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terça-feira, 3 de junho de 2025

Autores do Sul da Bahia 

Cyro de Mattos 

 


ADONIAS FILHO
"Diferente de Jorge Amado, que se interessa mais em contar a história de princípio, meio e fim, com personagens previsíveis, vinculada aos saberes populares, Adonias Filho tem na forma e ideia uma técnica revolucionária de inventar um drama, uma tragédia. E
scritor de alto nível estético, denso, elíptico, de estilo poético no fraseado que ultrapassa o regional e alcança o plano universal porque em sua narrativa há muito de simbolismo. Às vezes sua linguagem tem entonação bíblica. A paisagem humana não é trabalhada em nível do típico, exótico, e o cenário, tanto na geografia intimista da zona cacaueira baiana como na urbana, é formado de magias e mitos. Um mestre na armação do drama, na condução da tragédia. Sua obra é uma  das perpendiculares da moderna ficção brasileira. “

FLORISVALDO MATTOS 

“Meu amigo e patrício. Poeta de minha admiração. De lastro clássico, versos extensos.  De estro enorme, no épico, histórico, solidariedade social, evocativo do campo com fatura lapidar.  Desde o início, o bardo de Água Preta une o eu lírico ao artesão da palavra com os instrumentos do sonho, sonoridades e metáforas incandescentes de esperança resultando no discurso vigoroso, encanta a quem lê.” 

HÉLIO PÓLVORA 

“Meu conterrâneo, deu-me o prazer de ser o primeiro crítico arguto que se debruçou sobre um livro de nossa autoria, foi muito generoso, não precisava tanto, coisas de conterrâneo.   É visível que a vocação desse contista tende para as intenções de recolher e transformar na arte genuína as impressões que a vida propõe nos momentos habitados por vozes vertiginosas. Seu conto Os Galos da Aurora é um primor da prosa de ficção curta. Bastava que escrevesse as quatros narrativas antológicas de Mar de Azov para ter seu lugar assegurado na literatura moderna brasileira 

JORGE AMADO 

“Homem de coração bom. Mantivemos uma rica relação de amizade.  Também nascido em terras de Itabuna, Escritor grandão, de linguagem sensual, despretensiosa, em sua maneira fraternal de conceber o mundo. Para ele é mais importante o conteúdo, muitas vezes interligado na trama, do que a palavra com a qual a vida é recriada. Construtor de personagens que ficam para sempre. Faz pensar e ao mesmo tempo rir sua mensagem de esperança, muitas vezes de fraternidade, vozes cheias de liberdade na escrita irreverente.” 

JORGE ARAÚJO 

Nascido em Baixa Grande, radicado há anos no Sul da Bahia. Poeta, cronista, contista, autor de livros infantis, crítico literário, dramaturgo e ensaísta. Professor de literatura aposentado pela Universidade Estadual de Santa Cruz. Tornou-se Doutor em Letras com a tese Perfil do leitor colonial, em 1988, sendo esse título concedido pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Conquistou duas vezes o Prêmio Nacional de Literatura da Academia de Letras da Bahia. Um dos vencedores do Prêmio da Associação Brasileira de Editoras Universitárias. Erudição e sensibilidade unem-se com lucidez em seus ensaios investigativos, marcados por conceitos de alto nível e raciocínios inteligentes.” 

JORGE MEDAUAR 

“Também foi poeta, esse contista de Água Preta, de estilo simples, cheio de humanidade ingênua em suas histórias que prendem, desenhadas como flagrantes da vida diária na cidade pequena, recheada dos costumes de seu tempo. Marcada com a boa prosa gostosa de escutar, ler no bilhete, carta, notícia do jornal que vinha de Ilhéus no trem. Aparentemente fácil, na serenidade de seu discurso há muita observação da vida documentada com sensibilidade.” 

SONIA COUTINHO 

“Nascida em Itabuna, cedo mudou-se com a família para Salvador. Viveu no Rio de Janeiro onde exerceu o jornalismo e a tradução para sobreviver. Na traiçoeira invenção da vida, os fados não lhe permitiram que desfrutasse do lado azul da canção. Ficcionista de solidão em família, de atritos e conflitos, pungentes, doloridos. Um momento singular da atual ficção brasileira, ao nível de Clarice Lispector e Lígia Fagundes Telles.” 

SOSÍGENES COSTA 

“Poeta nascido em Belmonte, que lhe inspirou Iararana, seu mito nativista.  Quando viveu em Ilhéus, viu a cidade como um búfalo fosfóreo, inventou uma sereia que se despiu do mito, depois de ter lido Marx e Freud, e deu uma festa no mar. Poeta de signos irregulares, mesclado nas vertentes barroca, parnasiana, simbolista, modernista e popular. De tardia repercussão nas letras brasileiras. Desenhou a flor do cacau toda orvalhada e moça. Mostrou que na lira não habitam somente versos malditos, também existem as flores, os pavões de audição colorida, fazendo a vida rútila e festiva.” 

