24 de dezembro de 2016
Revista Catolicismo
Nesta magna festividade da Cristandade, desejando a todos
nossos leitores e colaboradores um Santo e Feliz Natal, oferecemos-lhes uma
matéria com admiráveis considerações sobre a autêntica “Paz na Terra” — que,
segundo Santo Agostinho, é a “tranquilidade na ordem” — que tanto almejamos e,
a fim de alcançá-la, a indispensável “Glória a Deus no mais alto dos Céus” —
que não pode ficar relegada a um segundo plano.
A glória de Deus no alto dos Céus, aspecto secundário do
Natal?
“Admirável profundidade de toda palavra inspirada! Tão
simples que até uma criança o pode compreender, o cântico dos Anjos de Belém — Glória
a Deus no mais alto dos Céus, e paz na Terra aos homens de boa vontade (Lc.
2, 14) — encerra entretanto verdades das mais profundas”.
Plinio Corrêa de
Oliveira
Reprodução de Catolicismo, nº 156, Dezembro de 1963
Repousais, Senhor, em vosso misérrimo e augustíssimo
presépio, sob os olhos da Virgem, vossa Mãe, que vertem sobre Vós os tesouros
inauferíveis de seu respeito e de seu carinho. Jamais uma criatura adorou com
tão profunda e respeitosa humildade o seu Deus. Nunca um coração materno amou
mais ternamente seu filho. Reciprocamente, jamais Deus amou tanto uma mera
criatura. E nunca filho amou tão plenamente, tão inteiramente, tão
superabundantemente sua mãe.
Toda a realidade desse sublime diálogo de almas pode conter-se
nestas palavras que indicam aqui todo um oceano de felicidade, e que em ocasião
bem diversa haveríeis de dizer um dia do alto da Cruz: “Mãe, eis aí teu
filho. Filho, eis aí tua Mãe” (cfr. Jo. 19, 26). E, considerando a
perfeição deste recíproco amor, entre Vós e vossa Mãe, sentimos o cântico
angélico que se levanta das profundezas de toda alma cristã: “Glória a
Deus no mais alto dos Céus, e paz na Terra aos homens de boa vontade” (Luc.
2, 14).
Fala-se mais de paz do que da glória de Deus
Adoração dos Reis Magos (detalhe) – Georges Lallemand, 1624.
Hermitage, São Petersburgo
“Paz na Terra aos homens de boa vontade”: o jogo complicado,
mas célere das associações de imagens me faz sentir imediatamente que em
numerosas ocasiões no ano que finda ouvi falar de paz, e de homens de boa
vontade. Curioso… dou-me conta de que ouvi falar menos, e até muito menos, da
glória de Deus no mais alto dos Céus. A bem dizer, disto quase não ouvi falar.
Nem mesmo implicitamente; pois implicitamente se fala da glória de Deus quando
se afirmam os soberanos direitos d’Ele sobre toda a criação, e, por amor a Ele,
se reivindica o cumprimento de sua Lei por parte dos indivíduos, famílias,
grupos profissionais, classes sociais, regiões, nações, e toda a sociedade internacional.
Por que este silêncio? — Pergunto-me. Por que os homens
querem tanto a paz? Por que tantos homens se ufanam de ter boa vontade? E por
que tão poucos são os que se preocupam com a glória de Deus, e se blasonam de
por ela agir e lutar?
A paz dos homens vale mais que a glória de Deus?
Em outros termos, o fato essencial do vosso Santo Natal,
Senhor, seria só a paz na Terra para os homens de boa vontade? E a glória de
Deus no mais alto dos Céus seria como que um aspecto colateral, longínquo,
confuso e insípido para os homens, do grande evento de Belém?
Em outros termos ainda, a paz dos homens vale mais que a
glória de Deus? A Terra vale mais que o Céu? O homem vale então mais do que
Deus? E a paz na Terra pode ser obtida, conservada e até incrementada sem que
com isto nada tenha a ver a glória de Deus?
Por fim, o que é um homem de boa vontade? É o que só quer a
paz na Terra, indiferente à glória de Deus no Céu?
Todas estas questões convidam a uma detida análise do
cântico angélico.
Meditar no Santo Natal de modo transcendente
Admirável profundidade de toda palavra inspirada! Tão
simples que até uma criança o pode compreender, o cântico dos Anjos de Belém
encerra entretanto verdades das mais profundas.
Como é proveitoso, pois, nutrir o espírito com essas
palavras, para participar devidamente das festas do Santo Natal!
