Os sacerdotes Hugo Lassalle (Superior dos jesuítas no Japão), Hubert Schiffer,
Wilhelm Kleinsorge e Hubert Cieslik [assinalados no círculo da foto] estavam
em Hiroshima no momento da explosão da bomba atômica. Eles se encontravam na
casa paroquial da igreja de Nossa Senhora da Assunção, um dos poucos edifícios
que resistiu à bomba. Um dos sacerdotes estava celebrando a Santa Missa, outro
tomava o café da manhã e os demais se encontravam em dependências da paróquia.
Plinio Maria Solimeo
No dia 6 de agosto de 1945, solenidade da Transfiguração de
Nosso Senhor e praticamente no fim da II Guerra Mundial, a aviação americana
lançou sobre a cidade de Hiroshima, no Japão, a bomba atômica “Little Boy”, de
urânio, que provocou a morte de 140 mil pessoas, mais de 70 mil feridos, e
grande parte da cidade destruída. Três dias depois, a mesma aviação lançou a
bomba nuclear de plutônio, “Fat Man”, sobre a cidade de Nagasaki. Essa bomba
destruiu a catedral da Imaculada Conceição, matando muitos católicos que
estavam no templo. Foi a primeira e única vez em que armas nucleares foram
usadas contra alvos civis.
Devido à radiação, entre dois a quatro meses após os ataques
atômicos, os efeitos agudos das explosões mataram entre 90 e 166 mil pessoas em
Hiroshima, e 60 a 80 mil em Nagasaki. Durante os meses seguintes, várias
pessoas morreram por causa do efeito de queimaduras, envenenamento radioativo e
outras lesões, que foram agravadas pelos efeitos da radiação.
Nesse terrível cenário, ocorreu nessa cidade um fato
surpreendente, que passou a ser conhecido como o “Milagre de Hiroshima”: quatro
sacerdotes jesuítas alemães sobreviveram à catástrofe, inclusive a seus
efeitos, apesar de estarem muito perto do local onde a bomba explodiu.
Esses religiosos eram os padres Hugo Lassalle (Superior dos
jesuítas no Japão), Hubert Schiffer, Wilhelm Kleinsorge e Hubert Cieslik [assinalados
no círculo da foto acima]. No momento da explosão, eles se encontravam na
casa paroquial da igreja de Nossa Senhora da Assunção, um dos poucos edifícios
que resistiu à bomba. Um dos sacerdotes estava celebrando a Santa Missa, outro
tomava o café da manhã e os demais se encontravam em dependências da paróquia.
O edifício religioso sofreu apenas danos menores, como
vidros quebrados, conforme escreveu o Pe. Hubert Cieslik em seu diário, mas
nenhum dano em consequência da energia atômica liberada pela bomba. O Pe.
Schiffer escreverá depois o livro O Rosário de Hiroshima, no qual
narra tudo o que lhes sucedeu naqueles dias fatídicos.
Os religiosos atribuem sua preservação a uma proteção
particular da Santíssima Virgem, pois “vivíamos a mensagem de Fátima e
rezávamos juntos o Rosário todos os dias”.
Quando, mais tarde, esses jesuítas receberam tratamento
médico, foi-lhes dito que devido à radiação eles teriam lesões graves,
enfermidades, e inclusive uma morte prematura. Porém, contra todas as
expectativas, tal não sucedeu. Nenhum deles teve qualquer transtorno físico.
Pelo contrário, em 1976 — 31 anos depois do lançamento da
bomba —, o Pe. Schiffer participou do Congresso Eucarístico de Filadélfia, onde
relatou sua história. Ele confirmou que os quatros jesuítas ainda viviam, sem
nenhuma enfermidade. Isso foi comprovado por dezenas de médicos que os
examinaram cerca de 200 vezes nos anos posteriores, não encontrando qualquer
sinal da radiação em seus corpos.