TELMO PADILHA 

“Nascido em Ferradas, distrito de Itabuna, onde também nasceu Jorge Amado.  Em seu Voo Absoluto há uma difícil travessia, exposta aos olhos como impossível de aceitar. Seu discurso aprofunda-se nos temas impregnados de perda, fuga, medo, solidão e morte. Em Provação, livro póstumo, o clima lírico do eu sereno está impossibilitado de acolher a adversidade da vida armada pelo fato estúpido, inexplicável, da derradeira verdade.  A tragédia que ceifou o filho amado vem ao debate através do eu reflexivo, lamento em grito, em que a palavra aflora intensa na dor, emerge das silabas feridas na alma em delírio, do coração que sangra, e não tem cura. Um livro que merece uma edição digna de um poeta verdadeiro.” 

VALDELICE PINHEIRO 

“Outra poeta nascida em Itabuna. Seus poemas bem construídos integram-se no repertório valoroso da poesia produzida na Bahia. Atestam que, se a melhor poesia produzida no Brasil hoje está no Nordeste, como foi lembrado pelo tradutor e poeta Ivan Junqueira, acontece principalmente na Bahia. E, entre os baianos, Valdelice Soares Pinheiro tem sua voz, sua impressão digital, seu talento, sua ideia imaginada com precisão e saber, que se inscreve em patamar de afirmativo nível literário.”    


Outros autores de expressiva qualidade estão chegando para com suas criações dar andamento ao legado desse conjunto de escritores do melhor exemplo. Apesar de cometer o pecado da omissão, cito alguns deles: Antonio Junior, Renato Prata, Heloísa Prazeres, Piligra, Margarida Fahel, Marcos Luedy, Gustavo Felicíssimo, Ruy Póvoas, Heitor Brasileiro e Pawlo Cidade.  

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Cyro de Mattos é escritor e poeta. Autor de 70 livros pessoais e, entre eles, cinco de crônicas. Também editado no exterior. Advogado e jornalista. Colabora quinzenalmente com a revista da crônica Rubem, há mais de quinze anos editada pelo jornalista e cronista Henrique Fendrich em Brasília, como homenagem a Rubem Braga, o melhor cronista do Brasil. Conquistou o Prêmio Casa das Américas em 2023 com o livro Infância com Bicho e Pesadelo e outras histórias.

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quarta-feira, 7 de maio de 2025

Romance da Terra Amarga

Cyro de Mattos




Idealizado pelo banqueiro José Luiz de Magalhães Lins e o escritor Antônio Olinto, o prêmio WALMAP surgiu em 1964 e foi o mais importante concurso literário brasileiro na época, durante mais de dez anos. Revelou romancistas da grandeza de Assis Brasil com Beira Rio Beira Vida (1965), Oswaldo França Junior com Jorge, um brasileiro (1967), Ricardo Guilherme Dicke com Deus de Caim (1968), André de Figueiredo, com Labirinto (.1971), Ledo Ivo com Ninho de Cobras (1980) e outros autores capazes de abalar os rumos da ficção brasileira.

Certa vez, a comissão julgadora desse concurso concedeu Menção Honrosa ao romance Terra Amarga, do baiano José Almiro Gomes, e foi constituída de Jorge Amado, Antônio Olinto e João Guimarães Rosa. Reconhecia assim as qualidades de um romance de conteúdo social no seu conjunto de vícios e virtudes. Essa obra ficou no fundo da gaveta durante décadas e agora na sua primeira edição pede passagem para remontar as vidas sofridas de camponeses subjugados nas relações entre os que mandam fazer e os que cumprem porque não veem outra maneira de sair do impasse, que lhes nega a vida de maneira justa.

Sua história acontece na Fazenda Aurora, no município baiano de Santo Antônio de Jesus. Foca as condições miseráveis de vida no latifúndio, com quase uma centena de trabalhadores descendentes dos negros escravos. Mostra a vida numa propriedade rural extensa com suas plantações de mandioca, fumo, café, cana e o extrativismo de madeira. Tem como personagens principais Du e Noratinha, o Coronel João Vicente, proprietário do latifúndio, e o feitor Alcebíades, ambos impiedosos nas relações com os seus trabalhadores.

Além do estilo desenvolto na condução onisciente das cenas, chama a atenção na trama os intertextos usados com a reprodução das cantigas de roda, ladainhas e improvisos do folclore regional. Recurso empregado na narrativa para atenuar o ambiente desumano em que vivem criaturas marcadas para trabalhar sem volta decente, a não ser sofrer e morrer. De repente um vento alegre derrama-se com sua festiva cantoria popular do folguedo. Alivia assim o cenário cruel de uma humanidade sedenta por dias redentores, cantando e dançando como forma de resistir às dores impingidas pela terra trabalhada em regime de quase escravidão.

Quem conheceu o autor desse romance de fundo social, que viveu na cidade sul baiana de Coaraci por muitos anos, soube como ele era um homem singular. Marido cuidadoso, pai exemplar, advogado corajoso e combativo, nunca se rendendo ao Juiz de Direito de comportamento duvidoso. Era apaixonado pela poética condoreira de Castro Alves, dos versos inigualáveis de Gabriela Mistral e Pablo Neruda, íntimo dos romancistas russos de cárter social.

Terra Amarga é romance que pode levar o leitor não especializado e o estudante a se familiarizar com uma série de noções importantes de sociologia literária, como grupo, socialização, relações de classe, trabalho, liberdade, opressão, personalidade, linguagem, tradição, sociedade, tensão, sobrevivência, dando uma visão global do mundo social numa zona do sertão baiano, no Brasil arcaico do século XX.

