O diabo e a carne
Não posso dissociar Carlos Heitor Cony de meu antigo
professor do Salesianos, em Niterói, José Inaldo Alonso. Foi este quem me levou
ao romance “Pilatos”, fascinado pelo estranho rumor de suas palavras.
Colegas de seminário, Carlos Heitor e José Inaldo não
chegaram a padres. E, no entanto, nenhum deles perdeu a visão do mundo como
liturgia, cujo centro era Roma. Munidos de adágios latinos, foram bater às
portas da Suma teológica, para adoção da dialética tomista. Guardaram
ambos a visão técnica e elegância do conceito, mas logo se tornaram
agostinianos. Leram O diabo de Papini e Os grandes cemitérios
sob a lua, de Bernanos, pintaram quadros e tiveram filhos.
Carlos Heitor Cony fez parte de uma constelação inicial que
incluía um traço de diversidade que abarcava tanto a vocação plural de Alceu
Amoroso Lima quanto as memórias poéticas de Antonio Carlos Villaça, os romances
de Lúcio Cardoso e de Otavio de Farias, os poemas de Murilo Mendes e Jorge de
Lima.
Cony criou um mundo literário singular. Homem de ampla
cultura, nunca se desligou do presente, do Brasil e do mundo. Quase
memória é um de seus livros mais reconhecidos, redesenhou a figura do pai
na literatura brasileira e trouxe Cony de volta para uma nova geração de
leitores, como quem renasce de um longo silêncio.
E houve ainda O piano e a orquestra. Daí em diante sua
obra não saiu de meu campo visual. Admirava o fato de navegar rio acima, contra
a corrente, jamais prisioneiro de um lugar, de uma voz, de uma tendência.
Espírito rebelde, sempre a ler o mundo a contrapelo. Uma espécie de Papini
moderno, com a sua dialética sem concessão, estilo que correspondia a uma
atitude complexa diante da modernidade, liquida ou gasosa, à qual aderia com
método, ou dela se afastava, com uma leve polêmica de fundo neotomista.
Gostava de ópera e amava as igrejas de Roma, que conhecia em
detalhes. Antepunha Lima Barreto a Machado de Assis, os charutos cubanos aos
toscanos. Preferia Caravaggio a Guido Reni, Michelangelo a Bernini. A
pincelada mais densa, o corte mais profundo.
Seu pensamento era um contraste irrequieto, fruto de
escolhas excludentes. Um mosqueteiro pronto ao ataque, entre o diabo e a carne.
O Brasil foi a sua razão dominante e possuía uma forma toda
sua de ler a história recente. Mesmo que nem sempre concordássemos, era
impossível não ler seus artigos, não se sentir desafiado pela inteligência de
suas posições. Um duelo importante no campo das ideias, justo quando o país se
mostra cada vez mais deserto de ideias.
Cony gostava de “Os Bruzundangas”, de Lima Barreto, esse
país estranho e paralelo ao nosso, íntimo e remoto, misto de rascunho e
loucura. Esse modelo negativo de país é um espantalho que obriga a
repensar nossos caminhos. Um momento de intensa crise.
Nesse estranho interregno, sua obra guarda o brilho de um
mundo aberto e inacabado.
O Globo, 07/02/2018
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Marco Lucchesi - Sétimo ocupante da cadeira nº 15 da ABL,
eleito em 3 de março de 2011, na sucessão de Pe. Fernando Bastos de Ávila , foi
recebido em 20 de maio de 2011 pelo Acadêmico Tarcísio Padilha. Foi eleito
Presidente da ABL para o exercício de 2018.
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