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quinta-feira, 5 de junho de 2025
terça-feira, 3 de junho de 2025
Cyro de Mattos
ADONIAS FILHO
"Diferente de Jorge Amado, que se interessa mais em contar a história de
princípio, meio e fim, com personagens previsíveis, vinculada aos saberes
populares, Adonias Filho tem na forma e ideia uma técnica revolucionária de
inventar um drama, uma tragédia. Escritor de alto nível estético, denso,
elíptico, de estilo poético no fraseado que ultrapassa o regional e alcança o
plano universal porque em sua narrativa há muito de simbolismo. Às vezes sua
linguagem tem entonação bíblica. A paisagem humana não é trabalhada em nível do
típico, exótico, e o cenário, tanto na geografia intimista da zona cacaueira
baiana como na urbana, é formado de magias e mitos. Um mestre na armação do
drama, na condução da tragédia. Sua obra é uma das perpendiculares da
moderna ficção brasileira. “
FLORISVALDO MATTOS
“Meu amigo e
patrício. Poeta de minha admiração. De lastro clássico, versos extensos.
De estro enorme, no épico, histórico, solidariedade social, evocativo do campo
com fatura lapidar. Desde o início, o bardo de Água Preta une o eu lírico
ao artesão da palavra com os instrumentos do sonho, sonoridades e metáforas
incandescentes de esperança resultando no discurso vigoroso, encanta a quem
lê.”
HÉLIO PÓLVORA
“Meu conterrâneo,
deu-me o prazer de ser o primeiro crítico arguto que se debruçou sobre um livro
de nossa autoria, foi muito generoso, não precisava tanto, coisas de
conterrâneo. É visível que a vocação desse contista tende para as
intenções de recolher e transformar na arte genuína as impressões que a vida
propõe nos momentos habitados por vozes vertiginosas. Seu conto Os Galos da
Aurora é um primor da prosa de ficção curta. Bastava que escrevesse as quatros
narrativas antológicas de Mar de Azov para ter seu lugar assegurado na
literatura moderna brasileira
JORGE AMADO
“Homem de coração
bom. Mantivemos uma rica relação de amizade. Também nascido em terras de
Itabuna, Escritor grandão, de linguagem sensual, despretensiosa, em sua maneira
fraternal de conceber o mundo. Para ele é mais importante o conteúdo, muitas vezes
interligado na trama, do que a palavra com a qual a vida é recriada. Construtor
de personagens que ficam para sempre. Faz pensar e ao mesmo tempo rir sua
mensagem de esperança, muitas vezes de fraternidade, vozes cheias de liberdade
na escrita irreverente.”
JORGE ARAÚJO
Nascido em Baixa
Grande, radicado há anos no Sul da Bahia. Poeta, cronista, contista, autor de
livros infantis, crítico literário, dramaturgo e ensaísta. Professor de
literatura aposentado pela Universidade Estadual de Santa Cruz. Tornou-se
Doutor em Letras com a tese Perfil do leitor colonial, em 1988, sendo
esse título concedido pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Conquistou
duas vezes o Prêmio Nacional de Literatura da Academia de Letras da Bahia. Um
dos vencedores do Prêmio da Associação Brasileira de Editoras Universitárias.
Erudição e sensibilidade unem-se com lucidez em seus ensaios investigativos,
marcados por conceitos de alto nível e raciocínios inteligentes.”
JORGE MEDAUAR
“Também foi poeta,
esse contista de Água Preta, de estilo simples, cheio de humanidade ingênua em
suas histórias que prendem, desenhadas como flagrantes da vida diária na cidade
pequena, recheada dos costumes de seu tempo. Marcada com a boa prosa gostosa de
escutar, ler no bilhete, carta, notícia do jornal que vinha de Ilhéus no trem.
Aparentemente fácil, na serenidade de seu discurso há muita observação da vida
documentada com sensibilidade.”
SONIA COUTINHO
“Nascida em
Itabuna, cedo mudou-se com a família para Salvador. Viveu no Rio de Janeiro
onde exerceu o jornalismo e a tradução para sobreviver. Na traiçoeira invenção
da vida, os fados não lhe permitiram que desfrutasse do lado azul da canção.
Ficcionista de solidão em família, de atritos e conflitos, pungentes,
doloridos. Um momento singular da atual ficção brasileira, ao nível de Clarice
Lispector e Lígia Fagundes Telles.”
SOSÍGENES COSTA
“Poeta nascido em
Belmonte, que lhe inspirou Iararana, seu mito nativista. Quando
viveu em Ilhéus, viu a cidade como um búfalo fosfóreo, inventou uma sereia que
se despiu do mito, depois de ter lido Marx e Freud, e deu uma festa no mar.
Poeta de signos irregulares, mesclado nas vertentes barroca, parnasiana,
simbolista, modernista e popular. De tardia repercussão nas letras brasileiras.
Desenhou a flor do cacau toda orvalhada e moça. Mostrou que na lira não habitam
somente versos malditos, também existem as flores, os pavões de audição
colorida, fazendo a vida rútila e festiva.”
