Ultraje
A resposta da ministra Cármen Lúcia à pergunta do jornal O
GLOBO — “E agora, Brasil?” — exprime de forma luminosa a gravidade do momento
que estamos vivendo. “E agora, brasileiros? O que vocês, incluindo todos nós,
vão fazer para mudar? Este é o momento de despertar, como em outras
oportunidades que tivemos”.
A apresentação da lista de Janot é um destes momentos raros
na vida das nações em que sentimos com um misto de exaltação e inquietação que
a história se acelera e que estamos jogando o nosso destino. À frente, uma encruzilhada:
um salto em direção ao futuro ou a regressão ao charco em que o país agonizava
sem que soubéssemos. Chegou a hora da verdade.
A denúncia do procurador-geral revela a metástase da
corrupção que devastou o Brasil. O sistema político implodiu, fez-se um campo
de ruínas. Exacerba-se o desespero dos políticos que, desmascarados, não pensam
em nada senão em salvar a própria pele, custe o que custar. Da tentativa de
aprovação a toque de caixa de uma autoanistia à adoção do voto em lista fechada
para assegurar sua reeleição e foro especial, as tramoias urdidas no Congresso
provocam uma sensação de náusea.
Vivemos tempos de “italianos” e “amigos”, todos amigos dos
amigos, tempos de mafiosos, bandidos com codinomes, batizados por empresas
criminosas. O que explica o sorriso meio irônico, meio Mona Lisa, do insondável
Marcelo Odebrecht.
O Brasil tem um vasto capital de homens e mulheres dignos. A
respeito da autoanistia, o ex-presidente do Supremo Tribunal Federal Ayres
Britto foi cristalino: “Não existe a figura da autoanistia. O Estado não pode
perdoar a si mesmo, é inconcebível, um disparate, um contrassenso, uma
teratologia. É a negação do estado de direito”.
A introdução do voto em lista fechada, controlada pelos
caciques dos partidos e com lugar reservado para os detentores de mandato,
expropria o eleitor do seu direito de escolha e os cidadãos do direito de se
candidatar. Garante a esta gente seu foro privilegiado ainda que à custa de
mumificar a representação política, impedindo toda e qualquer esperança de
renovação. É este objetivo escuso que está por trás da manobra, e não qualquer
preocupação com a reforma do sistema eleitoral.
O desfecho do processo de reconstrução nacional, que é o
sentido profundo da Lava-Jato, está à vista. A afirmação de que ninguém está
acima da lei vence a descrença e muda o Brasil. Daí a violência da reação
destes que sentem seu poder e seus privilégios ameaçados. Já não têm mais nada
a perder, nem honra, nem dignidade. Em suas próprias palavras, sua única
preocupação é “estancar a sangria”. Comportam-se como feras acuadas, dispostas
a tudo.
A desfaçatez dos políticos à cata de impunidade contém outro
imenso risco, o de deixar intactos os múltiplos esquemas de corrupção ainda não
alcançados pela Lava-Jato. É provável que o que já veio à tona seja apenas a
ponta de um iceberg cuja parte ainda submersa se espraia por todos os níveis da
administração pública, estatais, fundos de pensão, agências reguladoras, enfim,
por todo e qualquer espaço em que haja recursos públicos a serem
saqueados.
Há os que argumentam que a investigação e a punição dos
culpados abrem uma crise institucional que desestabiliza a economia. Nonadas. O
que destroça a economia é o megassistema de corrupção. O que gera instabilidade
é a impunidade. A volta por cima que estamos dando só valoriza nossa imagem e
lugar no mundo.
Há que dar um basta às tentativas de impunidade sob pena de
perpetuação do sistema de corrupção. Como alertou um dos procuradores da
Lava-Jato, uma noite no Congresso pode destruir tudo o que se vem construindo
nos últimos anos. Autoanistia e ameaças a juízes e procuradores representam um
último ultraje à população que exige decência. São aberrações que não podem
passar sob pena de desmoralização da democracia.
Atenção às palavras da ministra Cármen Lúcia. “Acho que
talvez estejamos quase na ruptura de um modelo político-institucional em que
passavam-se coisas que não vinham a público e, se viessem, dava-se um jeitinho.
Agora, não. Agora o jeito é aplicar a lei, e será aplicada! Há juízes no Brasil
para aplicar a lei, e ponto. Podem acreditar nisso!”
Acreditamos. Agora, mais do que acreditar, é preciso agir.
Os que queremos a redenção do Brasil não podemos ser espectadores, temos que
ser protagonistas. Cada gesto conta, cada palavra dita ou escrita, cada opinião
compartilhada em conversas, redes e blogs, cada protesto público. Se assim for,
a impunidade não passará.
O Globo, 25/03/2017
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Rosiska
Darcy de Oliveira - Sexta ocupante da cadeira 10 da ABL, eleita em 11 de
abril de 2013, Rosiska Darcy de Oliveira é escritora e ensaísta. Sua obra
literária exprime uma trajetória de vida. Foi recebida em 14 de junho de 2013
pelo Acadêmico Eduardo Portella, na sucessão do Acadêmico Lêdo Ivo, falecido em
23 de dezembro de 2012.
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