Sociólogo denunciou com lucidez o individualismo e a
desigualdade até o fim de seus 91 anos
Madri - 9 JAN 2017
Com Zygmunt Bauman se
apaga uma das vozes mais críticas da sociedade contemporânea, individualista e
desumana, que definiu como a “modernidade líquida”, aquela em que nada mais é
sólido. Não é sólido o Estado-nação, nem a família, nem o emprego, nem o
compromisso com a comunidade. E hoje “nossos acordos são temporários,
passageiros, válidos apenas até novo aviso”. Essa voz soou lúcida até o fim de
seus 91 anos. Escrevia um, dois ou até três livros por ano, sozinho ou com
outros pensadores, dava palestras e respondia aos jornalistas em entrevistas em
que era preciso escolher muito bem as perguntas, porque as respostas se
estendiam por vários minutos, como em uma sucessão de breves discursos. Esses
sim, muito sólidos.
Falava devagar porque lapidava cada uma de suas frases, um
fio de ideias que daria para mais livros do que assinou em sua prolífica
carreira. Alguns ditados, cabe acreditar que de um fôlego só. Talvez com uma ou
outra pausa para fumar um cachimbo.
O sociólogo e filósofo de origem polonesa (Poznan, 1925)
morreu no domingo “na sua casa em Leeds, junto da família”, anunciou a
colaboradora Aleksandra Kania em nome dos familiares. Em sua longa vida sofreu
os horrores do século XX — a guerra, a perseguição, os expurgos, o
exílio — mas nada disso o tornou conformista em relação ao que veio
depois.
Durante mais de meio século, foi um dos mais influentes
observadores da realidade social e política, o flagelo da superficialidade dominante
no debate público, crítico feroz da bolha liberal inflada por Reagan e Thatcher
nos anos 1980 e que estourou mais de 30 anos depois. Retratou com agudeza o
desconcerto do cidadão de hoje diante de um mundo que não oferece seguranças às
quais se agarrar.
Referia-se ao novo proletariado como “precariado”, com a
diferença de que não tem consciência de classe. Figura muito respeitada pelos
movimentos de indignados do novo século (do 15 de Março espanhol ao Occupy Wall Street),
ele entendia seus motivos e se interessava por suas experiências, mas apontava
suas debilidades e incongruências, convencido de que é mais fácil unir no
protesto que na proposta.
Desconfiava do “ativismo de sofá”, que quer mudar o
mundo por meio de cliques, e relativizava o poder que se atribui às redes
sociais, porque pensava que o verdadeiro diálogo só se produz nas interações
com os diferentes, e não nessas “zonas de conforto” onde os internautas debatem
com quem pensa igual a eles.
Sua trajetória corroborava sua autoridade intelectual. Tinha
13 anos quando sua família — judia, mas não religiosa — escapou da
invasão nazista na Polônia em 1939 e se refugiou na União Soviética. Mais
tarde, o jovem Zygmunt se alistou na divisão polonesa do Exército vermelho, o
que lhe valeu uma medalha em 1945. Depois da guerra, voltou a Varsóvia,
casou-se com Janina Lewinson (sobrevivente do gueto de Varsóvia, também
escritora e sua companheira até a morte, em 2009) e conciliou sua carreira
militar com os estudos universitários, além da militância no Partido Comunista.
A decepção chegou quando se viu, mais uma vez, na mira do
antissemitismo durante os expurgos realizados na Polônia em 1968, depois de uma
série de protestos estudantis e de grupos de artistas contra a censura do
regime e no contexto internacional da Guerra dos Seis Dias. Naquele mesmo ano,
Bauman teve de deixar sua terra natal pela segunda vez.
Instalou-se primeiro em Tel Aviv e, a partir de 1972, na Universidade de Leeds (Inglaterra), de onde só saía para explicar seu pensamento pelo mundo.
Instalou-se primeiro em Tel Aviv e, a partir de 1972, na Universidade de Leeds (Inglaterra), de onde só saía para explicar seu pensamento pelo mundo.
Quando chegou a Leeds, Bauman já era uma autoridade no campo
da sociologia. Logo se tornou o equivalente mais próximo a uma celebridade que
poderia haver nessa disciplina: foi a partir do livro Modernidade Líquida,
publicado em 2000, o mesmo ano que surgiu em Seattle o movimento de protesto
contra a globalização.
Resistente ao termo “pós-modernidade” (porque falta
perspectiva histórica para dar por terminada a modernidade), Bauman dizia: “O
que temos é uma versão privatizada da modernidade”. Hoje a esfera pública se
resume a um “palco onde se confessam e se exibem as preocupações privadas”. E
advertia contra as “comunidades-cabide”, momentâneas, declarava “o fim da era
do compromisso mútuo”, alertava que “não há mais líderes, só assessores”. E
concluía: “Uma vez que as crenças, valores e estilos foram privatizados (....),
os lugares que se oferecem para a reacomodação lembram mais um quarto de hotel
que um lar”.
Voltou a essas obsessões em dezenas de livros. Em alguns dos
mais recentes (Estado de Crise e A Riqueza de Poucos Beneficia Todos
Nós?), dirigiu seu olhar aos perdedores de uma crise que ele não via como um
buraco, mas como o novo cenário. E, em sua última obra publicada, Estranhos
à Nossa Porta, observa a crise dos refugiados a partir da compreensão da
ansiedade que gera na população e da rejeição a cercas e muros. O pensador
voltava, assim, a um dos temas que mais o preocuparam: a
rejeição do outro, o medo do diferente, de que já tinha tratado em seus
primeiros anos em Varsóvia em relação ao antissemitismo.
Com sua figura espigada, seus cabelos brancos revoltos e seu
cachimbo nos lábios, Bauman posava para o fotógrafo há um ano nas ruas de
Burgos com a atitude de uma estrela do rock.
Podia ser pessimista, mas nunca foi ranzinza. Nunca quis escrever para nos agradar. Mas para nos agitar.
Podia ser pessimista, mas nunca foi ranzinza. Nunca quis escrever para nos agradar. Mas para nos agitar.
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