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sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

ORGIA DE CARNAVAL: Um dia (e uma noite) de cão – Ivan Sant ‘Anna


Caro Leitor,

Durante quase vinte anos eu folguei nos feriados americanos e trabalhei nos brasileiros, mesmo quando estava aqui no Rio. Memorial Day (última segunda-feira de maio), Labor Day (primeira segunda-feira de setembro), Thanksgiving Day (a quarta quinta-feira de novembro), entre outras, eram datas nas quais eu não ia trabalhar.

Embora tivesse cadeira cativa em um escritório de Chicago (20 South Wacker Drive) e em outro de Nova York (Four World Trade Center 5th floor), a maior parte do tempo eu ficava numa mesa de operações de um banco situado no 17º andar de um prédio na esquina de av. Presidente Vargas com Rio Branco, bem no Centro. De lá, não tinha como não assistir o desfile militar de 7 de setembro, nem os desfiles de escola de samba do terceiro grupo, no Carnaval, nem diversas passeatas no dia de Corpus Christi.
     
Nessas datas, eu trabalhava sozinho na mesa de operações e almoçava uma marmita que levava de casa. Como ninguém iria ligar a central de ar-condicionado de todo um prédio só por minha causa, costumava abrir todas as janelas da enorme sala. E por elas entravam as marchas militares na Independência, os sambas-enredos no Carnaval e a música gospel no Corpus Christi.

Não sei se inspirado pela diversidade musical, ou contagiado pela festança lá embaixo, ou encorajado pela minha solidão, o certo é que nessas ocasiões eu arriscava muito mais do que nos dias comuns. E vejam que sempre gostei de riscos (não é à toa que fui rico e pobre três vezes, antes de estacionar na classe média), de alavancagens e de mercados exóticos. Já operei feijão vermelho na bolsa de Tóquio, azeite de dendê futuro (não na Bahia, mas na Malásia) e barriga de porco (pork belly) em Chicago.

O auge de minha orgia operacional solitária acontecia no Carnaval. Certa vez, resolvi operar em todos os mercados de moedas, de instrumentos financeiros, de commodities e de índices de ações. Um contrato de marco alemão, um de libra esterlina, um de Treasury Bonds, um de S&P 500, um de ouro, um de prata, um de milho, um de soja e assim por diante. Comprei ou vendi de tudo. Sempre um. Usei como estratégia comprar os que estavam em alta e “shortear” os que estavam em baixa.

E não é que deu certo? Entrei nas posições na segunda-feira e zerei tudo na terça. Com pouquíssimas exceções, os ativos que estavam subindo continuaram subindo e os que caíam permaneceram em baixa. Não ganhei nenhuma fortuna, mas pus no bolso uns quatro ou cinco mil dólares, nada mal para um Carnaval despretensioso. Tudo na física, bem entendido. O risco foi meu, o lucro foi meu. E ninguém soube de nada porque maluquice, esquisitice e outros “ices” têm de ser sigilosos, caso contrário os clientes (eu era broker também) somem.

Um desastre
      
A brincadeira acabou na segunda-feira de Carnaval de 1994, que caiu em 14 de fevereiro. Nesse dia, o primeiro-ministro japonês Morihiro Hosokawa se encontrou com o presidente Bill Clinton no salão Oval da Casa Branca numa reunião de trabalho. Clinton queria que o governo do Japão forçasse uma desvalorização do iene, tese com a qual Hosokawa não concordava, preferindo o câmbio livre.

Após a reunião os dois chefes de estado participariam de uma coletiva, dando conta de seus acertos, ou desacertos. O mercado futuro de iene, negociado em Chicago, estava num impasse. Se Clinton convencesse o japonês, o iene despencaria. Caso o primeiro-ministro não concordasse com o colega americano, a moeda japonesa faria um novo high de um bull market que já durava anos.

Eu apostei em Clinton, “shorteando” pesadamente o iene. E deu Japão. Nem precisei ler a notícia do resultado da reunião de cúpula. Bastou olhar a tela de cotações e ver o iene disparar feito um foguete. Faltavam poucos minutos para o encerramento do pregão e tive de ser rápido para fazer um stop.

Na brincadeirinha de Carnaval perdi quase 30 mil dólares. Vinte e nove mil e tantos. Dinheiro que, naquela ocasião, me fez muita falta.