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Cyro de Mattos é escritor e poeta. Autor de 70 livros pessoais e, entre eles, cinco de crônicas. Também editado no exterior. Advogado e jornalista. Colabora quinzenalmente com a revista da crônica Rubem, há mais de quinze anos editada pelo jornalista e cronista Henrique Fendrich em Brasília, como homenagem a Rubem Braga, o melhor cronista do Brasil. Conquistou o Prêmio Casa das Américas em 2023 com o livro Infância com Bicho e Pesadelo e outras histórias.

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segunda-feira, 28 de abril de 2025

 

      Naqueles tempos do holocausto

       Cyro de Mattos 

 


           Havia sido aprovado no concurso do Conservatório Nacional de Música. Sonhara muito tempo com isso.  Desejara começar a exercer a carreira de violinista na Alemanha, onde certamente desenvolveria seus pendores musicais com o instrumento que mais apreciava, melhor dizendo amava. Era um país perfeito. Culto, de grandes artistas. Dera ao mundo homens como Bach, Mozart, Beethoven, Haendel, Goethe, Hesse, Thomas Mann, Rilke, Kant, Hegel.  

Quando o avião aterrissou em solo alemão, sentiu pulsações boas no coração sonhador com o bem, crente na perfeição da vida quando o assunto era música. No entanto, sensações expectantes de que iria aprender muito com o mundo civilizado da Alemanha tiveram a primeira cena decepcionante quando viu no jardim a tabuleta avisando que ali estavam proibidas de brincar crianças não arianas. No aeroporto viu o aviso na parede proibindo que judeus saíssem da Alemanha. 

 No dia seguinte viu na rua um judeu de rosto apatetado, desfilando com o cartaz de papelão pendurado no pescoço. O cartaz dizia: SOU UM RATO SUJO. Jamais ia imaginar que encontraria cenas piores do que aquela contra o povo judeu. Naqueles idos de 1938, a Alemanha nazista agia como um povo selvagem, que vomitava ódio contra os judeus. Havia uma vontade inconcebível para espancar, humilhar, usurpar os bens conquistados por um povo que se manifestava na vida com inteligência e trabalho. 

Encontrou um grupo de jovens soldados nazistas querendo estuprar uma moça judia brasileira em plena luz do dia. Empurravam, davam tapas no seu rosto enquanto soltavam gargalhadas histéricas e tentavam espremê-la contra a parede. Interferiu. Falou alto: “Parem com isso! Não admito tamanha covardia! Vou denunciar o caso ao Consulado do Brasil!” O grupo largou a moça contrariado, revoltado com aquele brasileiro inconveniente, um intruso na defesa de uma judia, uma criatura inferior na escala biológica das raças. 

Getúlio Vargas era o presidente do Brasil no Estado Novo. O ditador brasileiro namorava com as ideias nazistas de Hitler. Determinou que os diplomatas brasileiros não se metessem com os problemas internos da Alemanha. Não queria complicações. Reduzira o visto em passaportes de judeus que queriam sair da Alemanha e vir para o Brasil. 

O mal prenunciava que o mundo estava prestes a ser abalado com a Segunda Guerra Mundial. Hitler estava mandando judeus de volta para a Polônia. Sua raiva cresceu, alardeava que os judeus estavam roubando a Alemanha, eram os donos do comércio, das fábricas e estaleiros. Seu império com bases na inutilidade do sentimento do amor estava prestes a ser instalado, a fera ressurgia da caverna para banir a pomba na légua, destruir a relva, só queria a selva.

 Ficou sem querer acreditar quando ocorreu a Noite do Cristal, lojas de judeus foram quebradas, os donos espancados, numa fúria do horror sem precedente. Sinagogas queimadas, a ordem era reduzir a cinzas os estabelecimentos comerciais, tudo o que fosse encontrado pela frente e que havia sido adquirido pelos judeus com esforço nos dias.    

Não era justo o que vinha assistindo, a selvageria descontrolada assassinar a razão. Não se conformava com o que os olhos viam a todo momento quando saía na rua. Homens separados das mulheres, pais dos filhos, irmão do irmão. Eram levados para os campos de concentração como uma carga imprestável. Sujos, vestidos numa roupa fina para enfrentar o forte frio. Tossiam, o rosto ossudo, a pele amarelada. As marcas do desprezo e abandono nos olhos tristes, apagados de qualquer vestígio de luz. Entravam nos caminhões empurrados pelo cano do fuzil, os olhos já não tinham a lágrima, a inocência não tinha qualquer possibilidade para contradizer uma condenação sem sentido.    

As noites mal dormidas, o pesadelo tomara conta dos sonhos alimentados no Brasil sob a expectativa de viver em paz com um mundo justo e civilizado. Até quando iria suportar conviver com uma raça que se dizia superiora, sustentada em seu mito ariano com as botas de ferro de soldados impassíveis?

Depois que teve navios bombardeados na costa por submarinos alemães, o Brasil rompera as relações com a Alemanha nazista. Passou para o lado dos aliados, que tinham declarado guerra ao ditador de bigodinho nervoso, o que comandava passadas de ódio na matança de milhões indefesos por manadas desenfreadas. 

No retorno, assim que desembarcou do avião, ao deixar a escada, a primeira coisa que fez foi se abaixar e dar um beijo no solo da pátria querida e saudosa.