TELMO PADILHA
“Nascido em
Ferradas, distrito de Itabuna, onde também nasceu Jorge Amado. Em seu Voo
Absoluto há uma difícil travessia, exposta aos olhos como impossível de
aceitar. Seu discurso aprofunda-se nos temas impregnados de perda, fuga, medo,
solidão e morte. Em Provação, livro póstumo, o clima lírico do eu sereno
está impossibilitado de acolher a adversidade da vida armada pelo fato
estúpido, inexplicável, da derradeira verdade. A tragédia que ceifou o
filho amado vem ao debate através do eu reflexivo, lamento em grito, em que a
palavra aflora intensa na dor, emerge das silabas feridas na alma em delírio,
do coração que sangra, e não tem cura. Um livro que merece uma edição digna de
um poeta verdadeiro.”
VALDELICE PINHEIRO
“Outra poeta
nascida em Itabuna. Seus poemas bem construídos integram-se no repertório
valoroso da poesia produzida na Bahia. Atestam que, se a melhor poesia
produzida no Brasil hoje está no Nordeste, como foi lembrado pelo tradutor e
poeta Ivan Junqueira, acontece principalmente na Bahia. E, entre os baianos,
Valdelice Soares Pinheiro tem sua voz, sua impressão digital, seu talento, sua
ideia imaginada com precisão e saber, que se inscreve em patamar de afirmativo
nível literário.”
Outros autores de expressiva qualidade estão chegando para com suas criações dar andamento ao legado desse conjunto de escritores do melhor exemplo. Apesar de cometer o pecado da omissão, cito alguns deles: Antonio Junior, Renato Prata, Heloísa Prazeres, Piligra, Margarida Fahel, Marcos Luedy, Gustavo Felicíssimo, Ruy Póvoas, Heitor Brasileiro e Pawlo Cidade.
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Cyro de
Mattos é escritor e poeta. Autor de 70 livros pessoais e, entre
eles, cinco de crônicas. Também editado no exterior. Advogado e jornalista.
Colabora quinzenalmente com a revista da crônica Rubem, há mais de quinze anos
editada pelo jornalista e cronista Henrique Fendrich em Brasília, como
homenagem a Rubem Braga, o melhor cronista do Brasil. Conquistou o Prêmio Casa
das Américas em 2023 com o livro Infância com Bicho e Pesadelo e outras
histórias.
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quarta-feira, 7 de maio de 2025
Romance da Terra Amarga
Certa vez, a comissão julgadora desse concurso concedeu Menção Honrosa ao romance Terra Amarga, do baiano José Almiro Gomes, e foi constituída de Jorge Amado, Antônio Olinto e João Guimarães Rosa. Reconhecia assim as qualidades de um romance de conteúdo social no seu conjunto de vícios e virtudes. Essa obra ficou no fundo da gaveta durante décadas e agora na sua primeira edição pede passagem para remontar as vidas sofridas de camponeses subjugados nas relações entre os que mandam fazer e os que cumprem porque não veem outra maneira de sair do impasse, que lhes nega a vida de maneira justa.
Sua história acontece na Fazenda Aurora, no município baiano de Santo Antônio de Jesus. Foca as condições miseráveis de vida no latifúndio, com quase uma centena de trabalhadores descendentes dos negros escravos. Mostra a vida numa propriedade rural extensa com suas plantações de mandioca, fumo, café, cana e o extrativismo de madeira. Tem como personagens principais Du e Noratinha, o Coronel João Vicente, proprietário do latifúndio, e o feitor Alcebíades, ambos impiedosos nas relações com os seus trabalhadores.
Além do estilo desenvolto na condução onisciente das cenas, chama a atenção na trama os intertextos usados com a reprodução das cantigas de roda, ladainhas e improvisos do folclore regional. Recurso empregado na narrativa para atenuar o ambiente desumano em que vivem criaturas marcadas para trabalhar sem volta decente, a não ser sofrer e morrer. De repente um vento alegre derrama-se com sua festiva cantoria popular do folguedo. Alivia assim o cenário cruel de uma humanidade sedenta por dias redentores, cantando e dançando como forma de resistir às dores impingidas pela terra trabalhada em regime de quase escravidão.
Quem conheceu o autor desse romance de fundo social, que viveu na cidade sul baiana de Coaraci por muitos anos, soube como ele era um homem singular. Marido cuidadoso, pai exemplar, advogado corajoso e combativo, nunca se rendendo ao Juiz de Direito de comportamento duvidoso. Era apaixonado pela poética condoreira de Castro Alves, dos versos inigualáveis de Gabriela Mistral e Pablo Neruda, íntimo dos romancistas russos de cárter social.
Terra Amarga é romance que pode levar o leitor não especializado e o estudante a se familiarizar com uma série de noções importantes de sociologia literária, como grupo, socialização, relações de classe, trabalho, liberdade, opressão, personalidade, linguagem, tradição, sociedade, tensão, sobrevivência, dando uma visão global do mundo social numa zona do sertão baiano, no Brasil arcaico do século XX.