Com o desfile de escolas de samba do terceiro grupo rolando lá na av. Presidente Vargas, fui afogar minhas mágoas numa barraquinha, com latas e mais latas de cerveja acompanhadas de shots e mais shots de cachaça. E foi nesse estado de espírito (e de spiritual ) que peguei meu carro, uma Parati, para voltar para casa na Barra da Tijuca.

Quem conhece o Rio de Janeiro, sabe que a avenida Niemeyer é uma estrada costeira sinuosa que vai do Leblon a São Conrado. Tem pista simples, com mão e contramão. Uma faixa amarela central deixa claro que as ultrapassagens são proibidas ali.
Havia um carro lento à minha frente e do outro lado vinha um Escort XR3 conversível. Eu calculei que dava para passar e entrei na contramão. Só que, talvez por culpa do Clinton, do Hosokawa, da cerveja, da cachaça, ou mais certamente de minha irresponsabilidade ao volante, o certo é que bati de frente no XR3, novo em folha, no qual vinham quatro mancebos bem nutridos e vestidos de centuriões romanos com as cores da Mocidade Independente de Padre Miguel.

Os garotões eram parrudos, eu já tinha 54 anos e lutar (ainda mais contra quatro ao mesmo tempo) definitivamente não era o meu forte. Para não ser impiedosamente linchado, só me restou recorrer à minha voz da época de operador de pregão.

 Eu sou maluco, mas não sou ladrão”, foram minhas primeiras palavras, trovejantes. “Vou pagar agora, em cheque, o prejuízo que vocês calcularem, seja quanto for (complemento de frase do qual me arrependi). Dou em garantia minha carteira de identidade e meus cartões de crédito.” Uma patrulhinha da PM chegou pouco mais tarde, relevou meu estado etílico e providenciou dois reboques (pagos por mim, é claro).

 Bem, não vou terminar esta história com um clichê politicamente correto do tipo: “Se beber, não dirija.”

Prefiro uma dica de trader que já levou muita porrada, embora não física e muito menos de sambista. Não tome decisões só por tomar. Do estilo: “Pra não dizer que não fiz nada”. Na dúvida, fique quieto, ouvindo um cantor gospel sertanejo, se necessário.

Um abraço,
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 Enviado por: Sunday Notes sunday@mail1.inversapub.com

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CHIADO BOOKS: OLHOS NOS OLHOS COM O FUTURO - Pedro Mello Antunes


Por Pedro Mello Antunes

Passeando pelo novo escritório da Chiado Books, em Lisboa, podemos ver aqui e além, espalhados um pouco por todas as secretárias, diversos livros. Se não é de espantar que aqui seja fácil falar de livros, de publicação, do gosto pelas capas, pela escrita, uma ideia começa no entanto a desenhar-se: ninguém parece gostar muito de comparações.

“Não acho que possamos ser comparados com mais nenhuma empresa no mundo do livro”, diz Sarah Hamid, do Departamento Comercial, “está no nosso ADN essa liberdade para desenharmos uma identidade própria. Somos a Chiado Books, simplesmente!”. E este fio de raciocínio parece prosseguir de forma natural, quando começamos a falar com o fundador da Chiado Books, Gonçalo Martins: “O nosso percurso é único. A Chiado começou há 10 anos com o propósito de ser uma editora lisboeta. Entretanto tornou-se numa marca internacional! Como é que tudo isto foi possível? Quebrando os monopólios, e o circuito atávico de compromissos e interdependências que estavam instalados no panorama editorial, e que bloqueavam e suprimiam a liberdade de criar algo diferente, algo que nessa área fosse único, precisamente”.

A ideia de quebrar as regras do jogo para se libertar parece ser a base do segredo deste crescimento. Essa ideia resiliente, que soa em todas as conversas com elementos da Chiado e em toda a descrição da história da empresa: a ideia de liberdade. O princípio de não haver dependência em nenhuma parte do circuito editorial. Foi certamente essa ideia que esteve na base da criação de meios gráficos próprios. Parecem longínquos os anos em que a empresa  se debatia com alguma falta de espaço num pequeno escritório na zona de Santa Apolónia, com duas pequenas máquinas de impressão. A Unidade Gráfica da Chiado, agora instalada na Portela de Sacavém, tem hoje dezenas de máquinas especializadas e emprega mais de 30 trabalhadores, assegurando a impressão e acabamento próprios de cada livro da Chiado.