O Pe. Hugo Lassalle continuou em Hiroshima, e em 1948
naturalizou-se japonês com o nome Enomiya Mabiki. De passagem por Roma, recebeu
do Papa Pio XII autorização para recolher fundos destinados a reconstruir a
igreja dedicada à Assunção de Nossa Senhora. Em 1959, com a elevação de
Hiroshima a diocese pelo Papa João XXIII, ela passou a ser catedral. Sua
construção começou em 1950 e foi concluída no dia 6 de agosto de 1954, nove
anos após a explosão da bomba atômica.
É preciso dizer que a rendição do Japão se daria na
solenidade da Assunção da Virgem aos Céus, 15 de agosto de 1945, poucos dias
depois da explosão das bombas atômicas.
Hiroshima foi reconstruída totalmente, com aquela tenacidade
própria aos filhos do Sol Nascente, contando hoje com mais de um milhão e cem
mil habitantes.
Gregório de Matos Guerra, alcunhado de Boca do Inferno ou
Boca de Brasa, foi um advogado e poeta do Brasil Colônia. É considerado um dos
maiores poetas do barroco em Portugal e no Brasil e o mais importante poeta
satírico da literatura em língua portuguesa no período colonial. Wikipédia
A notícia
nasceu mofina, desinteressante, naquela casa de porta e janela da Rua dos Sete
Pecados. Engatinhou pela rua abaixo e foi crescendo. Disparada, passou ventando
pelo Largo da Igreja. Engrossou mais ainda na Rua de Cima e atingiu, já gordota,
a Ladeira do Cansa-Cavalos. Aí, na casa do Tonico Salatiel, parou um tiquim – a
mó que descansando do esforço da subida. Voltou, desembestada, já arrebentando
botões de braguilhas, alargando bocas em gargalhadas descontroladas. Os mais
discretos paravam para ouvir os comentários ferinos e seguiam caminho, de nariz franzido e, à flor dos lábios, um
sorriso de incredulidade. Os que não tinham papas na língua comentavam o fato,
sem caridade pela desgraça alheia. Outros, numa papeada danada, ouviam com
atenção, levantavam os olhos para o céu:
- Coitado do
Joaquim-Mutamba! Homim bom, tá ali, sem fel, sem peçonha, sem nada...
Na venda do
Chico Quirino, um da roda falava alto:
- Pois, não
é que o Quincas-Mutamba se estrepou! Mundica desmoralizou o cujo de uma vez.
Também, pra quê se engraçar com uma quenga daquelas?
Confidenciavam-se, esgravatando-se o caso. Dizia Zé Orestes na botica de
Sêo Arrudas, enquanto este suspendia a manipulação de um elixir depurativo:
- A Mundica desceu as calças do
lenheiro, prendeu a cabaça do cujo entre as pernas – nossa, que posição
desgraçada, sô – e aplicou, nos traseiros dele, umas boas chineladas. Foi assim
que me contaram, nhor sim... e eu estou vendendo o peixe pelo mesmo preço da
compra...
Filogônio
Arrudas, o boticário, gostava de eufemismos, empregava palavras de pronúncia
difícil, expressões em desuso. Fazia-se de letrado, de prestígio avantajado,
abusando desse artifício. Falou, sorrindo:
- Então, Zé
Orestes, o glúteo do Quincas ficou como se fora cara de menino rico, sanguínea
e edemática, não é assim?