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Cyro de Mattos é escritor e poeta. Autor de 70 livros
pessoais e, entre eles, cinco de crônicas. Também editado no exterior. Advogado
e jornalista. Colabora quinzenalmente com a revista da crônica Rubem, há mais
de quinze anos editada pelo jornalista e cronista Henrique Fendrich em
Brasília, como homenagem a Rubem Braga, o melhor cronista do Brasil. Conquistou
o Prêmio Casa das Américas em 2023 com o livro Infância com Bicho e Pesadelo e
outras histórias.
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quarta-feira, 30 de abril de 2025
segunda-feira, 28 de abril de 2025
Naqueles tempos do holocausto
Cyro
de Mattos
Havia
sido aprovado no concurso do Conservatório Nacional de Música. Sonhara muito
tempo com isso. Desejara começar a exercer a carreira de violinista na
Alemanha, onde certamente desenvolveria seus pendores musicais com o
instrumento que mais apreciava, melhor dizendo amava. Era um país perfeito.
Culto, de grandes artistas. Dera ao mundo homens como Bach, Mozart, Beethoven,
Haendel, Goethe, Hesse, Thomas Mann, Rilke, Kant, Hegel.
Quando o avião aterrissou em solo alemão, sentiu pulsações
boas no coração sonhador com o bem, crente na perfeição da vida quando o
assunto era música. No entanto, sensações expectantes de que iria aprender
muito com o mundo civilizado da Alemanha tiveram a primeira cena decepcionante
quando viu no jardim a tabuleta avisando que ali estavam proibidas de brincar
crianças não arianas. No aeroporto viu o aviso na parede proibindo que judeus
saíssem da Alemanha.
No dia seguinte viu na rua um judeu de rosto
apatetado, desfilando com o cartaz de papelão pendurado no pescoço. O cartaz
dizia: SOU UM RATO SUJO. Jamais ia imaginar que encontraria cenas piores do que
aquela contra o povo judeu. Naqueles idos de 1938, a Alemanha nazista agia como
um povo selvagem, que vomitava ódio contra os judeus. Havia uma vontade
inconcebível para espancar, humilhar, usurpar os bens conquistados por um povo
que se manifestava na vida com inteligência e trabalho.
Encontrou um grupo de jovens soldados nazistas querendo
estuprar uma moça judia brasileira em plena luz do dia. Empurravam, davam tapas
no seu rosto enquanto soltavam gargalhadas histéricas e tentavam espremê-la
contra a parede. Interferiu. Falou alto: “Parem com isso! Não admito tamanha
covardia! Vou denunciar o caso ao Consulado do Brasil!” O grupo largou a moça
contrariado, revoltado com aquele brasileiro inconveniente, um intruso na
defesa de uma judia, uma criatura inferior na escala biológica das raças.
Getúlio Vargas era o presidente do Brasil no Estado Novo. O
ditador brasileiro namorava com as ideias nazistas de Hitler. Determinou que os
diplomatas brasileiros não se metessem com os problemas internos da Alemanha.
Não queria complicações. Reduzira o visto em passaportes de judeus que queriam
sair da Alemanha e vir para o Brasil.
O mal prenunciava que o mundo estava prestes a ser abalado
com a Segunda Guerra Mundial. Hitler estava mandando judeus de volta para a
Polônia. Sua raiva cresceu, alardeava que os judeus estavam roubando a
Alemanha, eram os donos do comércio, das fábricas e estaleiros. Seu império com
bases na inutilidade do sentimento do amor estava prestes a ser instalado, a
fera ressurgia da caverna para banir a pomba na légua, destruir a relva, só
queria a selva.
Ficou sem querer acreditar quando ocorreu a Noite do
Cristal, lojas de judeus foram quebradas, os donos espancados, numa fúria do
horror sem precedente. Sinagogas queimadas, a ordem era reduzir a cinzas os
estabelecimentos comerciais, tudo o que fosse encontrado pela frente e que
havia sido adquirido pelos judeus com esforço nos dias.
Não era justo o que vinha assistindo, a selvageria
descontrolada assassinar a razão. Não se conformava com o que os olhos viam a
todo momento quando saía na rua. Homens separados das mulheres, pais dos
filhos, irmão do irmão. Eram levados para os campos de concentração como uma
carga imprestável. Sujos, vestidos numa roupa fina para enfrentar o forte frio.
Tossiam, o rosto ossudo, a pele amarelada. As marcas do desprezo e abandono nos
olhos tristes, apagados de qualquer vestígio de luz. Entravam nos caminhões
empurrados pelo cano do fuzil, os olhos já não tinham a lágrima, a inocência
não tinha qualquer possibilidade para contradizer uma condenação sem
sentido.
As noites mal dormidas, o pesadelo tomara conta dos sonhos
alimentados no Brasil sob a expectativa de viver em paz com um mundo justo e
civilizado. Até quando iria suportar conviver com uma raça que se dizia
superiora, sustentada em seu mito ariano com as botas de ferro de soldados
impassíveis?