Parece ser essa também a ideia que preside às novas instalações da Chiado, em Alcântara. Com Bar, Livraria, Restaurante, Auditórios e Escritórios, a ideia de criar um circuito próprio e integrado, pela primeira vez numa ideia de conjunto, parece materializar o sonho de trilhar um caminho próprio.  Da concepção, ainda numa fase digital, dos livros, até ao lançamento e apresentação dos mesmos, todas as fases do circuito são possíveis de concretizar, num só edifício, que parece materializar o sonho de futuro da Chiado Books. Voltaremos a ouvir falar do futuro, nesta viagem.

 “Nós somos feitos dos nossos autores. Eles são o nosso núcleo vital!”, começa por defender César Adão, do Departamento de Comunicação, instado a definir a Chiado Books. Tentamos então seguir essa ordem de ideias, não perdendo de vista a pergunta inicial. Então quem são eles, os autores da Chiado? Como defini-los? “Não creio que seja possível definir os autores que publicamos como um todo, concreto. São um grupo absolutamente heterogéneo e profundamente representativo, em todos os aspectos. Nos lançamentos encontramos autores que no seu livro encontraram uma forma de ultrapassar uma dor pessoal, outros que querem apresentar uma tese académica ou profissional, muitas vezes absolutamente original, a que mais ninguém quis dar voz, outros estão a concretizar um sonho. Mas há muito mais para além disto.”, conclui.

“Lembro-me de percorrer Lisboa com uma mochila cheia de livros, que ia deixando nas livrarias independentes da cidade. A realidade das grandes cadeias de distribuição não estava ainda generalizada, e o Facebook, onde hoje temos milhões de seguidores, não era ainda utilizado pela grande maioria das pessoas, por exemplo.”, recorda Gonçalo Martins. Mas deste pequeno apontamento de passado, talvez mais afectivo, quase caricatural, que propriamente saudosista, o fundador da Chiado Books, volta imediatamente ao tempo que lhe parece ser mais familiar: o futuro.
“O crescimento da Chiado passará pelo seu estatuto cada vez mais global. Quando aquela capa do “The Economist” de 2009 saudou o Brasil como um país do futuro, já sonhávamos com a nossa presença no Brasil. Montámos o nosso escritório em São Paulo, no Conjunto Nacional numa viagem relâmpago, porque acreditávamos que o Brasil pertence ao futuro, tal como nós. E continuamos a acreditar nisso!”.

 Segundo as estimativas de Gonçalo Martins, no volume de trabalho da Chiado Books, o Brasil não tardará a superar Portugal. Mas para além do Brasil, a empresa tem já uma presença, com perspectivas de crescimento, por todos os países da América do Sul e da América Central.

Mas se a Chiado Books é já o presente, o seu fundador não parece, uma vez mais, muito deslumbrado com essa ideia, para logo denunciar de novo a sua verdadeira obsessão: “Não sabemos do que é feito o futuro, mas será sem dúvida feito da mesma matéria que nós. Nós queremos antecipar, criar o caminho. E isso não é possível se vivermos obcecados com comparações, ou presos a uma ideia de passado. Só pode ser parte do futuro quem nunca o perde de vista!”.



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PATRIOTISMO, SIM SENHOR! - Olavo de Carvalho


Como todos os meninos da escola na minha época, eu não podia cantar o Hino Nacional ou prestar um juramento à bandeira sem sentir que estava participando de uma pantomima. A gente ria às escondidas, fazia piadas, compunha paródias escabrosas.

Os símbolos do patriotismo, para nós, eram o supra-sumo da babaquice, só igualado, de longe, pelos ritos da Igreja Católica, também abundantemente ridicularizados e parodiados entre a molecada, não raro com a cumplicidade dos pais. Os professores nos repreendiam em público, mas, em segredo, participavam da gozação geral.

Cresci, entrei no jornalismo e no Partido Comunista, frequentei rodas de intelectuais.

Fui parar longe da atmosfera da minha infância, mas, nesse ponto, o ambiente não mudou em nada: o desprezo, a chacota dos símbolos nacionais era idêntica entre a gente letrada e a turminha do bairro.

Na verdade, eram até piores, porque vinham reforçados pelo prestígio de atitudes cultas e esclarecidas. Graciliano Ramos, o grande Graciliano Ramos, glória do Partidão, não escrevera que o Hino era "uma estupidez"?

Mais tarde, quando conheci os EUA, levei um choque. Tudo aquilo que para nós era uma palhaçada hipócrita os americanos levavam infinitamente a sério.

Eles eram sinceramente patriotas, tinham um autêntico sentimento de pertinência, de uma raiz histórica que se prolongava nos frutos do presente, e viam os símbolos nacionais não como um convencionalismo oficial, mas como uma expressão materializada desse sentimento.

