15 de outubro de 2019
Péricles Capanema
“E chegavam-se a ele todos os publicanos e pecadores
para o ouvir. E os fariseus e os escribas murmuravam: ‘Este homem recebe e come
com pessoas de má vida!’. Então, lhes propôs a seguinte parábola: ‘Quem de vós
que, tendo cem ovelhas e perdendo uma delas, não deixa as noventa e nove no
deserto e vai em busca da que se perdeu, até encontrá-la? E, depois de encontrá-la,
a põe nos ombros, cheio de júbilo, e, voltando para casa, reúne os amigos e
vizinhos, dizendo-lhes: Regozijai-vos comigo, achei a minha ovelha que se havia
perdido. Digo-vos que assim haverá maior júbilo no Céu por um só pecador que
fizer penitência do que por noventa e nove justos que não necessitam de
arrependimento’”. (Lc 15, 2-7)
Enquanto escutava o Evangelho, comecei a imaginar a cena.
Ela se passa no deserto. Já me chamou especialmente a atenção. Ovelhas pastando
em região árida. Muitas, cem ovelhas, de repente uma tresmalha que afunda na
imensidão (ou na escuridão). Saí o pastor atrás dela sem hora para voltar;
enquanto não a localiza não retorna ao rebanho.
Aí tomei um susto. Deserto, noite provavelmente, o pastor na
procura. E, de início, não consegui resolver o nó. Pensei em quem ouvia a
parábola, alguns deles pastores, outros parentes, gente do ramo. E não
experimentaram estranheza, como a minha?
Aqui vai meu assombro. De fato, se um pastor tiver a seu
cargo e lado cem ovelhas, com os instrumentos pobres de agregação daquela época
(um bordão, brados, comidas pobres), nunca delas se afastaria para ir atrás de
uma desaparecida. Sem direção, expostas a predadores, lobos rondando, a
ladrões, ao descaminho, dispersas na escuridão, perderia todas, sem ao menos
ter a garantia de que encontraria a tresmalhada.Veio-me naturalmente ao
espírito outro versículo: “E vendo aquelas multidões, [Jesus]
compadeceu-se delas, porque estavam fatigadas e como ovelhas sem pastor” (Mt
9, 36).
Ainda, a parábola da ovelha perdida nada diz sobre a
possibilidade de as colocar sob os cuidados de outro pastor ou de as trancar no
redil. Estão no descampado, o pastor as deixa e vai atrás da extraviada.
Contudo, pelo que sei, a parábola nunca provocou
perplexidades; ao contrário, encantou os presentes e vem encantando os que a
ouvem ao longo dos séculos. A razão é simples: os ouvintes fixam o espírito nas
realidades morais, objeto da parábola, e abstraem a realidade tangível naquilo
que não se coaduna com a beleza espiritual ali ensinada. Não era sobretudo uma
cena bucólica, era principalmente ensinamento moral.
No mundo para o qual o conto nos convida o olhar, o bom
pastor à vera nunca abandonou as noventa e nove, delas sempre cuidou. “Dos
que me deste, não perdi nenhum” (Jo 18, 9). Apenas uma coisa a parábola
queria destacar, amava a ovelha tresmalhada, perdida nas brenhas, exposta aos
predadores, e atrás dela se lançou disposto a todas as formas de sacrifício.
Adiante. São Lucas diz que todos os publicanos e pecadores
ouviam a Cristo. Os judeus odiavam os publicanos, coletores de impostos para os
romanos. De outro modo, drenavam riquezas de um povo pobre, eram agentes da
dominação estrangeira em nação profundamente nacionalista. E os pecadores
viviam de costas para a Lei. Os dois grupos atraíam o desprezo dos
bem-pensantes, fariseus e mestres da lei.
De um lado, aparentemente a justiça, fria e implacável. De
outro, o espírito da Lei Nova, colocando a misericórdia em extremos que
poderiam parecer demasias.
No mesmo capítulo 15 está a parábola do filho pródigo; ela
também pode provocar perplexidades. O filho gastador e irresponsável exige e
recebe a herança inteira em vida. Vira as costas para os seus, some no mundo,
queima o dinheiro em farras. O pai, todos os dias, deixa a casa e caminha pela
estrada para ver se lá longe surgiria a silhueta do filho. Nada. Um dia o filho
sumido volta pobre, faminto e humilhado: “Não sou mais digno de ser
chamado teu filho, trata-me como um dos seus empregados”.
Resposta do pai: “Depressa! Tragam a melhor roupa e
vistam nele. Coloquem um anel em seu dedo e calçados em seus pés.Tragam o
novilho gordo e matem-no. Vamos fazer uma festa e alegrar-nos. Pois este meu
filho estava morto e voltou à vida; estava perdido e foi achado”. E começaram a
celebrar o regresso.
A música estrondeava os ares, corriam soltos os festejos, o
bom filho primogênito longe, labutava no campo paterno. Quando se aproximou da
casa, surpreso se informou do que estava acontecendo e se enfureceu pela
suposta injustiça gritante. Recusou-se então a participar da comemoração e
ainda repreendeu o pai: “Olha! todos esses anos tenho trabalhado como um
escravo ao teu serviço e nunca desobedeci às tuas ordens. Mas tu nunca me deste
nem um cabrito para eu festejar com os meus amigos. Mas quando volta para casa
esse teu filho, que esbanjou os teus bens com as prostitutas, matas o novilho
gordo para ele!”.
Demasias? De novo, a Lei Nova leva a misericórdia a extremos
que, de fato, não destroem. Edificam. Vivificaram a Igreja, vivificaram a ordem
temporal cristã, vivificaram famílias, levaram almas a realizar maravilhas
inconcebíveis no mundo pagão. É a vida divina fluindo no meio dos homens.
* * *
Nenhum comentário:
Postar um comentário