Machado e o realismo cético
Vive a literatura brasileira sob a inarredável presença de
Machado de Assis, que nos empurra de um lado para outro, exige que o decifremos
e analisemos, que o neguemos várias vezes antes de curvarmos a cabeça diante de
sua força. Quem foi na realidade o Bruxo, de que maneira se apossou ele da
inteligência e das emoções de um País? Conquistou um estilo que não se confunde
com nenhum outro, compreendeu-nos como ninguém e até zombou de nós todos que
vivemos neste vale de ciúmes.
A vasta bibliografia machadiana passou a ter, nesta passagem de um século a
outro, mais uma análise de boa qualidade. É a do recém-lançado livro de Luiz
Alberto Pinheiro de Freitas, "Freud e Machado de Assis: uma interseção
entre psicanálise e literatura". Postou-se aí o autor em posição correta
diante da esfinge Machado, ao dizer, desde o começo, que a psicanálise é
"um saber conjuntural e conjectural", que leva a "dúvida"
como base de um caminho. Também na "dúvida" se colocava Machado em
sua análise do inconsciente, de modo parecido com o que Freud adotaria anos
mais tarde. Foi na literatura (Ésquilo, Sófocles, Shakespeare, Goethe,
Dostoievski) que Freud encontrou exemplos que pudessem elucidar suas teses.
Talvez por ser, a literatura, ao contrário do estilo monológico das ciências
exatas, o diálogo sendo também um caminho para a dúvida, enquanto o monólogo
busca a certeza.
A parte central do livro de Luiz Alberto é a análise das
mulheres de/em Machado de Assis, principalmente suas mulheres
"pecadoras": a Virgília de "Memórias Póstumas de Brás
Cubas", a Marcela do mesmo romance, a Sofia de "Quincas Borba" e
Capitu de "Dom Casmurro". Em contextos diferentes, analisa também
Helena, Iaiá Garcia, a Flora de "Esaú e Jacó", Fidélia e Carmo de
"Memorial de Aires". O ciúme e a traição envolvem os personagens, em
tragédias silenciosas ou não tanto, em textos a que não faltam o humor e a
ironia. A densidade psicológica da população machadiana abre caminhos na compreensão
de um relismo antes de tudo cético. Nota o autor do livro de agora:
"O texto machadiano, na atualidade, está muito
valorizado na medida em que ele está fundado no pessimismo e no humor. Machado
percebia, com clareza, o lado trágico das relações humanas. Este lado trágico,
já presente em Shakespeare e Sófocles, para citar dois autores muito presentes
na literatura freudiana, nos fala do permanente mal-entendido dos encontros
humanos, de um ser humano permanentemente acossado por outro, pelas forças da
natureza, bem como pelo pior de todos os detratores - seu mundo interno."
A primeira "pecadora", Virgília, apresenta uma
certa naturalidade gozosa no adultério. O "realismo cético" surge, em
"Brás Cubas", com uma força literária que vinha revelar um novo
Machado, em nada parecido com o de "Ressurreição", "Iaiá
Garcia" e "Helena". Falando em "filosofia cética e
proustiana", cita Luiz Alberto trecho de "Brás Cubas", em que
Brás diz:
"Creiam-me, o menos mau é recordar; ninguém se fie da fidelidade presente; há nela uma gota de baba de Caim. Corrido o tempo e cessado o espasmo, então sim, então talvez se pode gozar deveras, porque entre uma e outra dessas duas ilusões, melhor é a que se gosta sem doer".
Nada mais "realismo cético" do que isto. Mas logo
depois, em "Quincas Borba", mais atravessado de tragédia do que seus
outros romances, paixão, ciúme, e loucura se misturam. O ciúme está acima de
tudo, principalmente no homem, no macho, oprimido pela mulher que atrai outras
atenções.
A Sofia de "Quincas" não trai, mas joga o jogo da
sedução em que envolve tanto o marido, Palha, como o apaixonado Rubião, na
ingenuidade que o tornou insano. Luiz Alberto chama-a de "metade gente,
metade cobra". Seus diálogos, com o marido de um lado, com Rubião do outro,
são obras primas de atração por parte da mulher, com idas e vindas entre o
oferecimento e a quase entrega, ligados a um recuo em que a sedução se esmera
em abrir uma certeza para o futuro. Ela brinca também com o marido,
chamando-lhe a atenção para o assédio tranquilo do apaixonado.
Capitu é, sem dúvida, o ápice da criação literária
brasileira, com seus olhos de ressaca, sua objetividade no armar situações e
seu fim mais ou menos solitário. Se Virgília traiu e Sofia deu a entender que
sim, mas não, de Capitu há certezas num e noutro lado. Os livros de Fernando
Sabino e Domicio Proença Filho dizem e não dizem, o brasilianista William
Grossman, professor na Universidade de Nova York, organizador de um julgamento
em que seus alunos dariam o veredicto de traição ou não, depois das falas de um
promotor e uma advogada de defesa (o resultado absolveu Capitu) estão entre os
muitos que se curvaram sobre o mistério de Capitu.
Dir-se-ia que Machado, que foi feliz no casamento (a Carmen
de "Memorial de Aires" seria um retrato de Carolina) aceitava a frase
que Victor Hugo colheu no Chateau de Chambord, "Souvent femme varie/Bien
fol est qui s'y fie!" (Muitas vezes a mulher varia/Bem tolo é quem nela se
fia!). Hugo usou os versos em seu texto "Le roi s'amuse" e a adaptação
da ópera de Verdi, inspirada em Hugo, "Rigoletto" popularizou a
"La donna è mobile"...
"Freud e Machado de Assis: uma intercessão entre
psicanálise e literatura", de Luiz Alberto Pinheiro de Freitas, merece
atenção. Lançamento da Editora Mauad, projeto gráfico do Núcleo de Arte Mauad.
Tribuna da Imprensa em 09/01/2002
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Antonio Olinto - Quinto ocupante da Cadeira nº 8 da ABL,
eleito em 31 de julho de 1997, na sucessão de Antonio Callado e recebido em 12
de setembro de 1997 pelo acadêmico Geraldo França de Lima. Recebeu o acadêmico
Roberto Campos. Faleceu dia 12 de setembro de 2009.
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