Zé Orestes
confirmou, com um sorriso canalha na boca desdentada, embora não soubesse o
significada daquelas palavras estranhas aos seus ouvidos. Estimulado pela
curiosidade que lia na cara do boticário, Zé Orestas descreveu a cena com tanta
riqueza de detalhes que Filogônio Arrudas e, logo depois, toda a cidade não
tinham mais dúvidas:Quincas-Mutamba
apanhara – e de chinela! – de Raimunda Pindonga, dita Mundica Tomba-Homem, cuia
das mais muito faladas do sertão de Cateriangongo. Não era aquela a primeira de
suas façanhas comentadas. Diziam que ela já havia tirado a pevide de muito
sujeito de pabulagem. Avalentoava-se à toa, a danada. Não deixava a mandioca
pubar. Suas amigas mais chegadas falavam que a cuja era inté criatura prestativa,
mão-aberta, dadeira sem limites. Mais porém, quando gostava de um homem – coisa
não muito frequente – gostava mesmo muito, muito, desse gostar que deixa a gente
de siso raleiro, não admitindo conselhos e insinuações. Sentia ciúmes e
começava a beber. O pior de tudo era que um dedal de restilo esquentava o
sengue dela, e era aquela lazeira. Trepava nos tamancos. Se o cabra não fosse
esperto, virava molambo entre as pernas dela. Remanisca, forçuda pra danar,
dava logo dois tombos no cujo, prendia-lhe os braços entre as coxas musculosas
e se ria, depois, toda ancha, gozando a derrota do espevitado. Se o preferido,
porém, era forte, cabra sem belida, de ideias alimpadas, a mulata, primeiro,
afrouxava as carnes dele com carinhos de sustança; amolentava-lhe as forças com
mixilanga somente dela conhecida e, quando percebia que o sujeito não aguentava
mais uma gata pelo rabo, investia. Aplicava-lhe cabeçadas na barriga, jogava-o
no chão, arranhava-lhe as bochechas. Despois... bom, despois, sentia remorsos
da doidera praticada, passava meizinhas nas feridas do infeliz, chorava,
chorava, implorando-lhe perdão. Despachava aquele, curtia jejum de homem dois
ou três meses. Por via dessas coisas malucas, foi que o apelido “Tomba-Homem”,
que nela se ajustava que nem visgo, pelo sertão se espalhou como azeite que se
derrama em riba da água.
Ora, muito
que bem. Quincas-Mutamba era sujeito estimável. Magro, pacato, pequeno de
corpo, viúvo sem filhos, ganhava a vida fornecendo lenha às cozinhas da Rua dos
Sete Pecados. Madrugadinha, no coice de dois jegues, ia longe, légua e meia ou
mais, voltando à tarde. Entregava um feixe aqui, umas achas acolá. Recebia
magros tostões, passava na venda do Nicácio, fazia suprimento de boca,
engrossava uns dois martelos de pinga, saía meio troviscado. Desencilhava os
jegues, examinava-lhes as cernelhas maceradas. Entendia-se melhor com eles do
que com o resto dos mortais. Naquela vidinha de pobre, vivendo no seu canto,
sem malquerença com os mais, não fedia nem cheirava. Daí a surpresa que causou
a todos aquela notícia estuporada. Nem a cidade suspeitava de suas ligações
amorosas com Mundica Pindonga. Daquele dia em diante, passou ele a viver numa
consumição dos diabos. Inté os meninos da rua se riam dele. Quincas-Mutamba não
teve mais sossego. Embezerrou-se. Não saía mais da venda do Nicácio, não deu
mais palavra a ninguém. Quando o último tostão foi jogado sobre o balcão e o
martelo de restilo lhe tremeu nas mãos incertas, Quincas-Mutamba esquisitou-se.
Fechou o punho, esmurrou o balcão, berrou um nome safado.
- É hoje,
porqueira! Espandongo aquela peste!
Voltou-se
para o vendeiro, os olhos faiscando de ira:
- Quero mais
um trago, mais porém, não quero fiado, nhor não. Pra pagar ele, dou pra vosmecê
o jegue ruano, bichin bom de carga pra danar.
Surpreso,
Nicácio falou, com brandura:
- Não carece
vosmecê se desfazer do bicho por via de uma talagada, nhor não. Boto na conta.
Vosmecê merece mais...
Quincas
interrompeu-o, decidido:
- Mais,
porém, se eu morrer na empreitada? Gardecido, Sêo Nicácio, gardecido. Não lhe
ofendo se não aceitar, ofendo?
Nicácio
retornou, conciliador:
- Ainda que
mal lhe pergunte, por que é que vosmecê está assim, meio animoso? Figuro que
vosmecê não tá à revelia com alguém, ou tá?
Quincas-Mutamba tomou fôlego, abaixou a cabeça, murmurou:
- Quero
exemplar aquela diaba!
- Figuro que
não é gente de sua estimação...