E não imaginem que isso tivesse algo a ver com riqueza e bem-estar social. Mesmo pobres e discriminados se sentiam profundamente americanos, orgulhosamente americanos, e, em vez de ter raiva da pátria porque ela os tratava mal, consideravam que os seus problemas eram causados apenas por maus políticos que traíam os ideais americanos.

Correspondi-me durante anos com uma moça negra de Birmingham, Alabama. Ali não era bem o lugar para uma moça negra se sentir muito à vontade, não é mesmo?

Mas se vocês vissem com que afeição, com que entusiasmo ela falava do seu país! E não só do seu país: também da sua igreja, da sua Bíblia, do seu Jesus. Em nenhum momento a lembrança do racismo parecia macular em nada a imagem que ela tinha da sua pátria.

A América não tinha culpa de nada. A América era grande, bela, generosa. A maldade de uns quantos não podia afetar isso em nada. Ouvi-la falar me matava de vergonha.

Se alguém no Brasil dissesse essas coisas, seria exposto imediatamente ao ridículo, expelido do ambiente como um idiota-mor ou condenado como reacionário um integralista, um fascista.

Só dois grupos, neste país, falavam do Brasil no tom afetuoso e confiante com que os americanos falavam da América.

O primeiro era os imigrantes: russos, húngaros, poloneses, judeus, alemães, romenos. Tinham escapado ao terror e à miséria de uma das grandes tiranias do século (alguns, das duas), e proclamavam, sem sombra de fingimento: "Este é um país abençoado!" Ouvindo-nos falar mal da nossa terra, protestavam: "Vocês são doidos. Não sabem o que têm nas mãos". Eles tinham visto coisas que nós não imaginávamos, mediam a vida humana numa outra escala, para nós aparentemente inacessível. Falávamos de miséria, eles respondiam: "Vocês não sabem o que é miséria". Falávamos de ditadura, eles riam: "Vocês não sabem o que é ditadura".

No começo isso me ofendia. "Eles acham que sabem tudo", dizia com meus botões. Foi preciso que eu estudasse muito, vivesse muito, viajasse muito, para entender que tinha razão, mais razão do que então eu poderia imaginar.

A partir do momento em que entendi isso, tornei-me tão esquisito, para meus conterrâneos como um estoniano ou húngaro, com sua fala embrulhada e seu inexplicável entusiasmo pelo Brasil, eram então esquisitos para mim.

Digo, por exemplo, que um país onde um mendigo pode comer diariamente um frango assado por dois dólares é um país abençoado, e as pessoas querem me bater.

Não imaginam o que possa ter sido sonhar com um frango na Rússia, na Alemanha, na Polônia, e alimentar-se de frangos oníricos.

Elas acreditam que em Cuba os frangos dão em árvores e são propriedade pública. Aqueles velhos imigrantes tinham razão: o brasileiro está fora do mundo, tem uma medida errada da realidade.

O outro grupo onde encontrei um patriotismo autêntico foi aquele que, sem conhecê-lo, sem saber nada sobre ele exceto o que ouvia de seus inimigos, mais temi e abominei durante duas décadas: os militares.

Caí no meio deles por mero acaso, por ocasião de um serviço editorial que prestava para a Odebrecht que me pôs temporariamente de editor de texto de um volumoso tratado O Exército na História do Brasil.

A primeira coisa que me impressionou entre os militares foi sua preocupação sincera, quase obsessiva, com os destinos do Brasil.

Eles discutiam os problemas brasileiros como quem tivesse em mãos a responsabilidade pessoal de resolvê-los. Quem os ouvisse sem saber que eram militares teriam a impressão de estar diante de candidatos em plena campanha eleitoral, lutando por seus programas de governo e esperando subir nas pesquisas junto com a aprovação pública de suas propostas.

Quando me ocorreu que nenhum daqueles homens tinha outra expectativa ou possibilidade de ascensão social senão as promoções que automaticamente lhes viriam no quadro de carreira, no cume das quais nada mais os esperava senão a metade de um salário de jornalista médio percebi que seu interesse pelas questões nacionais era totalmente independente da busca de qualquer vantagem pessoal.

Eles simplesmente eram patriotas, tinham o amor ao território, ao passado histórico, à identidade cultural, ao patrimônio do país, e consideravam que era do seu dever lutar por essas coisas, mesmo seguros de que nada ganhariam com isso senão antipatias e gozações.

