7 de setembro de 2019
PL1645, Revolta da Chibata e as lutas inglórias.
Apenas uma reflexão rápida sobre o passado e o presente.
A festa da independência é data propícia para lembrar que a
história já consagrou como corretas as atitudes de vários subordinados que –
acreditando que estavam agindo corretamente – decidiram lutar pela defesa de
seus pontos de vista. A própria proclamação da independência foi vista como um
ato de rebeldia de um subordinado que não aguentava mais ser explorado,
aviltado por seus superiores. Na época justamente alguns oficiais generais
portugueses exigiam que Dom Pedro continuasse a se submeter completamente e
tentaram até obrigá-lo a retornar para Portugal.
Em 9 de janeiro de 1822 o príncipe regente avisou que
permaneceria no Brasil, a data é conhecida como o Dia do Fico. Os fatos
evoluíram naturalmente e alguns meses depois o Príncipe insubordinado declarou
a independência do Brasil.
A Revolta da Chibata
90 anos após a declaração de independência, em 1910, um
grupo de militares ousou, em nome do fim dos castigos físicos na Marinha do
Brasil, após muitos pedidos por meio dos chamados “tramites hierárquicos”,
também lutar para defender seus pontos de vista. Acabaram se vendo obrigados a
se rebelar de vez e – como homens de coragem – se recusaram a continuar
passivos, sendo tratados como animais.
Na verdade vejo-os como os mais disciplinados de todos os
tempos, só depois de anos ou décadas assistindo punições ou sendo eles mesmos
punidos com castigos físicos – as vezes centenas de chibatadas – ousaram se
sublevar. Todos deveriam ser considerados heróis e seus descendentes sim
deveriam ser encontrados e recompensados por aquilo que seus antepassados
sofreram. Estes deveriam ser chamados ao Palácio do Planalto e ali deveriam
receber em sessão solene as desculpas do estado brasileiro, das Forças Armadas.
A coisa acabou crescendo mais do que os próprios marujos
esperavam e o movimento ficou conhecido como a Revolta da Chibata. “Um protesto
que se transformou numa revolta”, são as palavras do próprio João Cândido, que
é representado por uma discreta estátua num canto da Praça XV no Rio de
Janeiro.
Alguns negam que foi João Cândido que comandou a chamada
sublevação dos marujos.
A mim isso não importa, penso que ele na verdade representa
uma classe que era tratada como animais. Por isso todas as vezes que passo por
ali rendo-lhe uma homenagem silenciosa àquele homem… àqueles homens de brio,
com honra.
Pouca gente menciona, mas a marujada não queria só o fim dos
castigos físicos. Sempre pediram oportunidade para estudar, uma escala de
serviço mais humana e o afastamento dos oficiais violentos. Mas, as reclamações
eram vistas como coisa de indisciplinados, revoltados e jamais a sua luta foi
oficialmente reconhecida como razoável, coerente.
Naquele tempo ainda se achava que homens com estrelas nos
ombros eram os salvadores da pátria e suas decisões estavam sempre corretas. A
própria sociedade civil os via como uma espécie de deuses da sabedoria.
Por mais obvio que seja que rejeitar castigos físicos é algo
natural, louvável, o governo Brasileiro e as Forças Armadas se negam a aceitar
João Cândido como um herói.
Rejeitando um projeto de lei
Nas últimas semanas vemos uma grande movimentação de
militares da reserva tentando levar até o parlamento e ao Presidente da
República suas contestações contra um projeto de lei que acreditam que vai
prejudicá-los. Como em 1910, graduados não têm voz, suas associações não são
reconhecidas e somente a cúpula se acha no direito de discutir suas carreiras,
ainda que nas Forças Armadas existam duas carreiras. Uma de oficiais e outra de
praças.
Depois de tantos casos complicados, como o 28.86%, poucos acreditam
que os primeiros realmente velam pelos segundos.
No projeto apresentado – entre tantos absurdos – há um item
curioso.
Por mais que os regulamentos cobrem que todos os militares
representem bem as forças, o Ministério da Defesa teve a desfaçatez de inserir
no PL 1645, somente para os generais – na ativa a reserva – uma gratificação de
representação. Estarão todos os demais isentos de ser obrigados a bem
representar as Forças Armadas? Note-se que representar é algo que abrange muito
mais do que o vestir-se bem.
Representação engloba comportamento em público, modo de
falar, higidez financeira etc.
Alguns itens enquadrados como má representação
– Contrair dívida ou assumir compromisso superior às suas
possibilidades, que afete o bom nome da Instituição;
– Esquivar-se de satisfazer compromissos de ordem moral ou
pecuniária que houver assumido, afetando o bom nome da Instituição;
– Ter pouco cuidado com a apresentação pessoal ou com o
asseio próprio ou coletivo;
– Portar-se de maneira inconveniente ou sem compostura …
Estarão todos – exceto os generais – dispensados disso tudo?
Indo ao Parlamento
Alguns – que se acham superiores – insistem em ver como
afronta a hierarquia e à disciplina o fato de sargentos e suboficiais levarem
até os parlamentares as suas queixas. Ora, pessoalmente, como militar da
reserva, sociólogo e jornalista, enxergo mais como afronta a hierarquia o fato
de um general da ativa – ocupando cargo civil e falando em nome de um
Presidente da República que sempre incentivou as associações de graduados a
lutar por melhorias salariais – se dirigir à grande mídia se referindo a seus
subordinados como “estamentos muito inferiores”, que por isso não teriam o
direito de levar a sociedade e parlamento a discussão sobre um projeto de lei que
os afeta diretamente.
Lembro-o que projetos de lei são discutidos por
parlamentares, eleitos pelo povo. E que – portanto – o povo tem o direito de
opinar sobre as suas decisões.
A afirmativa que diz que os chefes sabem o que é melhor para
seus subordinados é derrubada vez por outra, sempre que – com a ajuda da
justiça – se revelam as inúmeras arbitrariedades e erros cometidos por aqueles
que ocupam os luxuosos gabinetes, nos andares mais altos.
As próprias medalhas concedidas para mensaleiros – cassadas
só após muita pressão popular – são também grande prova de que generais nem
sempre acertam.
Chefes militares devem ser reconhecidos sempre como tais, as
instituições não subsistem sem a hierarquia e sem a disciplina. Mas, devem ter
também a humildade de reconhecer que as instituições precisam evoluir – não só
em aspectos tecnológicos – mas também no trato com o pessoal.
Infelizmente. E muito infelizmente mesmo! Quase todas as
mudanças para melhor no que diz respeito a humanização de nossas instituições
chegaram após lutas como as de João Cândido e de muitos outros, tantos quantos
em algum momento ousaram ir contra o senso comum. Está na hora de mudar isso.
Hoje não é mais necessário tomar navios, pegar em armas ou
ir contra a legislação vigente. A batalha se dá no campo das ideias, da
argumentação, contra as negativas, caras feias de superiores hierárquicos e até
mesmo de pares que nem sempre discernem muito bem o que e legal do que é
ilegal.
Um salve, um Bravo Zulu, um brinde e nossa melhor
continência para todos que ousam ingressar em lutas inglórias, bem
intencionados e em favor daquilo que acreditam. Afinal, aquele que hoje é
reconhecido como o Rei dos reis foi quem empreendeu a mais inglória de todas as
lutas.
Robson / Militar R1, Cientista Social, jornalista.
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