- É de muita
estimação, nhor sim. Mais porém...
O resto da
frase perdeu-se no ar, porque Quincas já estava na rua, trocando pernas.
No FUNDO DO
QUINTAL, ensaboando panos, Mundica cantava. Quincas-Mutamba nem salvou a pobre.
Parou na frente dela – que lhe sorria um largo sorriso de boas-vindas – e foi
insultando:
- Vagabunda!
Se é valentia que corre no tutano do seu braço, porqueira, prove agora, cuia
sem-vergonha!
Mundica
sorria, encalistrada.
- Que bicho
foi que te mordeu, nêgo? Espiritou? Tu andou bebendo, não andou? Não sou de
brigar assim, sem mais nem menos. A frio, brigo não. Se tu botar inflamação no
meu sangue, te esbagaço o esqueleto todo!
Acorreu
gente, ouvindo a xirimbambada.
Quincas não
conversou. Fechou a mão, levantou o braço, desfechou o golpe. Apanhou o ouvido
da mulher, e ela caiu estatelada. Animosamente, ela se levantava, quando recebeu
outro trompaço, no mesmo lugar da primeira pancada. Aí, afocinhou de uma vez.
Quincas pabulou:
- Conheceu,
porqueira? – Sorriu para a assistência, afrouxou o correão, puxou da faca. –
Só queria exemplar a danada. Se quisesse sangrar a bicha, tava na hora. Não sou
esmiolado para fazer uma coisa dessas. E o homem que é macho, mesmo, não mata
mulher. Bate nela, só pra exemplar. – E, como para justificar-se, arrematou: -
Esta porqueira me achou escornado, me tolheu os braços, me arranhou a cara toda
e saiu por aí, boquejando que me bateu. Ora, já se viu despropósito igual?
Podia eu lá viver nessa consumição desgraçada, que me esquisitava inté? Podia?
– Agachou-se, sungou a mulata pelos sovacos, ajudou-a a se levantar, passou o
braço na cintura dela, segredou-lhe: - Te machuquei muito, nêga? Vamos pra
dentro, anda.
E ela, toda
chorosa, ainda estonteada:
- Ocê é ruim
que nem cobra, nêgo. Pra quê fazer uma coisa destas na frente de tanta gente?
Quem ainda
não leu Cyro de Mattos precisa conhecer seus livros urgentemente. Este
jornalista, advogado, e mestre em capoeira é, também e principalmente, um
escritor excelente: poeta, contista, romancista, cronista, novelista, ensaísta,
com vários prêmios importantes na bagagem, tais como: o Prêmio Afonso Arinos da
Academia Brasileira de Letras, o Prêmio Pen Clube do Brasil e o Prêmio da
Associação Paulista de Críticos de Arte, dentre outros.
Traduzido em
várias línguas, em diversos países, este baiano de Itabuna, membro da Academia
de Letras da Bahia, já publicou 64 livros no Brasil e 15 no exterior. Além
disso, organizou 5 antologias e 5 coletâneas. Seus dois livros recentes, os
quais tive a honra de receber autografados, O discurso do rio (Coimbra, Pallimage,
2020) e Devoto do campo (Itabuna, Editus, 2021), são de um lirismo comovente,
que arrebata o leitor e possuem títulos que já constituem um belo poema.
Estes dois
livros podem ser classificados como uma elegia à natureza, uma poesia ecológica
que revela seu amor ao meio-ambiente e aos seres que nela habitam, incluindo o
bicho-homem que tanto a degrada. O discurso do rio foi publicado também em Portugal e traz prefácio da Professora
Graça Capinha da Universidade de Coimbra. Na verdade, ao escolher a palavra
discurso para dar voz às falas dos nossos rios e denunciar a sua destruição
pela poluição e desvios de cursos, o poeta brinca com o vocábulo “discurso”,
atribuindo a ela um novo significado como antônimo de “curso”: dis-curso”. Se
aprendemos com um curso escolar, o dis-curso é o oposto daquilo que deveríamos
aprender a fazer, ou seja, em um dis-curso desaprendemos com discursos e
práticas antiecológicas: não cuidamos daquilo que deveríamos. Em vez de
preservar nossos rios, os destruímos.
