Mortalha
Moro em frente à Lagoa Rodrigo de Freitas, no caminho do
túnel Rebouças, principal via de ligação entre a zona sul, o centro e a zona
norte do Rio de Janeiro.
Aprendi, com a vida, a lidar com o eterno engarrafamento das
cercanias do meu prédio. Tracei estratégias para suportá-lo com resignação, e
na época em que ainda existia a Árvore-de-natal da Lagoa, cheguei a abandonar o
volante e ir a pé, devido à quantidade de curiosos em torno do espelho d'água.
De janeiro para cá, os congestionamentos desapareceram como
que por milagre. Dei para ir e vir com uma rapidez espantosa, comemorei a
melhoria do trânsito, até perceber que o fenômeno nada tinha a ver com
mobilidade urbana. Era a crise. A crise e a depressão da cidade.
Os restaurantes e bares estão vazios, os teatros fecharam,
as lojas se foram e os hotéis olímpicos acabaram às moscas. É como se
estivéssemos vivendo sob um toque de recolher. Minha mãe comentou, outro dia,
que sente o Rio envolto numa mortalha.
Os assaltos, as trocas de tiro que ecoam como na Síria, os
arrastões continuam, mas a calmaria é assombrosa.
Não há dinheiro nem plano, não há futuro ou comando. É como
estar num transatlântico à deriva, rezando para passar, você nem sabe o quê.
Pezão abriu mão de governar, declarou estar ciente de que
não resistirá muito mais no cargo. Crivella honra compromissos na África, como
pastor, e tem planos para fechar as torneiras da festa pagã do Carnaval.
No último dilúvio, a comitiva do prefeito colidiu com o
carro de um cidadão e passou batida, sem prestar assistência. Crivella,
suspeita-se, tinha pressa de chegar em casa, para ficar a salvo das corredeiras
de esgoto e lixo em que se transformaram as ruas e avenidas sob sua
responsabilidade.
Normal. Não se espera mesmo nada do andar de cima. Não há
revolta, não há mais bombas na Primeiro de Março. Resta apenas a apatia, e uma
falta de saída de arrepiar.
Os males que ameaçam o país parecem acontecer antes, e com
mais intensidade, nessa vitrine chamada Rio de Janeiro. Carma de ex-capital. O
PMDB de Cunha e Cabral levou a medalha de ouro em corrupção, o buraco da
Previdência já mostra os dentes por aqui, e a falência é palpável.
Ninguém merece a Alerj, Picciani, ou a oposição de
Garotinho. O Rio prima pelo horror, mas os eguns engravatados de Brasília não
deixam nada a dever aos mortos-vivos da Guanabara.
Michel Temer sofreu bullying na Noruega, tem uma taxa de
aversão de 93%, é investigado por formação de quadrilha. Ainda assim, não há
grita.
O medo do colapso da economia, a tentativa de atravessar o
lamaçal até 2018 sem fazer marola, o "Fora, Temer" tão colado ao
"Volta, Lula", o deserto de candidatos, tudo isso explica, em parte,
o marasmo. Mas a paralisia do Rio diz mais.
Cansamos. Desistimos deles.
No temporal de 20 de junho, um mergulhador limpou os bueiros
da praça da Bandeira por conta própria, enquanto Crivella fugia a caminho de
sua casa.
Não há consenso ou energia que faça a indignação chegar às
praças, mas um e-mail seguido de "send", para pressionar os deputados
da CCJ a levar a acusação de Janot a plenário, já seria um baita de um esforço
cívico.
Temer é como Pezão. Já foi e sabe. É preciso impedir que ele
estenda a mortalha.
FERNANDA TORRES - 30/06/2017 - FOLHA DE SÃO PAULO
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Enviado do meu smartphone Samsung Galaxy.
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