Depois que teve navios bombardeados na costa por submarinos
alemães, o Brasil rompera as relações com a Alemanha nazista. Passou para o
lado dos aliados, que tinham declarado guerra ao ditador de bigodinho nervoso,
o que comandava passadas de ódio na matança de milhões indefesos por manadas
desenfreadas.
No retorno, assim que desembarcou do avião, ao deixar a
escada, a primeira coisa que fez foi se abaixar e dar um beijo no solo da
pátria querida e saudosa.
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Cyro de Mattos é escritor e poeta. Autor de 70 livros pessoais e, entre eles, cinco de crônicas. Também editado no exterior. Advogado e jornalista. Colabora quinzenalmente com a revista da crônica Rubem, há mais de quinze anos editada pelo jornalista e cronista Henrique Fendrich em Brasília, como homenagem a Rubem Braga, o melhor cronista do Brasil. Conquistou o Prêmio Casa das Américas em 2023 com o livro Infância com Bicho e Pesadelo e outras histórias.
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terça-feira, 22 de abril de 2025
O pai e o filho do pai
Cyro
de Mattos
Já vai longe o tempo em que recebi a
primeira distinção relevante no meu currículo de vida literária. Foi em 1968, no Rio. Tinha resolvido ir morar no Rio para seguir
na metrópole minha carreira literária. Vendi meus livros de Direito do
escritório de advocacia, que havia estabelecido na cidade onde nasci, já com
uma clientela considerável proveniente da área trabalhista. Como o autor não vive de literatura, para
sobreviver fui trabalhar em jornal na cidade grande.
O Rio e São Paulo naquela época formavam o
tambor cultural do Brasil. Quem quisesse ter repercussão na carreira literária
devia migrar cedo para uma das duas metrópoles. Já repórter e redator do Diário
de Notícias no Rio, ainda como um moço do interior baiano espantado com a
cidade de muita gente e edifícios que altos sinalavam para as nuvens, sentia-me
estranho aos meios e costumes da metrópole. Foi aí que tive uma boa surpresa.
Conquistava em 1968 um prêmio internacional para autores de língua portuguesa.
Era a primeira vez que um autor brasileiro conquistava a láurea. Não preciso
dizer da alegria.
Depois que conquistei o prêmio para livros
de contos e novela da Academia Brasileira de Letras, vieram outras conquistas
literárias e reconhecimentos importantes, em nível nacional e internacional,
permitam-me aludir sobre essas ocorrências dando-me a certeza de que estava no
caminho certo.
Fico pensando agora como reagiria meu pai
quando soubesse que tinha um filho como autor de dezenas de livros pessoais
publicados no Brasil e exterior. Meu pai era um homem iletrado, aprendera a ler
e a escrever por esforço próprio. Tudo que fez na vida foi com trabalho,
esforço e economia para que os filhos fossem gente: o mais velho se tornasse um
médico respeitável, o mais novo tivesse a carreira de advogado nas pegadas de
um profissional competente. O irmão mais velho tornou-se um médico valoroso, cirurgião elogiado durante décadas de
dedicação e amor à Medicina. O filho caçula fora uma decepção para o pai,
trocara o certo pelo duvidoso.
O pai disse:
- Você pretende viver nas nuvens, seguindo
uma profissão que não existe, não bota comida no prato, aqui na cidade ninguém
dá importância a quem vive de escrever livros.
– De rosto triste, na expressão inconformada, concluiu: - Esse negócio
de ser escritor só serve pra quem não tem juízo.
Observei:
- Meu pai é o que gosto, ser escritor não
dá dinheiro nem conceito, reconheço, mas vou seguir o meu destino.
Perguntei-lhe se ele já havia ouvido falar
no famoso romancista Jorge Amado, era uma referência para quem quisesse seguir
a carreira de escritor.
Respondeu que já ouvira falar nesse
escritor famoso, mas era um caso raro, acrescentando que devemos seguir a regra
e não a exceção, onde para se alcançar as metas importantes tudo é mais
difícil.
O pai não podia pensar diferente, com o
saber que aprendera das lições tiradas na escola da vida, queria o melhor para
mim.
Certamente hoje, se estivesse aqui comigo,
ficaria calado, entre estranho e assustado.
Seria bom, agradável, se ele dissesse:
- Filho eu não sabia que o tempo estava
preparando uma boa surpresa pra mim e pra sua mãe.
O
tempo, esse avantajado cavaleiro soberano. Sabe das coisas, conhece os
caminhos, dá e toma, tudo bebe e lambe.
Antes de se recolher para se reconfortar
no sono, depois de mais um dia de trabalho, gostaria que o meu pai dissesse com
a voz calma:
- Filho, você está pronto, é um escritor de verdade.
Cyro de Mattos é escritor e poeta.
Autor de 70 livros pessoais e, entre eles, cinco de crônicas. Também editado no
exterior. Advogado e jornalista. Colabora quinzenalmente com a revista da
crônica Rubem, há mais de quinze anos editada pelo jornalista e cronista Henrique
Fendrich em Brasília, como homenagem a Rubem Braga, o melhor cronista do
Brasil. Conquistou o Prêmio Casa das Américas em 2023 com o livro Infância com
Bicho e Pesadelo e outras histórias.