Mas também aprendemos
com o discurso que o rio traça em seu curso natural por onde correm as suas
águas: ouvimos o seu pedido de socorro na sua linguagem sem voz, agonizante e
silenciada. Este canto agônico fica claro em vários de seus versos, como no
poema “Das mãos na goela das águas”, que ilustra a quarta capa:
“Venho sendo omisso pra refazer
Virginais caminhos de água, dizendo
Melhor, matei o que era para ser
Vivo no seu amanhecer líquido.
Eu me acuso por ser indiferente
Ao benefício sempre abundante
De água pura que jorrava na fonte
Peixe e rede na estação competente.
E como réu confesso que merece
Por tão grave ilícito ser punido
Chegando do que lhe foi natural,
Em noite morta, que nunca enriquece,
Lavro minha sentença, condenado
A viver no abismo que há no Mal.”
No seu mais
recente livro Devoto do campo, o autor continua a sua defesa da natureza em
belos versos curtos e simples como a própria natureza e o ambiente campestre.
Seguindo o estilo de Emily Dickinson, poeta estadunidense por ele homenageada
na epígrafe, Cyro dá voz aos elementos campestres componentes daquele habitat
bucólico, como o grilo, o jabuti, a aranha, a garça, o pinto, o beija-flor, a
borboleta, o papagaio, o boi, a ovelha, o cavalo, o som das asas, a flor, o
trinado das aves, a árvore, a foice, a selva, a estrada, a paisagem, o laço, as
crenças e as oferendas, a lua, e as claves de sol.
Não é à toa
que este poeta recebeu elogios de escritores ilustres, como Jorge Amado, Assis
Brasil, Ledo Ivo e tantos outros, como Carlos Drummond de Andrade que escreveu
um poema para homenageá-lo. Seus livros aqui resenhados podem ser adquiridos
diretamente com o autor no email: cyropm@bol.com.br. Seus outros livros podem
ser encomendados através dos sites das editoras, da Amazon e da Estante
Virtual.
*Décio TorresCruz é escritor, crítico literário,
poeta, professor universitário e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em
Literatura e Cultura da Ufba.
— PROCLAMAÇÃO do Evangelho de Jesus Cristo + segundo
Lucas.
— Glória a vós, Senhor.
Naquele tempo, vieram algumas pessoas trazendo notícias a
Jesus a respeito dos galileus que Pilatos tinha matado, misturando seu sangue
com o dos sacrifícios que ofereciam.
Jesus lhes respondeu: “Vós pensais que esses galileus eram
mais pecadores do que todos os outros galileus, por terem sofrido tal
coisa? Eu vos digo que não. Mas se vós não vos converterdes, ireis morrer
todos do mesmo modo.
E aqueles dezoito que morreram, quando a torre de Siloé
caiu sobre eles? Pensais que eram mais culpados do que todos os outros
moradores de Jerusalém? Eu vos digo que não. Mas, se não vos
converterdes, ireis morrer todos do mesmo modo”.
E Jesus contou esta parábola: “Certo homem tinha uma
figueira plantada na sua vinha. Foi até ela procurar figos e não
encontrou. Então disse ao vinhateiro: ‘Já faz três anos que venho
procurando figos nesta figueira e nada encontro. Corta-a! Por que está ela
inutilizando a terra?’
Ele, porém, respondeu: ‘Senhor, deixa a figueira ainda este
ano. Vou cavar em volta dela e colocar adubo. Pode ser que venha a dar
fruto. Se não der, então tu a cortarás’”.
“Vou cavar em volta da figueira e colocar adubo” (Lc
13,8)
Temos perdido as raízes? Como conectar-nos com
elas? Quê raízes nos alimentam? Onde estamos enraizados? Quais são as raízes
que nutrem atualmente nossa vida? São as melhores?