Do mesmo modo, viam os símbolos nacionais - o hino, a bandeira, as armas da República - como condensações materiais dos valores que defendiam e do sentido de vida que tinham escolhido. Eles eram, enfim, "americanos" na sua maneira de amar a pátria sem inibições.

Procurando explicar as razões desse fenômeno, o próprio texto no qual vinha trabalhando me forneceu uma pista.

O Brasil nascera como entendida histórica na Batalha dos Guararapes, expandira-se e consolidara sua unidade territorial ao sabor de campanhas militares e alcançara pela primeira vez, um sentimento de unidade autoconsciente por ocasião da Guerra do Paraguai, uma onda de entusiasmo patriótico hoje dificilmente imaginável.

Ora, que é o amor à pátria, quando autêntico e não convencional, senão a recordação de uma epopeia vivida em comum?

Na sociedade civil, a memória dos feitos históricos perdera-se, dissolvida sob o impacto de revoluções e golpes de Estado, das modernizações desaculturantes, das modas avassaladoras, da imigração, das revoluções psicológicas introduzidas pela mídia.

Só os militares, por força da continuidade imutável das suas instituições e do seu modo de existência, haviam conservado a memória viva da construção nacional.

O que para os outros eram datas e nomes em livros didáticos de uma chatice sem par, para eles era a sua própria história, a herança de lutas, sofrimentos e vitórias compartilhadas, o terreno de onde brotava o sentido de suas vidas.

O sentimento de "Brasil", que para os outros era uma excitação epidérmica somente renovada por ocasião do carnaval ou de jogos de futebol (e já houve até quem pretendesse construir sobre essa base lúdica um grotesco simulacro de identidade nacional), era para eles o alimento diário, a consciência permanentemente renovada dos elos entre passado, presente e futuro.

Só os militares eram patriotas porque só os militares tinham consciência da história da pátria como sua história pessoal.

Daí também outra diferença. A sociedade civil, desconjuntada e atomizada, é anormalmente vulnerável a mutações psicológicas que induzidas do Exterior ou forçadas por grupos de ambiciosos intelectuais ativistas apagam do dia para a noite a memória dos acontecimentos históricos e falseiam por completo a sua imagem do passado.

De uma geração para outra, os registros desaparecem, o rosto dos personagens é alterado, o sentido todo do conjunto se perde para ser substituído, do dia para a noite, pela fantasia inventada que se adapte melhor aos novos padrões de verossimilhança impostos pela repetição de slogans e frases-feitas.

Toda a diferença entre o que se lê hoje na mídia sobre o regime militar e os fatos revelados no site de Ternuma vem disso. Até o começo da década de 80, nenhum brasileiro, por mais esquerdista que fosse, ignorava que havia uma revolução comunista em curso, que essa revolução sempre tivera respaldo estratégico e financeiro de Cuba e da URSS, que ele havia atravessado maus bocados em 1964 e tentara se rearticular mediante as guerrilhas, sendo novamente derrotada.

Mesmo o mais hipócrita dos comunistas, discursando em favor da "democracia", sabia perfeitamente a nuance discretamente subentendida nessa palavra, isto é, sabia que não lutava por democracia nenhuma, mas pelo comunismo cubano e soviético, segundo as diretrizes da Conferência Tricontinental de Havana.

Passada uma geração tudo isso se apagou. A juventude, hoje, acredita piamente que não havia revolução comunista nenhuma, que o governo João Goulart era apenas um governo normal eleito constitucionalmente, que os terroristas da década de 70 eram patriotas brasileiros lutando pela liberdade e pela democracia.

No Brasil, a multidão não tem memória própria. Sua vida é muito descontínua, cortada por súbitas mutações modernizadoras, não compensadas por nenhum daqueles fatores de continuidade que preservava a identidade histórica do meio militar.

Não há cultura doméstica, tradições nacionais, símbolos de continuidade familiar. A memória coletiva está inteiramente a mercê de duas forças estranhas: a mídia e o sistema nacional de ensino.

Quem dominar esses dois canais mudará o passado, falseará o presente e colocará o povo no rumo de um futuro fictício. Por isso o site de Ternuma é algo mais que a reconstituição de detalhes omitidos pela mídia. É uma contribuição preciosa à reconquista da verdadeira perspectiva histórica de conjunto, roubada da memória brasileira por manipuladores maquiavélicos, oportunistas levianos e tagarelas sem consciência.

Perguntam-me se essa contribuição vem dos militares? Bem, de quem mais poderia vir?


Olavo de Carvalho – Jornalista, Filósofo e Cientista Político.

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