Para entendermos
este título, é preciso irmos por partes!
O Caboclo,
que na verdade é mulato, é o sorocabense que se mudou para Itabuna com a mãe,
quando tinha três anos de Idade. Portanto, considera-se mais baiano do que
paulista. Não por vontade própria, mas por obrigação, teve de escolher a
profissão de comerciante, ajudando o padrasto no açougue de sua propriedade.
Alencar é o
seu nome verdadeiro: Alencar Pereira da Silveira. Ficou conhecido por Caboclo
porque ele próprio chamava os fregueses de caboclo, quando o nome deles lhe
fugia da mente. Já como o feitiço costuma virar contra o feiticeiro, o apelido
pegou. Muito conhecido no comércio, por causa do açougue, passou a ser chamado,
por todos, dessa maneira.
O porquê a
sigla ABC?
Bem, quando
o consumo do óleo animal passou a ser substituído pelo óleo vegetal, as carnes
gordas, como as banhas e toicinhos, sofreram uma queda acentuada no mercado de
carne. Percebendo o enfraquecimento do comércio, o Caboclo Alencar, que no fim
dos anos 50 assumira o açougue sozinho, resolveu mudar de ramo, aproveitando o
ponto para transformá-lo em um bar. Em 1962, no dia 28 de julho (dia do aniversário
da cidade), vendendo bebidas e tira-gostos, o bar veio a ser inaugurado. Como
nessa época havia casas comerciais com o nome ABC (como era o caso do ABC da Bicicleta) e por
sugestão de um dos seus clientes que também conhecia um bar ABC, em uma outra
cidade, Alencar não se deu ao trabalho de pensar muito num outro nome. Assim, o
ponto foi batizado com o nome ABC, ou melhor, ABC da Noite, já que, nessa
primeira fase, o Caboclo Alencar mantinha o bar aberto até as vinte e uma
horas.
Com 41 anos
de funcionamento, o ABC da Noite, inevitavelmente, é um bar tradicional na
cidade. Localizado na Rua Adolfo Leite, mais conhecida pelo nome Beco do Fuxico (a viela levou este nome
porque cortava as ruas do meretrício: Quartel Velho e rua do Lopes – antiga rua
da Garapa – ali costumavam ser marcados os encontros amorosos com as
raparigas!), está aberto todos os dias somente das dez ao meio-dia e meia e das
dezessete às dezenove horas – horários cumpridos, na íntegra, pelo metódico Caboclo Alencar e respeitados
(que jeito!) pelos assíduos frequentadores. Comparável a um boteco, pois nele
não há mesas e o atendimento é feito no balcão, em pé, o ABC da Noite não teria
nada de especial, não fossem as bebidas que o Caboclo Alencar põe à venda.
Desde o início, as famosas “batidas” têm sido o segredo do bom negócio: frutas
da época misturadas com uma cachacinha de primeira, funcionando como um chamariz para os
apreciadores das bebidas quentes. Quem as degusta com prazer, termina sempre
encontrando um bom motivo (ou boa desculpa!) para beberica-las: após o
trabalho, para aliviar o cansaço do expediente; antes do almoço, para abrir o
apetite; no calor do verão, para refrescar; no inverno, para esquentar; nos
momentos de tristeza, para esquecer; nos
de alegria, para comemorar... Assim, quem começa com a bebida de gengibre, quer
também provar a de caju, a de pitanga, a de cajá... hic! A receita de como prepara-las
o Caboclo Alencar não dá a ninguém. “A Coca-Cola também não dá a sua receita,
por que eu daria a minha?!” – explica-se.