Enraizamento, fincar raízes, viver da profundidade das
raízes... O “novo” vem das raízes, vem de baixo, da base, do chão da
vida. É preciso relançar uma nova radicalidade. Viver a partir das raízes,
projetar a partir das raízes, criar a partir das raízes. Quaresma é tempo para
colocar novo adubo e fortalecer as raízes; e viver o tempo das raízes para ser
presença “diferenciada”, “enraizados” na realidade cotidiana.
“Descer” às raízes é uma oportunidade privilegiada para
nos descobrir e conhecer nosso reino interior, para encontrar nossos recursos
mais nobres e assim experimentar a transformação.
O caminho para uma nova qualidade de vida passa pelo
encontro com as próprias raízes. Mas essa descida nos possibilita
descobrir um mundo diferente que não conhecíamos, ou que havíamos perdido.
Este é o caminho da espiritualidade que brota do húmus;
“descer” até o fundo, mergulhar nas dimensões mais profundas onde estão
escondidos os “tesouros” que dão significado e sentido às nossas vidas.
Vivemos um contexto social-político-religioso marcado por um
profundo desenraizamento, onde somos mobilizados a viver em mundos
“sem raízes”, em espaços criados pela tecnologia, comunicando-nos através de
relações virtuais com pessoas distantes, desconectando-nos do nosso próprio
chão existencial; no emaranhado das imagens e sons perdemos a noção daquilo que
é essencial e decisivo para a vida; vivemos na superfície dos acontecimentos e
de nós mesmos; esvaziamos a consistência interior e fundamento sobre o qual se
apoia a nossa própria vida; congelamos toda proximidade e relação com o outro;
petrificamos todo compromisso com as causas mais nobres...
Desenraizar-se é desumanizar-se.
A “nova radicalidade” é a maneira original de
seguir a Jesus. É uma radicalidade amável e expansiva, porque quem chega às
raízes descobre-se implantado na natureza humana, naquilo que todos
compartilham e, por isso mesmo, descobre-se e sente-se enraizado no Outro.
Ninguém pode viver sem raízes, pois não se
sustentaria de pé. Quando perde suas raízes, o ser humano se atrofia e fica
privado de algo decisivo, essencial: de uma fonte de vitalidade.
Superfície significa aqui o esquecimento da raiz,
significa viver na distância da vida, desconectado da fonte interior,
desarticulado e ocupado com o que não é essencial. Muitas pessoas passam pela
vida assim, distraídas como turistas, como “voyeurs”, que consomem, sem descanso,
paisagens e imagens de si mesmas, cujo olhar está sempre ocupado com as
vitrines ou o próprio umbigo e assim nunca repousam, nunca chegam à raiz de
nada.
Jesus, o “homem enraizado” em seu povo e sua cultura, traçou
seu caminho em parábolas.
No evangelho deste domingo Ele usa a imagem da “figueira
estéril” que não recebera o nutriente necessário. A figueira é uma das
árvores mais comuns na Palestina e seu fruto, muito apreciado, é abundante. As
flores da figueira são um sinal da primavera. “Sentar-se debaixo da
videira e da figueira” é uma expressão proverbial da paz e serenidade
da vida no campo (cf. 1Rs 5,5; Mq, 4,4; Zc 3,10).
A isso, precisamente, aponta a parábola da figueira plantada
no meio da vinha. Ela também destaca a paciência do vinhateiro. Apesar de
“levar” três anos sem dar frutos, o vinhateiro continua confiando nela, ao
mesmo tempo que lhe oferece todos os cuidados com esmero: “vou cavar em
volta dela e colocar adubo”.
Jesus quer destacar a paciência divina, porque compreende e
respeita o momento e o ritmo de cada pessoa. Conhecedor do coração humano, sabe
dos condicionamentos de todo tipo que pesam sobre ele: sofrimentos pendentes ou
não elaborados; vivências não integradas; feridas não “processadas”; mecanismos
de defesa ativados ao longo da vida para poder sobreviver; ignorância básica de
quem é e como quer viver...
Precisamos tempo e paciência para crescer em lucidez e em
consciência, assim como em liberdade interior, frente aos próprios medos e
necessidades, para podermos ser coerentes e fiéis ao melhor de nós mesmos.