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sexta-feira, 18 de abril de 2025
Quatro Poemas Cristãos
Cyro de Mattos
Perdão
Na memória dolorida
A sensação da
procissão.
Perdoai, Senhor,
por piedade,
Perdoai, Senhor,
tanta maldade,
Antes morrer,
antes morrer
Do que Vos
ofender...
Pelas pedras do
caminho
O roxo me alcança
nesses ais.
Toca no meu peito o
vosso sofrimento.
Fadiga, sede, fome,
cuspe, espinho,
Sangue, chicotada,
prego, riso,
Madeira feita cruz,
santo Pai
Perdoai os pecados
meus.
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Caminhos de Deus
Amor sem fim deu,
Perdão a quem
ofendeu,
Riu, escarneceu.
Também fez ao cego
Que descobrisse a manhã
De novo nascendo.
A morte venceu
Em cada flor que fazia
Pra mostrar o céu.
O
ato como fardo
Pilatos
lavou as mãos,
Entregou
Jesus ao povo
Para
não perder o poder.
A
cena doída não se foi.
Até
quando, ó Pai,
Nós
iremos repeti-la?
Jesuscristinho
Para Manuel Bandeira
A
Virgem Maria
Sentia
como doía
O
destino humano
Do
filho de Deus.
Quando
for um homem
Com
o nome de Jesus
De
tanto nos amar
Irá
morrer na cruz
Louvemos
baixinho
O
nosso reizinho
Antes
que vá morar
Na
casa de Deus.
Cheio
de sentimento,
Perdão
em dó e amor,
Enquanto
ele dorme
Feito
um cordeirinho.
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Cyro de Mattos é escritor e poeta. Autor de 70 livros pessoais e, entre eles, cinco de crônicas. Também editado no exterior. Advogado e jornalista. Colabora quinzenalmente com a revista da crônica Rubem, há mais de quinze anos editada pelo jornalista e cronista Henrique Fendrich em Brasília, como homenagem a Rubem Braga, o melhor cronista do Brasil. Conquistou o Prêmio Casa das Américas em 2023 com o livro Infância com Bicho e Pesadelo e outras histórias.
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quinta-feira, 17 de abril de 2025
Procissão da Sexta-Feira Santa
Cyro de Mattos
Todos os santos na igreja eram cobertos com um pano roxo na Semana Santa, menos Jesus Cristo. Era proibido comer carne vermelha e beber leite. A refeição matinal era com café e pão. À noite a refeição era a mesma. Ainda bem que tinha um pouco de arroz e peixe no almoço. Achava sempre um jeito de chupar uma manga, um pedaço de melancia ou laranja para tapear a barriga e não sucumbir à fome. Fazia isso com cuidado, sem que minha mãe soubesse. Ela dizia que as pessoas deviam jejuar na Semana Santa, em sinal de amor e respeito à ; morte do Cristo. O jejum era só naquela semana, passava logo, ninguém ia morrer por isso.
O
comércio cerrava as portas na quinta e sexta-feira. Ninguém trabalhava nesses
dias. A mãe falou que um homem entendeu de tirar leite da
vaca na Sexta-feira Santa para tomar no café da manhã. Quando ele
começou a puxar as tetas da vaca, só saía sangue em vez de leite. Aquilo era um
sinal do céu para que o homem respeitasse o dia em que Jesus Cristo,
o bem-amado salvador da humanidade, foi crucificado sem piedade pelos homens.
Parecia
que toda a cidade amanhecia vestida de roxo na Semana Santa, principalmente na
Sexta-feira. Assistia ao filme sobre a vida, paixão e morte de Jesus
Cristo na matinê da Quinta-Feira Santa do Cine Itabuna. As pessoas
saíam cabisbaixas do cinema quando o filme acabava. Ninguém se
conformava com o que fizeram com Jesus, que foi coroado com uma coroa de
espinho, depois de ser cuspido e chicoteado. Para não se falar na cruz pesada
que o pobre coitado carregara pelas ruas. Não satisfeitos com tanta
judiação ainda pregaram o filho de Deus &nbs p;na cruz de
maneira cruel. Em vez de água quando Ele pediu, deram vinagre e, por último,
enfiaram uma lança no coração. Era demais o sofrimento de
Jesus, muita gente chorava.
E tudo
por causa do Judas, que traiu Jesus por um saquinho de dinheiro em moedas.
O Judas passava como um dos apóstolos de Jesus, mas se rendeu à tentação
do dinheiro. Deu um beijo na face para entregar o filho de Deus aos
soldados romanos. Todo mundo se vingava do Judas quando no filme ele aparecia
enforcado, o corpo do traidor balançando numa corda amarrada ao galho da árvore
seca. Nessa hora o cinema quase vinha abaixo com as vaias da
platéia.
