Pássaro Acauã
Cyro de Mattos
Atravessar
males da estiagem, ouvindo o canto agourento, veja que Deus tarda, mas não
falha, eis que um dia vem cantar no galho verde. Bom lembrar que acontecerão as
flores, virão pra compensar os sentimentos esvaídos quando o canto é triste,
repetido. O pai ouviu isso do avô, que ouviu do bisavô, que ouviu do trisavô,
que ouviu do tetravô, que ouviu do tempo infindo.
Crendice
besta de velho sem juízo. Fizera pouco dos ditos, os ouvidos entupidos praquele
tipo de iludição. O que existe mesmo pro pobre é trabalho muito e o pouco
de-comer, vidas secas, destino. Pobre nasceu pra ter na vida só secura, foi o
que se deu com o pai, a mãe, os irmãos pequenos. Como dói olhar as cruzes deles
nas covas junto do lajedo. Lembrar dos corpos com pele e osso. Olhos mortiços.
Agora
enfrenta essa estiagem braba há quase um ano. Nada pode fazer. Como brasa céu e
margem. A história novamente acontece. Canto, encanto, desencanto. Frutos
murchos, folhas mortas, choro oco, grito sem eco. Ele e o deserto, só deserto.
Ares da morte nas pedras, tocos, troncos. Diabo de canto resinguento. E ainda o
coro dos filhos nos pedidos: “Tou com fome, tou com sede.” Surdo ele, muda a
mulher. O coração de cada um doendo, a fome roendo nas tripas.
Quem tem
medo de acauã?
Rumores,
clamores, tremores: humanos anseios. Sonha com a chuva, no íntimo querendo ver
a flor, o fruto, pegar o verde. Inundar o olho alegre pela terra como brasa
verdejante, de tanta beleza e brilho.
A-c-a-u-ã, a-c-a-u-ã, a-c-a-u-ã, o canto do Cão no arvoredo seco. Tenso
apalpando, segue ouvindo, desespero no corpo, raiva marca o ritmo da mente.
Mira perfeita, dedo no gatilho, a bala bem no peito.do bicho. Como se saísse
pela goela seca, latejando ódio, vendo o bicho cair junto aos pés. Troço
nojento, tão ruim quanto veneno!
Quem falou
que emudeceu? Na serra, baixada, jaqueira no terreiro. Depois do acontecido,
mais cantou. Que estranha magia rege este canto secreto? Psiu, veja, homem de
Deus, chuvisco, daqui a pouco chuva, em pouco tempo aguaceiro. É mesmo?
De cara
virada para o céu, chumbo, a chuva como chumbo batendo na terra, o pai não
disse? Esqueceu? Por que não quis ouvir o que os mais velhos bem conhecem?
Encharcando-se, sentado no cepo do ipê, lambendo os pingos. Do estômago à boca
há um gosto diferente. Sal de lágrima misturada com a água que cai do céu.
Escorre bendita por entre rachaduras, noites mal-dormidas. Ele todo febrento.
Não é que o bicho cantou no arvoredo verde? Enfim, os olhos com visões alegres:
capim chovido, a natureza toda alaridos.
Solitário,
cabisbaixo, a tristeza de dentro dele quer saber: O que é, o que é, põe o sol como hóspede no
arvoredo seco, esperança no galho verde quando quer?
A noite envolve o
casebre com as paredes de adobe exalando o cheiro de barro molhado. Ferrado no
sono. Decerto um canto propaga-se no sonho, atravessa caminhos sob o silêncio
da noite turva. Preserva o mistério das falas. Sabe o flagelo do sol, o prazer
da chuva.
De jejuns, de água. Desencanto ou encanto. Lá fora quieto.
Por enquanto.
Cyro de Mattos é escritor e poeta.
Prêmios importantes.
Também editado no exterior.
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