Total de visualizações de página

segunda-feira, 13 de março de 2017

OS VELÓRIOS DO POVOADO – Sherney Pereira

Os velórios do povoado

            Os velórios no Salobrinho sempre foram ambientes de algazarra e confusão, especialmente quando se tratava do falecimento de pessoas humildes. Logo a notícia corria levando pesar aos mais sensíveis e contentamento a outros, que encaravam o episódio com naturalidade, porque viam naquilo uma opção para uma noitada alegre, já que a presença de contadores de lorotas era certeza.

            Ao anoitecer, as pessoas iam chegando, e as mais curiosas se aproximavam do ataúde com certa inibição, suspendiam timidamente o lençol que envolvia o corpo, olhavam rapidamente a cara do finado, e ficavam por ali aguardando a chegada dos potoqueiros. Os homens, notadamente ficavam no terreiro e se acomodavam em qualquer lugar. As mulheres, na cozinha, preparavam o café que normalmente era servido com bolacha; os fiéis à cachaça preferiam tomar repetidas doses de aguardente, que servia de estímulo para abrir o repertório de piadas, e as mulheres rezadeiras, quando ficavam desinibidas, danavam-se a cantar benditos em sufrágio da alma do defunto, num canto triste, que ressoava como um agouro por todo o povoado e, varando madrugada a dentro ia até à manhã.

            Os inveterados se realizavam: eram atraídos aos velórios mais pela certeza de que não faltaria cachaça, que propriamente por solidariedade e os mais assíduos frequentadores eram: João Paulo, Mestre Vitorino, Manoel Crispim, Pedro Lagoa, Eugênio, José Pinto, Gaudêncio – este era pedinte, e “trabalhava” em Itabuna - , Pedro Pôia, Raimundo Francisco da Hora (Cardeal), o último morreu na mais completa miséria há pouco tempo. Eram tantos, que relacioná-los seria impossível.

            Em relação aos contadores de estórias, podemos citar aqui dois nomes célebres na matéria: João Paulo e Alberto. Foi justamente num velório, que ouvimos de Alberto, sertanejo destemido, uma série de casos engraçados, e o mais interessante é que ele os contava com uma seriedade incrível que realmente pareciam verdadeiros.

            “Foi lá pras bandas de Xique-Xique”, assim começava a sua estória... Contou-nos que um certo dia, ao cair da tarde, deixou o acampamento e, pegando a sua espingarda, saiu para uma rápida caçada. Penetrou a caatinga a procura de uma caça qualquer porém sem lograr êxito, resolveu retornar; eis que de repente uma musiquinha suave soou aos seus ouvidos. Parou... Estava surpreso com o que ouvia. Olhando para os lados não viu nenhum sinal de presença humana: como explicar tal fenômeno? Por ali não havia nada que comprovasse existência de aparelho sonoro. Alberto, ficava cada vez mais estarrecido, todavia procurou certificar-se de que realmente não estava delirando e calmamente foi andando em direção a um mandacaru que ficava perto dali. O vento forte quebrava a quietude com  o farfalhar dos arbustos tostados pelo sol. O caçador estranhando aqueles acordes, aos poucos,  foi se aproximando da árvore e aí sentiu que a música ficava cada vez mais audível e, ao olhar para o alto, viu, com surpresa, que tratava-se de um antigo LP, rotação 78, preso entre os galhos do velho mandacaru. Segundo Alberto, à proporção que o vento balançava o arbusto, o espinho corria suave nos sulcos do disco, emitindo baixinho uma velha e conhecida canção: “olê mulher rendeira/olê mulher rendá/tu me ensina a fazer renda/ que eu te ensino a namorar”. Assim era demais. Não havia quem não sorrisse ante tamanho absurdo: até mesmo os parentes do falecido, por um momento esqueciam o dissabor, pois quando davam conta de si, estavam também, participando do festival de gargalhadas. Menos “sêo” Alberto, que acendendo mais um cigarro já se preparava  para dar início a mais um potoca. Na verdade, eram realmente assim os velórios do povoado.

(Salobrinho – ENCANTOS E DESENCANTOS DE UM POVOADO)
Sherney Pereira

---
Sherney de Souza Pereira - nasceu a 11 de outubro de 1948 no eixo Ilhéus/Itabuna, mais precisamente no município de Ilhéus.

É cordelista, com vários trabalhos publicados e autor do Hino da Universidade de Santa Cruz, premiado em concurso público por ocasião do 4º aniversário da FESPI.

* * *

Nenhum comentário:

Postar um comentário