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sábado, 15 de fevereiro de 2025

Evocação de Ferradas em Versiprosa    

Por Cyro de Mattos                 

                  


                 Para Jorge Amado 

                 e Telmo Padilha, 

                 em memória.  

 

De tanto estar o céu em longe amanhecer 

dizendo o bem na fé houve o padre Livorno   

com a sua batina mágica.  

Ecoava temente a Deus sua voz no chão bárbaro,  

indiferente ao que dizia a escritura da paixão. 

A catequese do louvor na sapiente profecia 

se ligava nos indígenas como refúgio do amor.  

Cruzavam as solidões sacolejando na carga  

os que vinham de longe. No pouso do povoado 

queriam nova ferradura para o casco da burrada. 

Em alvoroço de festa ferravam até as árvores,  

uma coisa grandiosa de ver onde deixavam sua marca   

para o mundo não esquecer.      

O machado anunciou os propósitos da terra,    

duras mãos enredaram grossos nós do destino.     

Com talhos na jaqueira a folhinha imprimiu        

as vastidões desoladas.  Em ébrio ouro vegetal 

 facão e podão dançaram.   

Comercinho novo veio cifrar o mundo, o fazer  

das ferramentas anotava a cada chuvada 

a arte de influenciar a lavra.  

Inaugurou-se a praça com água boa, ardente. 

Lá para as tantas a viola no peito gemia,  

 sua irmã sanfona retirava da lágrima       

sons agudos com suor, um frio medonho  

da serra, os dias de açoite do vento 

derrubando os paus grandes.    

 

Em casas escoradas o bafo da noite abafada,   

na cama de vara o coito quente ligando corpos 

na danada hora do gozo se amassando e gemendo 

e no ninho acontecendo.     

Marasmo de rua comprida oculta os dias de outrora,  

amadurecidos na safra dourada como a riqueza, 

no sobrado amanhecendo, o sol veio sumindo sem brilho  

na vontade alquebrada soterrada de desejos. 

Armazém de porta larga guarda o tempo remoto    

das estações grávidas, a barcaça com amêndoas  

valendo tanto quanto ouro. 

 Ferradas nem mais viceja, dorme agora, seu sono  

arrastado de bicho pesado, submersa onde somras 

 envolvem a praça calada,  

Perto da igreja, em vigília costumeira, espera sua gente 

 humilde, que vem à procura de Deus. Sua atitude lenta 

agora é desprovida do cheiro de resina ligada na memória  

de bairro-mãe  desprezado,  ao léu de omissões seguidas,  

ninguém quer conhecer como ali se plantou a vida.   

Ao invés do vazio na história tudo que deseja é um caminho, 

nada mais correto o lugar que lhe é devido nos frutos que deu,     

pois o amor ao amor retorna quando a razão tem caráter,  

protege o que é da terra numa ação de erguimento 

e não como longo despejo através da cor desbotada.  


 *Cyro de Mattos é escritor e poeta. Autor de 70 livros pessoais e, entre eles, cinco de crônicas. Também editado no exterior. Advogado e jornalista. Colabora quinzenalmente com a revista da crônica Rubem, há mais de quinze anos editada pelo jornalista e cronista Henrique Fendrich em Brasília, como homenagem a Rubem Braga, o melhor cronista do Brasil. Conquistou o Prêmio Casa das Américas em 2023 com o livro Infância com Bicho e Pesadelo e outras histórias.


domingo, 2 de fevereiro de 2025

 

Dia de Iemanjá

Cyro de Mattos


 

Hoje é dois de fevereiro, dia de Iemanjá.  Aos pares ou em grupos todos vão ao Rio Vermelho para prestar sua homenagem à dona do mar. Vem gente do interior e de todos os cantos de Salvador de Bahia para comemorar a festa da rainha do mar. Pessoas circulam na areia da praia, entram no mar, depositam a oferenda nas águas. Desde cedo os fiéis vêm fazer suas preces e entregar presentes que são levados em barcos e deixados nas ondas. Flores, perfumes, colares, pulseiras, brincos, anéis, enfeites, espelhos, imagens de uma mulher formosa onde nos mares mais bela não há. 