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Cyro de Mattos é escritor e poeta. Autor de 70 livros pessoais e, entre eles, cinco de crônicas. Também editado no exterior. Advogado e jornalista. Colabora quinzenalmente com a revista da crônica Rubem, há mais de quinze anos editada pelo jornalista e cronista Henrique Fendrich em Brasília, como homenagem a Rubem Braga, o melhor cronista do Brasil. Conquistou o Prêmio Casa das Américas em 2023 com o livro Infância com Bicho e Pesadelo e outras histórias.

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terça-feira, 22 de abril de 2025

DENÚNCIA aceita por UNANIMIDADE e PLANO de MORAES foi REVELADO: TUDO é G...

MÚSICA BRASIL ACIMA DE TUDO E DEUS ACIMA DE TODOS . ESTAMOS ESPERANDO VO...

O pai e o filho do pai

Cyro de Mattos

 


Já vai longe o tempo em que recebi a primeira distinção relevante no meu currículo de vida literária.  Foi em 1968, no Rio.  Tinha resolvido ir morar no Rio para seguir na metrópole minha carreira literária. Vendi meus livros de Direito do escritório de advocacia, que havia estabelecido na cidade onde nasci, já com uma clientela considerável proveniente da área trabalhista.  Como o autor não vive de literatura, para sobreviver fui trabalhar em jornal na cidade grande.

O Rio e São Paulo naquela época formavam o tambor cultural do Brasil. Quem quisesse ter repercussão na carreira literária devia migrar cedo para uma das duas metrópoles. Já repórter e redator do Diário de Notícias no Rio, ainda como um moço do interior baiano espantado com a cidade de muita gente e edifícios que altos sinalavam para as nuvens, sentia-me estranho aos meios e costumes da metrópole. Foi aí que tive uma boa surpresa. Conquistava em 1968 um prêmio internacional para autores de língua portuguesa. Era a primeira vez que um autor brasileiro conquistava a láurea. Não preciso dizer da alegria.

Depois que conquistei o prêmio para livros de contos e novela da Academia Brasileira de Letras, vieram outras conquistas literárias e reconhecimentos importantes, em nível nacional e internacional, permitam-me aludir sobre essas ocorrências dando-me a certeza de que estava no caminho certo.     

Fico pensando agora como reagiria meu pai quando soubesse que tinha um filho como autor de dezenas de livros pessoais publicados no Brasil e exterior. Meu pai era um homem iletrado, aprendera a ler e a escrever por esforço próprio. Tudo que fez na vida foi com trabalho, esforço e economia para que os filhos fossem gente: o mais velho se tornasse um médico respeitável, o mais novo tivesse a carreira de advogado nas pegadas de um profissional competente. O irmão mais velho tornou-se um médico valoroso,  cirurgião elogiado durante décadas de dedicação e amor à Medicina. O filho caçula fora uma decepção para o pai, trocara o certo pelo duvidoso. 

O pai disse:

- Você pretende viver nas nuvens, seguindo uma profissão que não existe, não bota comida no prato, aqui na cidade ninguém dá importância a quem vive de escrever livros.  – De rosto triste, na expressão inconformada, concluiu: - Esse negócio de ser escritor só serve pra quem não tem juízo.

Observei:

- Meu pai é o que gosto, ser escritor não dá dinheiro nem conceito, reconheço, mas vou seguir o meu destino. 

Perguntei-lhe se ele já havia ouvido falar no famoso romancista Jorge Amado, era uma referência para quem quisesse seguir a carreira de escritor.

Respondeu que já ouvira falar nesse escritor famoso, mas era um caso raro, acrescentando que devemos seguir a regra e não a exceção, onde para se alcançar as metas importantes tudo é mais difícil.  

O pai não podia pensar diferente, com o saber que aprendera das lições tiradas na escola da vida, queria o melhor para mim.

Certamente hoje, se estivesse aqui comigo, ficaria calado, entre estranho e assustado.

Seria bom, agradável, se ele dissesse:

- Filho eu não sabia que o tempo estava preparando uma boa surpresa pra mim e pra sua mãe.

 O tempo, esse avantajado cavaleiro soberano. Sabe das coisas, conhece os caminhos, dá e toma, tudo bebe e lambe.

Antes de se recolher para se reconfortar no sono, depois de mais um dia de trabalho, gostaria que o meu pai dissesse com a voz calma:  

       - Filho, você está pronto, é um escritor de verdade. 

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Cyro de Mattos é escritor e poeta. Autor de 70 livros pessoais e, entre eles, cinco de crônicas. Também editado no exterior. Advogado e jornalista. Colabora quinzenalmente com a revista da crônica Rubem, há mais de quinze anos editada pelo jornalista e cronista Henrique Fendrich em Brasília, como homenagem a Rubem Braga, o melhor cronista do Brasil. Conquistou o Prêmio Casa das Américas em 2023 com o livro Infância com Bicho e Pesadelo e outras histórias.

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sexta-feira, 18 de abril de 2025


           Quatro Poemas Cristãos

Cyro de Mattos

         



           Perdão

        

          Na memória dolorida

          A sensação da procissão.

                             Perdoai, Senhor, por piedade,

                             Perdoai, Senhor, tanta maldade,

                             Antes morrer, antes morrer

                             Do que Vos ofender...