Ajudai-nos, Mãe Santíssima, Sede da Sabedoria, com vossas
preces, para que, iluminados pelas claridades que de Jesus dimanam, possamos
entender o cântico angélico que é o mais perfeito e autorizado comentário do
Natal.
“Se só Deus é bom, a boa vontade autêntica é a que se volta
toda para Deus, e ama o próximo, não pelo mero amor do próximo, mas pelo amor
de Deus”
“Boa vontade” em relação a quem?
“Homem de boa vontade”: o que representa isto aos olhos de
tantos e tantos de nossos contemporâneos?
Para o sabermos, basta indagar: boa vontade para com quem? A
resposta salta impetuosa e impaciente, como sói acontecer quando a pergunta tem
algo de ocioso por inquirir o que é quase evidente. Ora bolas, dirão muitos de
nossos coetâneos, boa vontade para com o próximo. Aquele que, ateu ou sequaz de
uma religião, seja ela qual for, adepto da propriedade privada, do socialismo
ou do comunismo, quer que todos os homens vivam alegres, na fartura, sem
doenças, sem lutas, sem riscos, aproveitando o mais possível esta vida, este é
um homem de boa vontade.
Visto nesta perspectiva, o homem de boa vontade é um
artífice da paz. Diz o ditado que “em casa onde falta o pão, todos brigam
e ninguém tem razão”. Logo, onde há pão todos têm razão e há paz. Onde há pão,
teto, remédios, segurança, com maior razão há necessariamente a paz.
Paz terrena libertada de implicações religiosas?
E a glória de Deus? Para o “homem de boa vontade” assim
concebido, é ela um elemento supérfluo no que se refere à paz na Terra. Pois é
da adequada ordenação da economia que decorre a boa ordem na vida social e
política, e portanto a paz.
“Supérfluo” é dizer pouco, a respeito da glória de Deus no
Céu, considerada em função da paz na Terra. Como alguns homens creem em Deus, e
outros não creem, e como entre os que creem há diversidade no modo de entender
Deus, este último pode atuar como perigoso fautor de divisões, discussões e
polêmicas. Deus é um senhor por demais comprometido há milhares de anos em
polêmicas, para que dele se fale a toda hora. Para ter paz na Terra é melhor
não estar falando a todo momento sobre Deus e sua glória no Céu.
E depois… o Céu é tão vago, tão longínquo, tão incerto! Que
dele falassem os Anjos, vá lá, pois lá moram. Mas nós homens, cuidemos da
Terra.
Unir a glória celeste à paz terrestre é para o “homem
de boa vontade” algo de tão incorreto, supérfluo e pejado de fatores de
luta como é, por exemplo, imprudente unir a Igreja ao Estado. A Igreja livre do
Estado e o Estado livre da Igreja, eis um anelo bem típico do “homem de
boa vontade”. A paz terrena libertada de implicações religiosas, e Deus no seu
Céu e sua glória, sorrindo de braços cruzados para a Terra em paz, a uma tal
distância da Terra que lá não chegue nem sequer o Lunik, eis o ideal do “homem
de boa vontade”.
Sem que os homens deem glória a Deus, não há paz no mundo
Adoração dos Reis Magos (detalhe) – Wouter Pietersz Crabeth
II. Museum het Catharina Gasthuis Gouda, Paises Baixos
Estas são as considerações do “homem de boa vontade” entre
aspas, cujo coração está longe do Céu, e cujo olhar só se detém sobre a Terra.
Contudo, quanto divergem elas do sentido próprio e natural
do cântico angélico!
Realmente, se o Natal dá glória a Deus no mais alto dos Céus
e simultaneamente é a fonte da paz na Terra para os homens de boa vontade — foi
o que os Anjos proclamaram em seu cântico — não se pode dissociar uma coisa da
outra. Sem que os homens deem glória a Deus, não há paz no mundo. E a guerra,
enquanto considerada no agressor culpado, é incompatível com a glória de Deus.
Vós, Senhor Jesus, Deus humanado, sois entre os homens o
Príncipe da Paz. Sem Vós a paz é uma mentira e, afinal, tudo se converte em
guerra.
E é porque os homens não compreendem isto, que procuram de
todos os modos a paz, mas a paz não habita no meio deles.
A “boa vontade” inautêntica e agnóstica
O que é então o homem de boa vontade, se não é o homem que
ama o próximo? Será porventura o que odeia seu próximo?