Em sua linguagem mágica, atabaques tocam no tom cativante, brando. Cânticos e orações saem de vozes contritas, gestos de gratidão. Lamentos e pedidos, afetuosos com certeza. Provavelmente os pedidos são para que a rainha do mar apague o fogo dos inimigos com a força de suas águas. Traga ondas cheias de paz, saúde e prosperidade. Que sejam levados para os espaços mais profundos do mar desconhecido as dores, privações e ressentimentos.

Quando era estudante universitário, sempre frequentava o Rio Vermelho nesse dia especial para os baianos. O sol se pondo, o movimento de pessoas aumentando, à noite era difícil encontrar um espaço no largo para se instalar de maneira cômoda. Em trânsito, turistas queriam se aproximar dos grupos de pessoas que estavam entoando cânticos em torno da imagem de Iemanjá com os seus ares de orixá afetuoso, com bondade que sai do seu jeito maternal e se instala no coração de cada fiel com suas ondas de carícia.

O fiel sabe que não sucumbiu no ano graças a Iemanjá. Suplicou para que a rainha do mar o salvasse da situação contrária, levando-o para longe nas águas perigosas. Sem os verdes e azuis de ondas que jogam e passam serenas.

 Pessoas em fila movimentam-se na direção da baiana do acarajé.  Bares e barracas cheias de gente. Tudo é alegria que circula nos rostos com os ares perfumados que chegam das águas do mar. É dia também de brincar e brindar.

Há algum tempo já não vou à festa de Iemanjá no Rio Vermelho. Com a idade avançada, o corpo se ressente de movimentos firmes entre gente festiva por onde passa. Mas não deixo de acender minha vela no peji e agradecer à minha mãe mais um ano de vida no seio de minha família. Ainda vejo a vida com seus raios claros, escuto o canto dos passarinhos que saltitam alegres nas árvores do quintal do vizinho, nesse dia em que a Bahia inteira na cidade marinha  se rende em homenagens aquela mulher formosa e translúcida, de deusa poderosa que desde a madrugada vem cantar, rezar, na areia dançar. 

. Não esqueço o gesto daquela figura de homem concentrado em algo distante no dia dois de fevereiro. Um preto velho, cabelo miúdo, fios brancos, como se formassem uma boina natural tecida de bucha para adornar a cabeça marcada de esperança. Tinha um cacho de flores nos braços para na sua vez deixar nas ondas de mãe Iemanjá. Saía da expressão de seu rosto algo de místico e profundo. A certa altura cantou, mesclou seu canto com reza numa língua entendida por poucos. Interrompeu-se no gesto silencioso, de concentração e humildade nos olhos miúdos. Ficou olhando para longe, bem longe, seu olhar atravessando as ondas, indo rumo àquele ponto de onde vieram seus ancestrais na carga do navio com gente aprisionada no porão escuro. Olhava para lá das zonas mais remotas do mar, talvez buscando encontrar alguns de seus antepassados, que foram   arrancados daquela terra livre onde o sol nasce radiante e o céu faz uma curva.

Como esquecer esse dia florido nas espumas, dança mágica sob a luz do sol, prata da noite no dia perto de clarear, oguns em oração que também querem homenagear. Carícia de alga, onda rainha, sempre rezo nesse dia festivo consagrado à dona do mar. Salve, minha rainha. Odoiá! Odoiá! Ó minha mãe, no mar difícil vem me proteger.  Do sal que fere no atrito torna-me onda mansa desse mar sem grito.


*Cyro de Mattos é escritor e poeta. Autor de 70 livros pessoais e, entre eles, cinco de crônicas. Também editado no exterior. Advogado e jornalista. Colabora quinzenalmente com a revista da crônica Rubem, há mais de quinze anos editada pelo jornalista e cronista Henrique Fendrich em Brasília, como homenagem a Rubem Braga, o melhor cronista do Brasil. Conquistou o Prêmio Casa das Américas em 2023 com o livro Infância com Bicho e Pesadelo e outras histórias.

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