                           

                             Pelas pedras do caminho

                             O roxo me alcança nesses ais.                          

                            Toca no meu peito o vosso sofrimento.                   

                        Fadiga, sede, fome, cuspe, espinho,

                        Sangue, chicotada, prego, riso,

                        Madeira feita cruz, santo Pai

                        Perdoai os pecados meus.


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Caminhos de Deus

 

Amor sem fim deu,  

Perdão a quem ofendeu,  

Riu, escarneceu. 

 

Também fez ao cego

Que descobrisse a manhã

De novo nascendo.  

 

A morte venceu

Em cada flor que fazia

Pra mostrar o céu.  

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O ato como fardo 

 

Pilatos lavou as mãos,

Entregou Jesus ao povo

Para não perder o poder.

A cena doída não se foi. 

Até quando, ó Pai,

Nós iremos repeti-la?

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Jesuscristinho

       Para Manuel Bandeira

 

A Virgem Maria

Sentia como doía

O destino humano

Do filho de Deus.

 

Quando for um homem

Com o nome de Jesus

De tanto nos amar

Irá morrer na cruz

 

Louvemos baixinho

O nosso reizinho

Antes que vá morar

Na casa de Deus.

 

Cheio de sentimento,

Perdão em dó e amor,

Enquanto ele dorme

Feito um cordeirinho.

 

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Cyro de Mattos é escritor e poeta. Autor de 70 livros pessoais e, entre eles, cinco de crônicas. Também editado no exterior. Advogado e jornalista. Colabora quinzenalmente com a revista da crônica Rubem, há mais de quinze anos editada pelo jornalista e cronista Henrique Fendrich em Brasília, como homenagem a Rubem Braga, o melhor cronista do Brasil. Conquistou o Prêmio Casa das Américas em 2023 com o livro Infância com Bicho e Pesadelo e outras histórias.


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quinta-feira, 17 de abril de 2025

Procissão da Sexta-Feira Santa

Cyro de Mattos




               Todos os santos na igreja eram cobertos com um pano roxo na Semana Santa, menos Jesus Cristo. Era proibido comer carne vermelha e beber leite. A refeição matinal era com café e pão. À noite a refeição era a mesma. Ainda bem que tinha um pouco de arroz e peixe no almoço. Achava sempre um jeito de chupar uma manga, um pedaço de melancia ou laranja para tapear a barriga e não sucumbir à fome. Fazia isso com cuidado, sem que minha mãe  soubesse. Ela dizia que as  pessoas   deviam jejuar na Semana Santa, em sinal de amor e respeito à ; morte do Cristo. O jejum era só naquela semana,  passava logo, ninguém ia morrer por isso.

            O comércio cerrava as portas na quinta e sexta-feira. Ninguém trabalhava nesses dias. A mãe  falou que um homem entendeu de tirar leite da vaca  na Sexta-feira Santa para tomar no café da manhã. Quando ele começou a puxar as tetas da vaca, só saía sangue em vez de leite. Aquilo era um sinal do céu para que o homem respeitasse o dia em que Jesus Cristo, o bem-amado salvador da humanidade, foi crucificado sem piedade pelos homens.
            Parecia que toda a cidade amanhecia vestida de roxo na Semana Santa, principalmente na Sexta-feira. Assistia ao filme sobre a vida, paixão e morte de Jesus Cristo  na matinê da Quinta-Feira Santa do Cine Itabuna. As pessoas saíam cabisbaixas  do cinema quando o filme acabava. Ninguém se conformava com o que fizeram com Jesus, que foi coroado com uma coroa de espinho, depois de ser cuspido e chicoteado. Para não se falar na cruz pesada que o pobre coitado carregara  pelas ruas. Não satisfeitos com tanta judiação ainda pregaram o filho de Deus &nbs p;na cruz  de maneira cruel. Em vez de água quando Ele pediu, deram vinagre e, por último, enfiaram uma lança no coração.  Era demais o sofrimento de Jesus,  muita gente chorava.
            E tudo por causa do Judas, que traiu Jesus por um saquinho de dinheiro em moedas. O Judas passava como um dos apóstolos de Jesus, mas se rendeu à tentação do dinheiro. Deu um beijo na face  para entregar o filho de Deus aos soldados romanos. Todo mundo se vingava do Judas quando no filme ele aparecia enforcado, o corpo do traidor balançando numa corda amarrada ao galho da árvore seca. Nessa hora o  cinema quase vinha abaixo com as vaias da platéia.
           Tinha uma sensação na procissão da Sexta-feira Santa que tudo era pecado, dor e lamento pelo que fizeram a Jesus. A imagem de Nosso Senhor Morto era levada no andor pelas ruas  principais da cidade sob os cantos que falavam de pesares  e perdão:



                             Perdoai,  Senhor, por piedade,
                             Perdoai,  senhor, tanta maldade,
                             Antes morrer, antes morrer
                             Do que  Vos ofender...



