Veraneio
Cyro de Mattos
Morávamos no continente, onde a cidade era dividida pelo rio
em duas partes. Da balaustrada do jardim avistava-se longe morros e matas, o
verde intenso que se emendava com o azul descaindo do céu. O litoral era como
se estivesse em outro país, distante do continente. Lá existia o mar que se
desmanchava na praia, navio que trafegava na barra, entrava pelo canal para
atracar no porto, avião que voava como pássaro de ferro em busca de outros
longes.
O menino de minha época, morador do continente, o que mais
queria era que chegassem as férias de dezembro, a partir de janeiro iria com os
pais e irmãos fazer o veraneio no litoral, quando teria a oportunidade de
navegar por mares nunca dantes navegados. Ultrapassaria os perigos do mar,
pescaria os peixes maiores, apostaria corrida com o vento ligeiro pela praia e
seria sempre o vencedor em cada corrida.
Sorridente, de calção e peito nu, beberia água de coco para
amenizar o calor que fazia escorrer o suor, à noite dormiria com as estrelas
pisca-piscando nos olhos. O sono seria embalado pela canção das ondas, que
chegavam sonoras com seus leões de jubas alvas bramindo na praia.
Embarcávamos em seco na marinete, um ônibus de cadeira dura,
que seguia aos solavancos na estrada de barro, o motorista e os passageiros
botavam fogo pelas narinas, cuspiam cobras e lagartos. Quando a marinete
alcançava a entrada do litoral, depois da ponte do fundão, um cheiro de maresia
trazida pelo vento de amanhecer arrancava um sorriso feliz do menino. A
marinete terminava a viagem no local onde havia uma amendoeira frondosa, o
tronco grosso com a casca enrugada pelos anos.
Os carregadores aguardavam o desembarque dos passageiros
para levar suas bagagens até o porto, dali iriam embarcar para o Pontal ou
Olivença, conforme o local que tivessem escolhido para fazer o veraneio. Muitos veranistas escolhiam o Pontal dos
Ilhéus, onde havia energia elétrica. Com meus tios e primos eu iria conhecer
Olivença, um povoado que havia sido aldeia dos indígenas tupinambás na época do
Brasil colonial.
A viagem agora para o Pontal seria feita por lancha. Quando
a maré estava alta, a embarcação jogava de um lado para o outro, parecendo que
iria virar a qualquer momento. O menino e os primos tinham medo, pediam calados
a Deus que terminasse logo aquele trecho perigoso da viagem e finalmente
chegassem ao desembarque no Pontal dos Ilhéus. Ufa! No local de chegada, no
Pontal dos Ilhéus, as ondas enraivadas tinham ficado felizmente para trás,
subindo e descendo no canal por onde os navios de calado menor chegavam para
atracar no porto.
Do Pontal para Olivença, o transporte que levava os
veranistas era um caminhão. A maior parte do percurso seria feito pela praia,
se a maré estivesse seca. Nas proximidades da chegada ao lugarejo, pegava-se um
trecho de estrada de barro, por entre coqueiros, o caminhão velho passava com
cuidado no pontilhão feito com tronco de árvore.
Veraneio em Olivença
levava vantagem em relação ao que ocorria no Pontal. Lá havia a fonte de
Tororomba, uma piscina natural de água térmica, procurada pelos veranistas
depois do banho de mar. Mas era na praia
de areia alva, onde brincava no jogo de bola, mergulhava nas ondas antes que
elas batessem contra o peito, pescava siris e peixes pequenos com a rede, que o
menino e os seus primos mais se deliciavam com a vida em estado de graça, em
ambiente marinho salpicado por ventos brandos e marés festivas.
Ficava com a pele tostada pelo sol, que na manhã cheia de
brilho irradiava seus raios dourados como se fosse uma flor gigantesca.
Resvalava na sua cor de ouro sobre o
verde das ondas. Do céu descaía um azul translúcido, que inventava milhares de
espelhos nas ondas onde o sol admirava sua beleza permanente de verão.
Passaram verões, verões passaram. Quem diria que um dia
fossem construir duas pontes para fazer a ligação entre Ilhéus e o Pontal. A
mais nova estava servindo de cartão postal e orgulho dos que transitavam nela.
Entre o Pontal e Olivença, a estrada foi asfaltada. Hotéis, pousadas, bares,
restaurantes, cabanas de praia. A
paisagem agora é outra, modificada na faixa litorânea, rola na arquitetura
moderna e nas cabanas com gente vinda de fora.
Nessa manhã de sol esplêndido, caminho apenas com o vento,
soprando nos meus cabelos grisalhos a canção que aquele menino apreciava,
falava de verdes e azuis rolando pelas ondas. Quem dera fosse sempre o tempo
com aquele som no qual os sonhos espumavam na praia de areia branca para encher
de rumores o mundo salpicado de encanto em cada veraneio.
Aqueles rumores não disseram que de outras ondas ficaria
sabendo o menino quando rolasse nas ilhas do adulto. Nesse mar de amanhecer
áspero às vezes com sargaço. De tanto mergulhar e tentar se livrar de ondas
perigosas não tinha como não saber do sal espalhado pelo vento em outra canção
diferente.
Cyro de Mattos é escritor e poeta. Membro Titular da
Academia de Letras da Bahia e do Pen Clube do Brasil. Primeiro Doutor Honoris
Causa da Universidade Estadual de Santa Cruz. Um dos idealizadores da Academia
de Letras de Itabuna (ALITA).
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