Tinha uma
sensação na procissão da Sexta-feira Santa que tudo era pecado, dor e lamento
pelo que fizeram a Jesus. A imagem de Nosso Senhor Morto era levada no andor
pelas ruas principais da cidade sob os cantos que falavam de
pesares e perdão:
A tristeza estava nos ares por onde a procissão andava com Nosso Senhor Morto, as pessoas sofrendo pelas pedras do caminho. Gente acompanhava a procissão descalça para pagar alguma promessa em razão da graça alcançada através da bondade do Cristo salvador. Dona Olívia, a mulher do dono do Hotel Itabuna, vestida num comprido vestido roxo, que tocava os pés, cabelos compridos caindo nas costas, fazia o papel de Maria Madalena. A matraca tocava, a procissão parava enquanto ela exibia o rosto do Cristo no sudário..
Numa voz doída, ela arrancava suspiros e lágrimas dos fiéis calados naquele trecho de rua em que a procissão parava.
Naquele ano em que caiu uma chuva rala durante a procissão, usava as botinas novas que minha mãe presenteou-me no aniversário. A procissão voltava pela avenida do comércio depois de percorrer algumas ruas. A imagem de Nosso Senhor Morto já ia entrar na igreja para ser colocada no altar quando a beata Detinha teve uma crise de nervos chegando a desmaiar. O padre passou um pouco de água benta na testa da beata, rezou e pediu que os fiéis cantassem com fervor. Os cantos entoados na pequena praça repleta de gente acordaram a beata Detinha, que começou a chorar alto e ao mesmo tempo agradecer ao Jesus Salvador por ter ali mesmo perdoado seus pecados.
No dia de procissão havia tanta gente na igreja e na praça que uma agulha não cabia lá dentro nem no lado de fora. As botinas novas apertavam os meus pés. Então pedi à minha mãe que me deixasse ir embora para casa, não queria ficar para ouvir a fala do padre encerrando a procissão. “ Os calos estão doendo muito, não agüento mais”, disse aporrinhado, ameaçando chorar. Ela ordenou baixinho no meu ouvido que ficasse comportado, acrescentando que a procissão já estava chegando ao fim.
Preferi não obedecer minha mãe. Foi só ela se ajoelhar com os demais fiéis na igreja para fazer a oração do creio-em-deus-pai, de olhos fechados, para apressado tirar dos meus pés as botinas. Em casa disse à minha mãe que tinha resolvido agir daquela maneira para evitar que acontecesse comigo uma situação pior do que a da beata Detinha. Como ela desmaiaria ali mesmo na igreja. Mas a água benta que o padre passaria na minha testa, as orações e os cantos entoados com fervor pouco iriam adiantar para que eu não ficasse des maiado durante muito tempo.
Claro que minha mãe compreendeu. Em vez de sermão, da sua voz bondosa, escutei que eu não me preocupasse. Não ia calçar mais aquelas botinas apertadas.
Mas muita gente reparou e achou que menino mimado daquele jeito não daria certo no futuro.
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Cyro de Mattos é escritor e poeta.
Autor de 70 livros pessoais e, entre eles, cinco de crônicas. Também editado no
exterior. Advogado e jornalista. Colabora quinzenalmente com a revista da
crônica Rubem, há mais de quinze anos editada pelo jornalista e cronista Henrique
Fendrich em Brasília, como homenagem a Rubem Braga, o melhor cronista do
Brasil. Conquistou o Prêmio Casa das Américas em 2023 com o livro Infância com
Bicho e Pesadelo e outras histórias.
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domingo, 13 de abril de 2025
sábado, 12 de abril de 2025
A Descaracterização do Monumento da Saga Grapiúna
Por Cyro de Mattos
O
Monumento da Saga Grapiúna foi idealizado pela Fundação Itabunense de Cultura e
Cidadania (FICC) em nossa gestão, que contratou o artista Richard Wagner, itabunense
de fama mundial, para conceber e executar a obra como homenagem aos elementos
formadores da civilização grapiúna: o sergipano, o negro, o índio e o árabe.
Está localizado nas proximidades do Supermercado
Jequitibá,
Trabalhado em
cimento, a cor cinza da obra faz parte da sua concepção artística e está ligada
ao seu conteúdo, por isso mesmo deve ser mantida. O Monumento faz parte do
patrimônio público itabunense, mas não está tendo o melhor destino na sua
reconstituição pela Secretária Municipal de Esportes e Lazer.
Como é uma obra
que pertence à `Fundação Itabunense de Cultura e Cidadania sua recuperação
deveria ser efetuada por esta instituição. Na recuperação atual não estão sendo
respeitadas a concepção e a execução originais da obra. Os frutos do cacau
foram pintados agora com tinta acrílica amarela e branca, a borda do enorme
prato que dá sustentação ao monumento também foi pintada de
verde.
Para completar a descaracterização originária de uma obra artística magnífica, as quatro figuras como símbolos da civilização cacaueira foram pintadas de verde. Entregue ao sabor da sorte, em várias administrações do executivo municipal, o monumento ficou com o gradil de proteção danificado, servindo lá dentro de depósito de coisas imprestáveis e lixo, até que foi eliminado atualmente. Uma das suas figuras símbolos da civilização cacaueira baiana está danificada. Acresce ao desmando apontado o fato lamentável com o desaparecimento da placa assinalando a inauguração da obra pelas autoridades da época e pelo artista Richard Wagner.