Para manter
a qualidade das batidas, Caboclo Alencar resolveu reduzir tanto o horário do
expediente, quanto o cardápio, pois percebia que não dava conta dos pedidos da
clientela. Sem querer ampliar o espaço e nem contratar funcionários, pois se
dava por satisfeito com o pequeno empreendimento, decidiu fechar a cozinha,
para poder dedicar-se diariamente à sua manufatura predileta. Com notável
especialização, por vezes dá-se até ao luxo de inventar novas receitas com
frutas exóticas como pêssego, damasco ou ameixa, mesmo assumindo o risco de não
vendê-las, pois elas se tornam muito mais caras do que as feitas com frutas
regionais. Preparadas com capricho, cada uma delas tem um gosto especial, mas
se perguntarmos ao Caboclo de qual batida ele mais gosta, a resposta é imediata:
“a que mais gosto é aquela que mais vendo”. E, de fato, esse exímio comerciante
tornou-se tão especializado em sua área que não precisa temer a concorrência.
Todos os dias, o número de pessoas que se reúne na porta do bar é tão grande
que a rua, que já é estreita fica engarrafada. Interessante é notar que, ainda
hoje, 98% dos fregueses são homens. Frequentado por profissionais liberais,
funcionários públicos, bancários e
comerciantes, o “fuxico” preferido é a política. Até o dono do estabelecimento
admite que, se conversa de bar adiantasse, os clientes dele já teriam
resolvido, há muito, os problemas do mundo!
A
popularidade do ABC da Noite deve-se também ao Carnaval. Segundo conta o
próprio Caboclo Alencar, ainda na década de 1960, um engenheiro que construía
um trecho da estrada Ilhéus-Una apareceu em Itabuna no início de um dos
carnavais, sugerindo a lavagem do Beco do Fuxico, à imitação do Beco Maria
Paz, em Salvador, . Dois dias depois, ao
retornar à cidade com um pequeno carro-pipa e os apetrechos necessários, como
vassoura e sabão, resolveu dar início ao trabalho de esfregamento. A moda
pegou. A população aderiu. A prefeitura apoiou. A festa cresceu. E haja batida
para acalmar a sede dos foliões! Entretanto, a festa popularizou-se de tal
forma que o Caboclo Alencar, atualmente, prefere fechar o bar durante o Carnaval.
“No início era divertido, o povo lavava mesmo a rua com água e vassoura e ainda
tinha os blocos que faziam presença na porta do bar. Houve até o bloco A
Escolinha do ABC da Noite, que durou sete anos. Hoje, a festa é tão grande que
até já se tornou anônima” – avalia.
Há 52 anos
trabalhando como comerciante (doze anos como açougueiro), o Caboclo Alencar
ainda não se cansou de trabalhar. “Trabalho porque preciso e também porque não
gosto da inatividade, nem física nem psicológica” – declara. Levando uma vida
sistemática, estruturando seu dia com as horas de trabalho, dedica boa parte do
seu tempo livre aos livros. O seu grande sonho era tornar-se humanista e poder
continuar os estudos, pois só pôde concluir o curso primário com o professor
Chaloub. (Dessa época, ele ainda lembra o retrato do Presidente da República
Getúlio Vargas, pendurado na parede da sala de aula). Mas não gosta de se
queixar do destino que a vida lhe reservou, pelo contrário, sente-se feliz por
sua conquista profissional.
“O comércio
já me proporcionou boas coisas. Nos tempos bons, cheguei até a comprar um carro
e vivia bem. Hoje, com a crise, ganho a média de 20 a 30 reais, por dia, o que
também não é tão mal assim, porque vou conseguindo me manter e manter a esposa.
Aliás, estabilidade não é problema de dinheiro, mas de consciência. A gente se
estabiliza com o que tem.”
Aos 70 anos
de idade e 16 de casado, Caboclo Alencar não teve filhos, e, por isso, sabe que
a sua herança vai terminar ficando para Itabuna:
O ABC DA NOITE DO CABOCLO ALENCAR, NO
BECO DO FUXICO.
Acertei o
título?
(ITABUNA Histórias e Estórias. EDITUS Editora da Uesc -Ano
2003)
Adriana Dantas Andrade-Breust
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