Solidariedade na Ilha
Contam os mais antigos que, faz algumas décadas, em Salinas
da Margarida, em plena festa da padroeira Nossa Senhora do Carmo, Zecamunista
encerrou um comício do Partidão com um discurso incendiário no qual, agitando o
punho na direção do céu, xingou o padre e repetiu várias vezes que a religião é
o ópio do povo. Acabado o comício e pouco antes de o delegado levá-lo em cana
novamente, ele foi muito cumprimentado por cidadãos que se agradaram
especialmente dessa parte do ópio, mas, mal ele se recuperava da surpresa,
descobriu que o pessoal não sabia o que era ópio e, na maior parte, achava que
se tratava de um elogio fino, desses que a gente não entende direito, mas finge
que entende, para não passar por iletrado.
Tudo indica que ele nunca superou esse trauma da juventude,
pois não se manifesta mais sobre o assunto, a não ser quando muito provocado.
Nem mesmo a visita do Papa suscitou qualquer manifestação da parte dele, que assistiu
ao noticiário na televisão do Bar de Espanha muito composto e sem gritar
nenhuma palavra de ordem. Na verdade, circula até uma fofoca, quiçá invenção de
algum marido sem espírito esportivo, ou parceiro de pôquer ressentido,
altamente difamatória para um bolchevique de quatro costados, segundo a qual
ele conseguiu a colaboração de alguém que conhecia alguém que iria estar com
Sua Santidade, para ver se descolava uma bençãozinha para a estampa de São
Caetano que tem em casa e de quem se murmura à boca pequena que ele é devoto.
São Caetano é o paciente, compreensivo e laborioso padroeiro dos jogadores,
apostadores e dos que precisam de sorte em geral, mas Zeca desmente tudo com
indignação, embora, se desafiado a renegar o santo, disfarce, mude de assunto
e, no máximo, responda que não aceita provocações da direita e não entra em
discussões pequeno-burguesas. De forma que, diante de uma história tão eivada
de dúvidas e controvérsias, não chegou a causar surpresa o anúncio que ele fez,
de que a visita do Papa o tinha inspirado.
— Eu confesso que fui influenciado pelo Papa — disse ele. —
Somente depois da visita dele foi que eu me toquei.
— Você se converteu?
— Me respeite! Eu nunca traí meu currículo, eu sou
subversivo desde os oito anos, boicotei a páscoa da escola duas vezes e já
tomei muito porre de vinho de padre, roubado da sacristia, me respeite. Somente
um ignorante é que acha que um materialista cem por cento, como eu, não pode
sentir solidariedade humana. Não tem nada de conversão, ele apenas me levou a
conceber um novo projeto aqui para a ilha, só que desta vez não é visando o
lucro, é por uma recompensa moral, por assim dizer espiritual. E também pode
ajudar na imagem aqui da ilha, a hospitalidade é muito importante para o
turismo.
— É como aquele outro plano que você bolou, para fazer aqui
a cadeia dos condenados do mensalão?
— Não aquele eu abandonei, só vai ter preso mensaleiro na
outra encarnação e, como eu não acredito em outra encarnação, é nunca mesmo,
esqueça essa besteira, foi tudo brincadeira deles. Não, agora é um projeto
muito diferente, ainda não achei um bom nome para o programa, mas creio que
talvez Braços Abertos ficasse bem. O primeiro em que eu pensei foi Aconchego da
Consolação, mas achei com pinta de filme mexicano de antigamente. Braços
Abertos, que é que você acha? Você acha que ela ia compreender o espírito da
coisa e até recuperar sua crença na humanidade?
— Zeca, o que é que você andou bebendo? Não entendi nada,
ela quem?
— A presidenta, coitada. Eu estive pensando que não haveria
melhor maneira de começar o programa Braços Abertos do que com ela, todo mundo
ia saber da iniciativa e ver como a ilha seria a solução para muitos. Eu tenho
o coração mole, fico comovido com o sofrimento dela.
— Eu não sei de sofrimento nenhum dela.
— Você desconhece a política, eu conheço a política. Você
veja, coitadinha, nada deu certo, ela não levou sorte. Praticamente tudo foi
para trás, a bagunça é grande, quem era para ajudar atrapalha muito mais do que
ajuda, ninguém se entende direito, é um pega pra capar muito feroz, cadê o meu
pra lá, cadê o meu pra cá, só estão com ela enquanto acharem que dá futuro. E
agora já começaram a se engalfinhar e a disputar o que vai aparecer e o que vai
sobrar. Ninguém mais liga para ela, que não sabe se expressar direito e, quando
começa a falar, parece que vai dar um cascudo em alguém, coitadinha. Eu fico
com pena, é muito duro, às vezes eu penso que ela está ali, querendo fazer pose
de cáiser prussiano, mas com vontade de chorar, é desumano.
— Eu nunca tinha pensado nisso.
— É que você também é desumano. Mas eu vou fazer um convite
a ela para vir esquecer as mágoas aqui. Agora não, ainda é muito cedo, ela
ainda não acreditará, se alguém contar a ela o que vai acontecer. Mas daqui a
pouco, a começar pelos atuais bajuladores, vai ter gente sem querer atender ao
telefonema, vai ter gente mandando dizer que não está, vai ter mais gente ainda
dizendo a ela uma coisa e fazendo outra, vai ter até um cara do cafezinho sem
as mesmas mesuras de antigamente, outros vão deixar de lembrar o aniversário, é
um conjunto de coisas sutil, mas muito cruel, eu fico comiserado. Aqui ela vai
ser recebida com carinho e compreensão, vai até conseguir fazer amigos.
— Que é isso, amigos ela já tem.
— Possivelmente, mas agora não dá para ela saber quem são
eles. Ela ainda tem muito susto pela frente e o Braços Abertos chegou para
ajudar. O Papa aconselha amar o semelhante. E a semelhanta, como diria ela.
O Globo, 28/7/2013
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João Ubaldo Ribeiro - Sétimo ocupante da Cadeira nº 34 da
ABL, eleito em 7 de outubro de 1993, na sucessão de Carlos Castello Branco e
recebido em 8 de junho de 1994 pelo Acadêmico Eduardo Portella. Faleceu no
dia 18 de julho de 2014, no Rio de Janeiro, aos 73 anos.
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