A partir dessa fidelidade, tudo começa a adquirir sentido:
abrimo-nos a quem somos e vamos construindo relações harmoniosas. Isso é o que
significa, segundo o evangelho, “dar fruto”.
Numa chave de leitura interior, a parábola da figueira ativa
a virtude da esperança que alimenta, dá sentido à nossa existência e
ilumina as profundezas de nosso ser cristão. Na vivência do evangelho, a terra
interior também pode ser cavada e adubada, através de diálogos e do
encontro com nossa verdade pessoal.
A parábola da “figueira” toca o nosso “eu” mais profundo; é
preciso escutá-la e deixá-la ressoar em nosso coração, a terra do nosso campo
interior que é cavada e fertilizada. Mas a parábola não só alimenta a
esperança; ela também nos desafia a corresponder ao “divino agricultor”, dando
frutos.
Talvez tenhamos que parar de exigir certos frutos da nossa
árvore; basta os frutos menores ou a sombra que a árvore providencia.
Escavar a terra é o primeiro requisito a ser cumprido
para que a árvore interior dê fruto. O segundo é o adubo, que pode
ser símbolo para a atenção e o amor, que nos fazem bem e podem nos conduzir ao
florescimento e frutificação da nossa árvore. Normalmente, usamos esterco para
fertilizar a terra, o esterco da nossa própria biografia pode ser usado como
adubo.
Dia após dia, o agricultor leva o esterco ao campo, e, após
um ano, o campo dá seus frutos. É uma imagem consoladora, pois, justamente
aquilo que consideramos o esterco da nossa vida – os fracassos, as feridas, as
derrotas, as fragilidades – se torna o adubo para a nossa árvore da vida e a
faz florescer.
A questão está em como cavar, que adubo depositar e que
frutos esperamos alcançar. É importante cavar para sanear as raízes, nossas
raízes mais profundas onde está a força de Deus vitalizando nossa existência; o
alimento, talvez seja conectar mais com a mensagem de Jesus, com o Evangelho e
entrarmos em sintonia com o Deus da Vida. Os frutos, sem dúvida, terão mais a
cor e o sabor da visibilidade, da ousadia, da liberdade, da denúncia daquilo
que atenta contra a dignidade humana, de atrever-nos a abandonar o rotineiro e
gerar novas formas de viver o Evangelho nestes tempos tão conflitivos.
Deus é o “paciente Cuidador” e nos alcança na medida em que
nos abrimos à sua ação; Sua presença expande e multiplica o melhor de nossa
vida. Ao contrário, quando permanecemos reclusos na identificação com nosso
ego, irremediavelmente, dia após dia, nossa existência se atrofiará e se
empobrecerá.
É fora de dúvida que, dentro de cada um de nós, continuam
existindo “figueiras estéreis”, experiências com pouca profundidade, vivências
asfixiantes e atrofiantes... que limitam a liberdade de Deus em atuar em
nós. Mas, o ponto de partida é que comecemos por reconhecer nosso terreno interior,
reconciliando-nos com ele, abraçando-o com humildade. É no meio da “vinha” que
está situada nossa “figueira”.
Desse modo, ao crescer em unificação – integrando também os
aspectos mais obscuros e vulneráveis de nossa própria vida -, um bom “húmus”
estará se disponibilizando e constituindo a “terra boa” onde a figueira
crescerá por si mesma e dará frutos. Devemos descobrir, em cada um de nós, o
que atrofia, limita e bloqueia o fluxo da seiva que brota das profundidades de
nossa terra interior.
Texto bíblico: Lc 13,1-9
Na oração: Uma vida que se enraíza, é uma
vida firme, consistente. Por outra parte, as raízes na planta,
são as que se introduzem na terra e crescem em sentido contrário do tronco,
servindo-se como sustentação.
Graças a elas, a planta pode absorver o alimento necessário
para seu crescimento.
- o que está “estéril” em sua vida?
- quais são e onde estão as raízes onde seu
coração se alimenta? Quais raízes precisam ser sanadas, adubadas... para que
deem frutos?