Inauguração no Ano do Centenário da cidade
A quem cabe zelar pela cultura de um povo e não corresponde aos seus apelos comete atitude imperdoável. A cultura alimenta a autoestima e reforça os laços identitários de uma sociedade nas suas relações com a vida. Se a educação é o corpo da sociedade, que precisa ser bem alimentado, que dizer de sua alma, a cultura? Quem não valoriza a cultura de seu povo, contribui para que não haja resposta quando se pergunta qual é o seu nome, onde você nasceu e para onde você vai. Torna assim o ser humano um caminhante vazio no seu estar no mundo. Até hoje em terras sulinas da Bahia viceja esse comportamento atávico do poder executivo municipal que não valoriza o que foi produzido para permanecer como referência do patrimônio artístico e cultural.
Qualquer sociedade que se diz civilizada não merece isso.
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Cyro de Mattos é escritor e poeta. Autor de 70 livros pessoais e, entre eles, cinco de crônicas. Também editado no exterior. Advogado e jornalista. Colabora quinzenalmente com a revista da crônica Rubem, há mais de quinze anos editada pelo jornalista e cronista Henrique Fendrich em Brasília, como homenagem a Rubem Braga, o melhor cronista do Brasil. Conquistou o Prêmio Casa das Américas em 2023 com o livro Infância com Bicho e Pesadelo e outras histórias.
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terça-feira, 1 de abril de 2025
quarta-feira, 26 de março de 2025
O BATOM E UMA DECISÃO FORA DO
TOM ...
Sérgio Habib
Professor de Direito Penal e Processo Penal.
Advogado criminal.
Estarreceu-nos uma das últimas decisões da mais alta corte de justiça brasileira que condenou uma mulher, mãe de família, com dois filhos pequenos (impúberes), à uma pena de catorze anos de reclusão por ter escrito numa estátua que simboliza a justiça, localizada na praça dos Três Poderes, em Brasília, a frase seguinte: “Perdeu mané...”
Apesar de ter sido lavada dias depois, com água e sabão, e de ter, consequentemente, desaparecido a inscrição, sem qualquer prejuízo material ao patrimônio público, a condenação, ainda assim, foi imposta, lastreada em denúncia do Ministério Público Federal, que capitulou o fato como sendo atentado contra o estado democrático de direito e dano ao patrimônio público. Nada mais bizarro em termos jurídicos. Jamais se viu isso na história da justiça brasileira, numa desproporção que causa espanto. Aliás, nada nos deveria mais surpreender partindo do STF, diante das mais recentes decisões que vêm sendo ali adotadas. De há muito que se rasgou a Constituição Federal e, em seu lugar, passou-se a adotar a Cartilha doRevanchismo e da ideologia político-partidária, como se os juízes que ali têm assento fossem membros de partidos políticos e não de uma vetusta instituição apartidária, como, em verdade, deveria ser o Supremo Tribunal Federal. Já nem nos referimos à figura do crime impossível, contida no art. 17 do Código Penal, que diz não se punir a tentativa quando por impropriedade absoluta do meio ou impropriedade absoluta do objeto, for impossível consumar-se o crime. Em outras palavras, como alguém portando um simples “batom”, poderia ameaçar o estado democrático de direito, sobretudo quando o tipo penal do artigo 359 L, do Código Penal exige emprego de violência ou de grave ameaça, elementares para a configuração do crime em apreço? Mas isso já não mais importa quando o direito e a justiça, de há muito, se ausentaram do átrio do Pretório excelso. De que valem as leis, se os seus aplicadores não na seguem, não a obedecem, preferindo interpretá-la segundo as suas convicções políticas e interesses pessoais? “Por outro lado, é de indagar-se: Qual das condutas ofende mais o estado democrático de direito? a de uma simples cidadã, que escreve displicentemente com um batom a frase “perdeu mané” numa estátua petrificada, ou a frase dita por um membro do próprio STF “perdeu mané”, posicionando-se politicamente e assoalhada aos quatro cantos, lançada no rosto de duzentos milhões de brasileiros? O que agride mais? Qual delas tem maior efeito deletério? Uma, se apaga com água e sabão; a outra, está gravada na história e nas mídias sociais indeléveis, mas, sobretudo e principalmente, na memória nacional. Uma, com o batom, se rabiscou uma frase na estátua da justiça.