            A tristeza estava nos ares por onde a procissão andava com Nosso Senhor Morto,  as pessoas sofrendo pelas pedras do caminho. Gente acompanhava a procissão descalça para pagar alguma promessa em razão da  graça alcançada através da bondade do Cristo salvador. Dona Olívia, a mulher do dono do Hotel Itabuna, vestida num comprido vestido  roxo,  que tocava  os pés, cabelos compridos caindo nas costas, fazia o papel de Maria Madalena. A matraca tocava, a procissão parava enquanto ela exibia  o rosto do Cristo no sudário..
            Numa voz doída, ela arrancava suspiros e lágrimas dos fiéis calados naquele trecho de rua em que a procissão parava.
                             
                           
                          Pai salvador,
                          Misericordioso,
                         Toca no meu peito
                        O sofrimento Teu.                  
                        Fadiga, sede,  fome.
                       Cuspe, espinho, sangue,.                   
                       Chicotada,  prego,
                       Madeira feita cruz,
                       Meu  Pai, perdoai
                       Os pecados meus.


             Naquele ano em que caiu uma chuva rala durante a procissão, usava as botinas novas que minha mãe presenteou-me no aniversário. A procissão voltava pela avenida do comércio depois de percorrer algumas ruas. A imagem de Nosso Senhor Morto já ia entrar na igreja para ser colocada no altar  quando a beata Detinha teve uma crise de nervos chegando a desmaiar. O padre passou um pouco de água benta na testa da beata, rezou  e pediu  que os fiéis cantassem com fervor. Os cantos entoados na pequena praça repleta de gente acordaram a beata Detinha, que começou a chorar alto e ao mesmo tempo agradecer ao Jesus Salvador por ter ali mesmo perdoado seus pecados.
No dia de procissão havia tanta gente na igreja e na praça que uma agulha não cabia lá dentro nem no lado de fora.  As  botinas novas apertavam  os meus  pés. Então pedi à minha mãe que me deixasse ir embora para casa, não queria ficar para ouvir a fala do padre encerrando a procissão. “ Os calos estão doendo muito, não agüento mais”,  disse  aporrinhado, ameaçando chorar. Ela ordenou baixinho no meu ouvido que ficasse comportado, acrescentando que a procissão já estava chegando ao fim.
                 Preferi não obedecer minha mãe. Foi só ela se ajoelhar com os demais fiéis na igreja para fazer a oração do creio-em-deus-pai, de olhos fechados, para apressado tirar  dos meus pés as botinas. Em casa disse à minha mãe que tinha resolvido agir daquela maneira para evitar que acontecesse comigo uma situação pior do que a da beata Detinha. Como ela desmaiaria ali mesmo na igreja. Mas a água benta que o padre passaria na minha testa, as orações  e os cantos entoados com fervor pouco iriam adiantar para que eu não ficasse des maiado durante muito tempo.
Claro que minha mãe compreendeu. Em vez de sermão, da sua voz bondosa, escutei que eu não me preocupasse. Não ia calçar mais aquelas botinas apertadas.
              Mas muita gente reparou e achou que menino mimado daquele jeito não daria certo no futuro. 

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Cyro de Mattos é escritor e poeta. Autor de 70 livros pessoais e, entre eles, cinco de crônicas. Também editado no exterior. Advogado e jornalista. Colabora quinzenalmente com a revista da crônica Rubem, há mais de quinze anos editada pelo jornalista e cronista Henrique Fendrich em Brasília, como homenagem a Rubem Braga, o melhor cronista do Brasil. Conquistou o Prêmio Casa das Américas em 2023 com o livro Infância com Bicho e Pesadelo e outras histórias.


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sábado, 12 de abril de 2025

A Descaracterização do Monumento da Saga Grapiúna 

Por Cyro de Mattos    


 

          O Monumento da Saga Grapiúna foi idealizado pela Fundação Itabunense de Cultura e Cidadania (FICC) em nossa gestão, que contratou o artista Richard Wagner, itabunense de fama mundial, para conceber e executar a obra como homenagem aos elementos formadores da civilização grapiúna: o sergipano, o negro, o índio e o árabe. Está localizado nas proximidades do Supermercado Jequitibá,    

        Trabalhado em cimento, a cor cinza da obra faz parte da sua concepção artística e está ligada ao seu conteúdo, por isso mesmo deve ser mantida. O Monumento faz parte do patrimônio público itabunense, mas não está tendo o melhor destino na sua reconstituição pela Secretária Municipal de Esportes e Lazer.  

        Como é uma obra que pertence à `Fundação Itabunense de Cultura e Cidadania sua recuperação deveria ser efetuada por esta instituição. Na recuperação atual não estão sendo respeitadas a concepção e a execução originais da obra. Os frutos do cacau foram pintados agora com tinta acrílica amarela e branca, a borda do enorme prato que dá sustentação ao monumento também foi pintada de verde.      

       Para completar a descaracterização originária de uma obra artística magnífica, as quatro figuras como símbolos da civilização cacaueira foram pintadas de verde. Entregue ao sabor da sorte, em várias administrações do executivo municipal, o monumento ficou com o gradil de proteção danificado, servindo lá dentro de depósito de coisas imprestáveis e lixo, até que foi eliminado atualmente. Uma das suas figuras símbolos da civilização cacaueira baiana está danificada. Acresce ao desmando apontado o fato lamentável com o desaparecimento da placa assinalando a inauguração da obra pelas autoridades da época e pelo artista Richard Wagner.

