Os velórios do povoado
Os
velórios no Salobrinho sempre foram ambientes de algazarra e confusão,
especialmente quando se tratava do falecimento de pessoas humildes. Logo a
notícia corria levando pesar aos mais sensíveis e contentamento a outros, que
encaravam o episódio com naturalidade, porque viam naquilo uma opção para uma
noitada alegre, já que a presença de contadores de lorotas era certeza.
Ao
anoitecer, as pessoas iam chegando, e as mais curiosas se aproximavam do ataúde
com certa inibição, suspendiam timidamente o lençol que envolvia o corpo,
olhavam rapidamente a cara do finado, e ficavam por ali aguardando a chegada
dos potoqueiros. Os homens, notadamente ficavam no terreiro e se acomodavam em
qualquer lugar. As mulheres, na cozinha, preparavam o café que normalmente era
servido com bolacha; os fiéis à cachaça preferiam tomar repetidas doses de
aguardente, que servia de estímulo para abrir o repertório de piadas, e as
mulheres rezadeiras, quando ficavam desinibidas, danavam-se a cantar benditos
em sufrágio da alma do defunto, num canto triste, que ressoava como um agouro
por todo o povoado e, varando madrugada a dentro ia até à manhã.
Os
inveterados se realizavam: eram atraídos aos velórios mais pela certeza de que
não faltaria cachaça, que propriamente por solidariedade e os mais assíduos
frequentadores eram: João Paulo, Mestre Vitorino, Manoel Crispim, Pedro Lagoa,
Eugênio, José Pinto, Gaudêncio – este era pedinte, e “trabalhava” em Itabuna -
, Pedro Pôia, Raimundo Francisco da Hora (Cardeal), o último morreu na mais
completa miséria há pouco tempo. Eram tantos, que relacioná-los seria
impossível.
Em relação
aos contadores de estórias, podemos citar aqui dois nomes célebres na matéria:
João Paulo e Alberto. Foi justamente num velório, que ouvimos de Alberto,
sertanejo destemido, uma série de casos engraçados, e o mais interessante é que
ele os contava com uma seriedade incrível que realmente pareciam verdadeiros.
“Foi lá
pras bandas de Xique-Xique”, assim começava a sua estória... Contou-nos que um
certo dia, ao cair da tarde, deixou o acampamento e, pegando a sua espingarda,
saiu para uma rápida caçada. Penetrou a caatinga a procura de uma caça qualquer
porém sem lograr êxito, resolveu retornar; eis que de repente uma musiquinha
suave soou aos seus ouvidos. Parou... Estava surpreso com o que ouvia. Olhando
para os lados não viu nenhum sinal de presença humana: como explicar tal
fenômeno? Por ali não havia nada que comprovasse existência de aparelho sonoro.
Alberto, ficava cada vez mais estarrecido, todavia procurou certificar-se de
que realmente não estava delirando e calmamente foi andando em direção a um
mandacaru que ficava perto dali. O vento forte quebrava a quietude com o farfalhar dos arbustos tostados pelo sol. O
caçador estranhando aqueles acordes, aos poucos, foi se aproximando da árvore e aí sentiu que
a música ficava cada vez mais audível e, ao olhar para o alto, viu, com
surpresa, que tratava-se de um antigo LP, rotação 78, preso entre os galhos do
velho mandacaru. Segundo Alberto, à proporção que o vento balançava o
arbusto, o espinho corria suave nos sulcos
do disco, emitindo baixinho uma velha e conhecida canção: “olê mulher
rendeira/olê mulher rendá/tu me ensina a fazer renda/ que eu te ensino a namorar”.
Assim era demais. Não havia quem não sorrisse ante tamanho absurdo: até mesmo
os parentes do falecido, por um momento esqueciam o dissabor, pois quando davam
conta de si, estavam também, participando do festival de gargalhadas. Menos
“sêo” Alberto, que acendendo mais um cigarro já se preparava para dar início a mais um potoca. Na verdade,
eram realmente assim os velórios do povoado.
(Salobrinho – ENCANTOS E DESENCANTOS DE UM POVOADO)
Sherney Pereira
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Sherney de Souza Pereira - nasceu a 11 de outubro de 1948 no
eixo Ilhéus/Itabuna, mais precisamente no município de Ilhéus.
É cordelista, com vários trabalhos publicados e autor do
Hino da Universidade de Santa Cruz, premiado em concurso público por ocasião do
4º aniversário da FESPI.
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