Outra, com uma palavra, se conspurcou a imagem da própria justiça. Porém, são os que julgam, os mesmos que se dizem vítimas dos crimes praticados, numa simbiose espúria a denunciar um grave desrespeito às leis, à doutrina e à própria jurisprudência do STF, quando ainda não era um órgão político, senão que uma instância última de resolução de conflitos, a quem se recorria em busca de justiça. Nem se diga aqui, sobre o absurdo que representa o STF julgar processos em que um de seus membros se diz vítima de delitos, e ele mesmo é o relator da ação, sem qualquer impedimento ou suspeição. Qualquer juiz de instância inferior que praticasse tamanha absurdez seria sumariamente afastado e responderia processo administrativo disciplinar pelo CNJ e, posteriormente, sem dúvida, aposentado compulsoriamente. Porém o SFT está acima do CNJ, não se sujeitando, pois, à sua jurisdição. O STF reina absoluto, até porque, quem poderia julgá-lo, ou contê-lo, o Senado Federal, não chega a ser tão desassombrado a esse ponto. Exemplo disso são os inúmeros pedidos de impeachment engavetados, o que somente depõe contra o poder legislativo. Fazer justiça é algo muito sério. Praticar injustiça, mais ainda. Embora se saiba que aquela mulher com o bastão cosmético jamais poderia ameaçar o estado democrático de direito, faz-se de conta que isso ocorreria, que ela seria capaz de abalar as estruturas da nação. Daí é que sua condenação, sob a óptica suprema, tem toda razão de ser.
Quem leu o rei Lear, a tragédia dicotômica shakespeareana entre o Bem e o Mal no campo da justiça, sabe muito bem sobre o que nos referimos. Em outras de suas peças, Shakespeare brada, na voz do personagem Saturnino: “Traidor, Roma tem a lei, mas nós, o poder”, (Tito Andrônico). Temos apenas por consolo que, no cenário das injustiças judiciais há uma série delas, que, tempos depois, foram revisadas e devidamente reparados os erros, com a só diferença de que, na grande maioria, os tribunais erraram por “error in judicando”, e no caso do batom, a justiça errou por dolo mesmo, vale dizer, sabia que estava cometendo uma injustiça e queria praticá-la, pois se utilizou da lei do talião para julgar ao invés de aplicar a verdadeira justiça. Ruy já dizia: “a justiça, cega para um dos dois lados, já não é justiça. Cumpre que enxergue por igual à direita e à esquerda.” Só que, no caso sob análise, não se quis enxergar por igual à direita e à esquerda, preferindo-se enxergar apenas um dos lados, aquele mais perverso e desalmado, o mais insensível e cínico, o mais incompreensível e absurdo, o mais ferrenho e maldoso, o mais faccioso e desumano, e, por fim, o menos justo de todos os injustos possíveis.
O tempo dirá ...
* * *
sábado, 15 de fevereiro de 2025
Evocação de Ferradas em
Versiprosa
Por Cyro de
Mattos
Para Jorge Amado
e Telmo Padilha,
em memória.
De tanto estar o céu em longe amanhecer
dizendo o bem na fé houve o padre Livorno
com a sua batina mágica.
Ecoava temente a Deus sua voz no chão bárbaro,
indiferente ao que dizia a escritura da paixão.
A catequese do louvor na sapiente profecia
se ligava nos indígenas como refúgio do amor.
Cruzavam as solidões sacolejando na carga
os que vinham de longe. No pouso do povoado
queriam nova ferradura para o casco da burrada.
Em alvoroço de festa ferravam até as árvores,
uma coisa grandiosa de ver onde deixavam sua
marca
para o mundo não
esquecer.
O machado anunciou os propósitos da
terra,
duras mãos enredaram grossos nós do
destino.
Com talhos na jaqueira a folhinha
imprimiu
as vastidões desoladas. Em ébrio ouro vegetal
facão e podão dançaram.
Comercinho novo veio cifrar o mundo, o fazer
das ferramentas anotava a cada chuvada
a arte de influenciar a lavra.
Inaugurou-se a praça com água boa, ardente.
Lá para as tantas a viola no peito gemia,
sua irmã sanfona retirava da
lágrima
sons agudos com suor, um frio medonho
da serra, os dias de açoite do vento
derrubando os paus grandes.
Em casas escoradas o bafo da noite
abafada,
na cama de vara o coito quente ligando corpos
na danada hora do gozo se amassando e gemendo
e no ninho acontecendo.
Marasmo de rua comprida oculta os dias de
outrora,
amadurecidos na safra dourada como a riqueza,
no sobrado amanhecendo, o sol veio sumindo sem
brilho
na vontade alquebrada soterrada de desejos.
Armazém de porta larga guarda o tempo
remoto
das estações grávidas, a barcaça com amêndoas
valendo tanto quanto ouro.
Ferradas nem mais viceja, dorme agora, seu
sono
arrastado de bicho pesado, submersa onde somras
envolvem a praça calada,
Perto da igreja, em vigília costumeira, espera sua
gente
humilde, que vem à procura de Deus. Sua atitude
lenta
agora é desprovida do cheiro de resina ligada na
memória
de bairro-mãe desprezado, ao léu de omissões
seguidas,
ninguém quer conhecer como ali se plantou a
vida.
Ao invés do vazio na história tudo que deseja é um
caminho,
nada mais correto o lugar que lhe é devido nos frutos que
deu,
pois o amor ao amor retorna quando a razão tem
caráter,
protege o que é da terra numa ação de erguimento
e não como longo despejo através da cor
desbotada.