Ao fariseu, que Vos chamou de bom Mestre, perguntastes: por
que Me chamais de bom, se só Deus é bom? (cfr. Luc. 18, 19 ).
Se só Deus é bom, a boa vontade autêntica é a que se volta
toda para Deus, e ama o próximo, não pelo mero amor do próximo, mas pelo amor
de Deus. O homem é tal, que não pode amar o próximo pelo próximo. Ou o ama por
amor de si mesmo, e isto é egoísmo. Ou o ama por Deus, e isto sim é amor
verdadeiro.
Em consequência, a “boa vontade” agnóstica e a paz terrena
que ela tende a instaurar, nem são boa vontade autêntica, nem paz verdadeira.
E o falso “homem de boa vontade” é em última análise um
semeador de guerras e um artífice de ruínas.
Paz é a mera abstração de controvérsias?
Mas, dirá alguém, como pode ser Jesus o fundamento da paz,
se ninguém como Ele tem suscitado tanto ódio? O populacho, cumulado por Ele de
favores espirituais e materiais de toda ordem, preferiu Barrabás, um bandido.
Isto não é ódio? Os Imperadores contra Ele moveram perseguições atrozes. Os
arianos contra Ele mobilizaram todas as potências da Terra. Depois vieram os
maometanos. E depois, e depois, todos os grandes vagalhões da História, até o
nazismo e o comunismo. Aliás, acrescentaria talvez alguém, Simeão bem exprimiu
essa verdade, profetizando que Ele seria ao longo da História uma pedra de
escândalo, um sinal de contradição para a morte e ressurreição de muitos (cfr.
Luc. 2, 34). Ele próprio disse de Si que trazia à Terra o gládio (cfr. Mat. 10,
34). Por melhor que tudo isto seja — poderia argumentar um “homem de boa
vontade” entre aspas —, a verdadeira paz, isto é, uma plena e completa
desmobilização dos espíritos, uma inteira cessação não só de todas as guerras
como de todas as polêmicas, não é possível com Jesus Cristo. A paz só é
autêntica quando abstrai de todas as controvérsias, inclusive aquelas a que
Jesus Cristo — sem culpa própria, concede o “homem de boa vontade” —
dá ocasião.
A verdadeira paz não exclui a luta do bem contra o mal
Sim, diria um homem de boa vontade autêntico, isto é, um
homem que com todas as veras de sua alma ama a Deus.
Neste caso, é por burla que a Escritura chama Jesus Cristo
Príncipe da Paz (cfr. Is. 9, 6), e a Igreja, fazendo eco ao Batista (cfr. Jo.
1, 29 e 36), O apresenta como um manso Cordeiro a quem os homens devem pedir o
dom da paz: “Agnus Dei, qui tollis peccata mundi, dona nobis pacem” (Eis
o Cordeiro de Deus, Aquele que tira o pecado do mundo — Jo, 1, 29).
Ou é por que a verdadeira paz não exclui a luta do bem
contra o mal, a polêmica entre a luz e as trevas, o perpétuo esmagar da cabeça
da Serpente pela Virgem sem mancha, a hostilidade entre a raça oriunda da
Virgem e a raça da Serpente? A paz é a ordem de Cristo no Reino de Cristo. Ela
tem, pois, como condição a luta dos sequazes de Cristo contra os inimigos de
Cristo. A paz de Cristo não se identifica de modo nenhum com a falsa paz, sem
lutas nem polêmicas, do pretenso “homem de boa vontade”.
Três grandes lições, ó Deus-Menino, recolhemos do vosso
Santo Natal. Ficamos sabendo que não há paz na Terra sem Vós. Que homem de boa
vontade autêntico não é quem ama o homem pelo homem, mas quem o ama por amor de
Vós. E que vossa Paz inclui a cessação de todas as lutas exceto a vossa
incessante e gloriosa guerra contra o demônio e seus aliados, isto é, o mundo e
a carne.
Virgem Maria, Medianeira de todas as graças, debruçada em
adoração sobre o Deus-Menino, obtende-nos uma plena compenetração de todas estas
verdades.
E permiti que nas perspectivas que elas desvendam, cantemos
convosco e com todas as criaturas celestes e terrenas das quais sois Rainha:
“Glória a Deus no mais alto dos Céus, e paz na Terra aos
homens de boa vontade”.
Adoração dos Reis Magos – Giuseppe Chiari, séc. XVIII. Santa
Maria del Suffragio, Roma
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