   


 
 Inauguração no Ano do Centenário da cidade 

A quem cabe zelar pela cultura de um povo e não corresponde aos seus apelos comete atitude imperdoável. A cultura alimenta a autoestima e reforça os laços identitários de uma sociedade nas suas relações com a vida.  Se a educação é o corpo da sociedade, que precisa ser bem alimentado, que dizer de sua alma, a cultura? Quem não valoriza a cultura de seu povo, contribui para que não haja resposta quando se pergunta qual é o seu nome, onde você nasceu e para onde você vai. Torna assim o ser humano um caminhante vazio no seu estar no mundo.  Até hoje em terras sulinas da Bahia viceja esse comportamento atávico do poder executivo municipal que não valoriza o que foi produzido para permanecer como referência do patrimônio artístico e cultural.

Qualquer sociedade que se diz civilizada não merece isso.


 

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Cyro de Mattos é escritor e poeta. Autor de 70 livros pessoais e, entre eles, cinco de crônicas. Também editado no exterior. Advogado e jornalista. Colabora quinzenalmente com a revista da crônica Rubem, há mais de quinze anos editada pelo jornalista e cronista Henrique Fendrich em Brasília, como homenagem a Rubem Braga, o melhor cronista do Brasil. Conquistou o Prêmio Casa das Américas em 2023 com o livro Infância com Bicho e Pesadelo e outras histórias.

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quarta-feira, 26 de março de 2025

 

O BATOM E UMA DECISÃO FORA DO TOM ...  

Sérgio Habib 

Professor de Direito Penal e Processo Penal. 

Advogado criminal. 


Estarreceu-nos uma das últimas decisões da mais alta corte de justiça brasileira  que condenou uma mulher, mãe de família, com dois filhos pequenos  (impúberes), à uma pena de catorze anos de reclusão por ter escrito numa  estátua que simboliza a justiça, localizada na praça dos Três Poderes, em  Brasília, a frase seguinte: “Perdeu mané...” 

Apesar de ter sido lavada dias  depois, com água e sabão, e de ter, consequentemente, desaparecido a  inscrição, sem qualquer prejuízo material ao patrimônio público, a condenação,  ainda assim, foi imposta, lastreada em denúncia do Ministério Público Federal,  que capitulou o fato como sendo atentado contra o estado democrático de  direito e dano ao patrimônio público. Nada mais bizarro em termos jurídicos.  Jamais se viu isso na história da justiça brasileira, numa desproporção que  causa espanto. Aliás, nada nos deveria mais surpreender partindo do STF,  diante das mais recentes decisões que vêm sendo ali adotadas. De há muito que  se rasgou a Constituição Federal e, em seu lugar, passou-se a adotar a Cartilha doRevanchismo e da ideologia político-partidária, como se os juízes que ali têm  assento fossem membros de partidos políticos e não de uma vetusta instituição  apartidária, como, em verdade, deveria ser o Supremo Tribunal Federal. Já nem  nos referimos à figura do crime impossível, contida no art. 17 do Código Penal,  que diz não se punir a tentativa quando por impropriedade absoluta do meio ou  impropriedade absoluta do objeto, for impossível consumar-se o crime. Em  outras palavras, como alguém portando um simples “batom”, poderia ameaçar  o estado democrático de direito, sobretudo quando o tipo penal do artigo 359  L, do Código Penal exige emprego de violência ou de grave ameaça, elementares  para a configuração do crime em apreço? Mas isso já não mais importa quando o direito e a justiça, de há muito, se ausentaram do átrio do Pretório excelso. De  que valem as leis, se os seus aplicadores não na seguem, não a obedecem,  preferindo interpretá-la segundo as suas convicções políticas e interesses  pessoais? “Por outro lado, é de indagar-se: Qual das condutas ofende mais o  estado democrático de direito? a de uma simples cidadã, que escreve displicentemente com um batom a frase “perdeu mané” numa estátua  petrificada, ou a frase dita por um membro do próprio STF “perdeu mané”,  posicionando-se politicamente e assoalhada aos quatro cantos, lançada no  rosto de duzentos milhões de brasileiros? O que agride mais? Qual delas tem  maior efeito deletério? Uma, se apaga com água e sabão; a outra, está gravada  na história e nas mídias sociais indeléveis, mas, sobretudo e principalmente, na memória nacional. Uma, com o batom, se rabiscou uma frase na estátua da  justiça.

Outra, com uma palavra, se conspurcou a imagem da própria justiça.  Porém, são os que julgam, os mesmos que se dizem vítimas dos crimes  praticados, numa simbiose espúria a denunciar um grave desrespeito às leis, à  doutrina e à própria jurisprudência do STF, quando ainda não era um órgão  político, senão que uma instância última de resolução de conflitos, a quem se  recorria em busca de justiça. Nem se diga aqui, sobre o absurdo que representa  o STF julgar processos em que um de seus membros se diz vítima de delitos, e  ele mesmo é o relator da ação, sem qualquer impedimento ou suspeição.  Qualquer juiz de instância inferior que praticasse tamanha absurdez seria  sumariamente afastado e responderia processo administrativo disciplinar pelo CNJ e, posteriormente, sem dúvida, aposentado compulsoriamente. Porém o  SFT está acima do CNJ, não se sujeitando, pois, à sua jurisdição. O STF reina  absoluto, até porque, quem poderia julgá-lo, ou contê-lo, o Senado Federal, não  chega a ser tão desassombrado a esse ponto. Exemplo disso são os inúmeros  pedidos de impeachment engavetados, o que somente depõe contra o poder  legislativo. Fazer justiça é algo muito sério. Praticar injustiça, mais ainda.  Embora se saiba que aquela mulher com o bastão cosmético jamais poderia  ameaçar o estado democrático de direito, faz-se de conta que isso ocorreria,  que ela seria capaz de abalar as estruturas da nação. Daí é que sua condenação, sob a óptica suprema, tem toda razão de ser.

