, por vingança,
todo inteiro desabou
E foi
correndo e gritando!...
E toda a
vegetação
que o
malvado ia encontrando
e que mal
podia ver,
como se
fosse arrancada
com toda a raiz da terra,
numa grande
disparada,
ia atrás dele
a correr!!!
Na crista da encruzilhada
vendo uma gruta fechada
de verde capoangal,
barafustou pelo mato,
que, logo que viu o ingrato,
de mato manso e macio,
ficou sendo um espinhal!!
E foi outra
vez correndo,
correndo pelos
caminhos!
O capim que ele pisava,
no mesmo instante ficava
crivado todo de espinhos!!
Ia correndo,
sem tino,
como um
pérfido assassino,
que um inocente
matou!
Mas, agora, em sua frente,
o que ele viu, de repente,
que, de repente, impacou?!
Era um rio
que passava
ali, naquele
lugar!
O rio tinha
uma ponte!...
Ele foi
atravessar!...
Pôs o pé!...
Ia passando!...
E a ponte
rangeu, quebrando!...
E o homem
cai, bracejando,
na correnteza
a boiar!
“Socorro, meu Deus! Socorro!”...
gritava, já se afogando!
“Socorro, que eu vou morrer!
“Eu juro pela avozinha,
“a mãe da minha mãezinha,
“nunca mais na minha vida
“uma só planta ofender!”
Então, um
verde ingazeiro,
que estava à
margem do rio,
esticou-lhe
um braço verde,
para dar-lhe
a salvação!
O homem pegou no galho,
os dentes no galho aferra,
foi subindo, foi subindo,
e quando pisou na terra,
chorava mais que um chorão!
Chorando e beijando o galho,
dizia: - “Muito obrigado!
“Deus te conserve, enfolhado,
“com todo viço e verdor!
“Quero
esquecer meu passado!...
“Vou
sepultar meu machado!
“não serei
mais lenhador!”
Pois bem. Depois do perdão
e daquelas juras santas
que fez ao velho ingazeiro,
veio a regeneração!
O lenhador
do sertão,
para expurgar-se
dos crimes,
transformou-se em jardineiro!!
*
Deixando os
matos agrestes,
veio em
caminho da roça!
E, em breve,
ao redor da choça,
feita de
barro e coberta
de sapês hospitaleiros,
só se viam, florescendo,
canteiros e
mais canteiros.
Levava os dias inteiros
tratando do seu jardim.
E a avó, que já carregava
mais de cem anos de idade,
dizia que neste mundo
nunca viu tanta bondade
e tanta pureza assim.
Depois do labor do dia,
nem mesmo as noites dormia!
Bastava o simples rumor
de um inseto zumbidor,
ou o cicio da aragem,
ciciando entre a folhagem,
para abrir a janelinha
da sua choupanazinha,
e escutando esses rumores
ficar ali, debruçado,
ouvindo a noite inteirinha
o meigo sonho das flores!
De manhã, de manhã cedo,
lá ia saber das rosas,
dos cravos, dos crisântemos,
das açucenas cheirosas,
se tinham dormido bem.
Tinha cuidado com as rosas
que as avós mais carinhosas
com os seus netinhos não têm.
Dizia a uma flor: “Bom dia!
“Como está hoje vermelha!”
Dizia a outra: “Coitada!
“Perdeu seu mel! Foi roubada!
“Minha flor!... Serás vingada!
“Hei de matar essa abelha!”
Depois, com mágoa... com pena
de uma formosa açucena,
que parece que chorava,
batia leve no galho
para livrá-la das lágrimas
daqueles pingos de orvalho!
Ia apanhando do chão,
A flor que no chão caía!
Nas rudes costas da mão,
limpando as flores d’agua
que vinham do coração,
batia em cima do peito,
como quem faz confissão
Quando o sino da capela
vibrava na Ave-Maria
as seis notas mensageiras,
(como o Cristo ajoelhado,
No jardim das Oliveiras),
o grande regenerado
pedia a Deus pelas almas
das flores que nesse dia
no jardim tinha enterrado.
*
E agora,
quando passava
entre as
árvores, cantando,
cheios d’agua
carregando
seus dois
grandes regadores,
os
arvoredos, mostrando
que ao
lenhador perdoavam,
no
jardineiro atiravam
as suas palmas
de flores!!!
No dia em que o lenhador,
que se tornou jardineiro,
rendeu sua alma ao Senhor,
diz o povo do lugar
que, quando foi a enterrar,
as borboletas voavam,
e os passarinhos, cantando,
o féretro acompanhavam!...
e os arvoredos e os matos,
por serem órfãos de flores,
reconhecidos e gratos,
por tamanha adoração,
ao doce gemer dos ventos,
agitavam-se, em lamentos,
atirando seus verdores
sobre as tábuas do caixão.
*
Quem, hoje, por alta noite,
nas horas de mais “quebranto”,
passa pelo Campo Santo,
velho, triste e abandonado,
vê um vulto pervagando
de campa em campa, regando
as flores do cemitério,
onde ele foi enterrado.
(POEMAS BRAVIOS)
Catulo da Paixão Cearense
* * *
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