Quem leu o rei Lear, a tragédia dicotômica shakespeareana entre o Bem e o Mal no campo da justiça, sabe  muito bem sobre o que nos referimos. Em outras de suas peças, Shakespeare  brada, na voz do personagem Saturnino: “Traidor, Roma tem a lei, mas nós, o  poder”, (Tito Andrônico). Temos apenas por consolo que, no cenário das  injustiças judiciais há uma série delas, que, tempos depois, foram revisadas e  devidamente reparados os erros, com a só diferença de que, na grande maioria, os tribunais erraram por “error in judicando”, e no caso do batom, a justiça errou  por dolo mesmo, vale dizer, sabia que estava cometendo uma injustiça e queria  praticá-la, pois se utilizou da lei do talião para julgar ao invés de aplicar a  verdadeira justiça. Ruy já dizia: “a justiça, cega para um dos dois lados, já não  é justiça. Cumpre que enxergue por igual à direita e à esquerda.” Só que, no  caso sob análise, não se quis enxergar por igual à direita e à esquerda,  preferindo-se enxergar apenas um dos lados, aquele mais perverso e  desalmado, o mais insensível e cínico, o mais incompreensível e absurdo, o mais  ferrenho e maldoso, o mais faccioso e desumano, e, por fim, o menos justo de  todos os injustos possíveis. 

O tempo dirá ...

* * *

sábado, 15 de fevereiro de 2025

Evocação de Ferradas em Versiprosa    

Por Cyro de Mattos                 

                  


                 Para Jorge Amado 

                 e Telmo Padilha, 

                 em memória.  

 

De tanto estar o céu em longe amanhecer 

dizendo o bem na fé houve o padre Livorno   

com a sua batina mágica.  

Ecoava temente a Deus sua voz no chão bárbaro,  

indiferente ao que dizia a escritura da paixão. 

A catequese do louvor na sapiente profecia 

se ligava nos indígenas como refúgio do amor.  

Cruzavam as solidões sacolejando na carga  

os que vinham de longe. No pouso do povoado 

queriam nova ferradura para o casco da burrada. 

Em alvoroço de festa ferravam até as árvores,  

uma coisa grandiosa de ver onde deixavam sua marca   

para o mundo não esquecer.      

O machado anunciou os propósitos da terra,    

duras mãos enredaram grossos nós do destino.     

Com talhos na jaqueira a folhinha imprimiu        

as vastidões desoladas.  Em ébrio ouro vegetal 

 facão e podão dançaram.   

Comercinho novo veio cifrar o mundo, o fazer  

das ferramentas anotava a cada chuvada 

a arte de influenciar a lavra.  

Inaugurou-se a praça com água boa, ardente. 

Lá para as tantas a viola no peito gemia,  

 sua irmã sanfona retirava da lágrima       

sons agudos com suor, um frio medonho  

da serra, os dias de açoite do vento 

derrubando os paus grandes.    

 

Em casas escoradas o bafo da noite abafada,   

na cama de vara o coito quente ligando corpos 

na danada hora do gozo se amassando e gemendo 

e no ninho acontecendo.     

Marasmo de rua comprida oculta os dias de outrora,  

amadurecidos na safra dourada como a riqueza, 

no sobrado amanhecendo, o sol veio sumindo sem brilho  

na vontade alquebrada soterrada de desejos. 

Armazém de porta larga guarda o tempo remoto    

das estações grávidas, a barcaça com amêndoas  

valendo tanto quanto ouro. 

 Ferradas nem mais viceja, dorme agora, seu sono  

arrastado de bicho pesado, submersa onde somras 

 envolvem a praça calada,  

Perto da igreja, em vigília costumeira, espera sua gente 

 humilde, que vem à procura de Deus. Sua atitude lenta 

agora é desprovida do cheiro de resina ligada na memória  

de bairro-mãe  desprezado,  ao léu de omissões seguidas,  

ninguém quer conhecer como ali se plantou a vida.   

Ao invés do vazio na história tudo que deseja é um caminho, 

nada mais correto o lugar que lhe é devido nos frutos que deu,     

pois o amor ao amor retorna quando a razão tem caráter,  

protege o que é da terra numa ação de erguimento 

e não como longo despejo através da cor desbotada.  


 *Cyro de Mattos é escritor e poeta. Autor de 70 livros pessoais e, entre eles, cinco de crônicas. Também editado no exterior. Advogado e jornalista. Colabora quinzenalmente com a revista da crônica Rubem, há mais de quinze anos editada pelo jornalista e cronista Henrique Fendrich em Brasília, como homenagem a Rubem Braga, o melhor cronista do Brasil. Conquistou o Prêmio Casa das Américas em 2023 com o livro Infância com Bicho e Pesadelo e outras histórias.