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sexta-feira, 31 de julho de 2020

O INTRÉPIDO QUE RASGOU A MULTA - Ignácio de Loyola Brandão



J
e donne des aulas na Sorbonne. Foi o que disse um desembargador ao rasgar a multa na cara do guarda. Que orgulho deve ter sentido dessa coragem. Tornou-se homem, desafiador. Levitou. A frase em francês, por ele dita ofenderia os ouvidos de Fanny Marracini, que morreu quase aos 100 anos, depois de ter ensinado dezenas de gerações de araraquarenses a ler e a falar francês. Mon Dieu! exclamaria horrorizada, porque amava como poucos a língua. Nunca me esqueço do primeiro dia em que entrou na classe, nos levantamos e ela cumprimentou: “Bom dia, meus alunos”. Seguido por: “Esta é a primeira e última vez que vocês ouvem falar português em minhas aulas”. Emendou: “Bonjour mes enfants”. 

Realmente, dali para a frente só ouvimos francês e aprendemos, muitos ainda o usam como segunda língua. Pessoas como Sidney Sanchez, que chegou ao Supremo Tribunal Federal, Zé Celso que leu L’Être et le Neant no original, a Luis Roberto Salinas Fortes, que traduziu Sartre e se tornou professor de filosofia de primeira na USP ou o irmão dele, Hugo Fortes, advogado de nomeada que leu Balzac inteiro aos 20 anos também no original, ou Celso Lafer, o humanista e diplomata.

Fanny ao ouvir a frase em suposto francês, diria, acabrunhada: Épouvantable. A Aliança Francesa deve ter ficado estarrecida e preocupada: se as pessoas pensam que isso é francês, não é não. Também não é gíria, nem linguagem de malandro. Onde terá ele aprendido tal língua? Na Sorbonne não foi. Ali estudaram André Breton e Susan Sontag, Madame Curie e Lévi-Strauss, Sartre e Simone (vejam a intimidade), Derrida, Jorge Coli, FHC e Celso Furtado. Se o jurista queria impressionar, porque não se exibiu em curdistão, ou sânscrito, na língua dos Keftin, na dos hititas, quem sabe no ugarítico?

Lembrei-me de uma história acontecida comigo e com o jornalista Humberto Pereira, o criador dessa joia que é o Globo Rural. Estávamos em Paris, décadas atrás, e ele me viu saindo da Sorbonne, nas proximidades da Rue Cujas, onde eu estava hospedado. “O que estava fazendo aí?”, ele indagou. Sorri: “Ora, estudo aqui, pós-graduação”. Mostrei três livros comprados na Livraria LGDJ, ali vizinha, especialista em obras jurídicas, a pedido de meu amigo Fernando Passos, advogado de minha terra. Pereira abriu os olhos deste tamanho, mas entendeu, me fez um sinal: você não perde por esperar. Não revelei que vi uma porta por onde alunos entravam, fui atrás, queria ver por dentro escola tão famosa. Andei um pouco, fui interpelado por um bedel e posto para fora. 

Na mesma viagem, cheguei a Milão e Humberto estava lá com sua mulher Hebe. Almoçamos e fomos conhecer o Teatro Scala. Há coisas necessárias. Entramos, Humberto e Hebe desapareceram. Certo momento, eu estava na plateia, havia pouquíssimos turistas, sentei-me para sentir a atmosfera, esperando ver de repente Maria Callas. Foi quando ouvi: “Eu tenho uma mula preta tem sete parmo de artura/ A mula é descanelada tem uma linda figura/ Tira fogo na carçada no rampão da ferradura...” O mais puro Tonico e Tinoco. Olhei em volta e vi em um dos camarotes Humberto a cantar e a me acenar sorridente. Entendi. Na saída ele me disse: “Você estudou na Sorbonne, eu cantei no Scala. Estamos quites”. Nos regalamos com um belo jantar. Hoje penso, será que assim o desembargador estudou na Sorbonne? Não parece coisa de currículo de ministro bolsonarista?

O que me incomodou foi um homenzinho que parecia cordial, plácido, bonachão, de repente levado pela insegurança a se transformar em virulento, a dar carteirada sem propósito e humilhando um servidor público ao xingá-lo de analfabeto. Dominado por um complexo de inferioridade, buscou afirmação diminuindo o outro. Ora, segundo aprendi na escola e confirmo aqui no Aurelião, analfabeto é quem não conhece o alfabeto. Quem não sabe ler e escrever.

Fiquei intrigado. Como pode ser analfabeto o guarda que escreve a multa? Se estava escrevendo significa que foi à escola, aprendeu a escrever e a ler. Não soubesse ler, não saberia nem que lei aplicar naquele homenzinho da lei, surpreendido ao contrariar uma lei. Portanto, tinha formação o guarda Cícero. Aí, o indignado mostrou sua importância falando francês errado e ignorando a lei que ele deveria defender. Ou seja, aquele senhor foi surpreendido com as calças na mão como se costuma dizer. Ficou feio, passou vergonha e o Brasil inteiro viu. Viralizou, virou meme. Não sei quem é superior a um desembargador na hierarquia jurídica. Mas o formidável desembargador xingaria um juiz do Supremo de analfabeto? 

Naquela hora me veio velhíssima história, ainda de minha infância. No quartel, o marechal deu uma raspança no tenente. Este, irritado, transferiu a raspança ao major, que por sua vez descontou no brigadeiro, que foi em cima do coronel, que acabou com o tenente, que advertiu o capitão. Aí, o capitão deu em cima do sargento, que foi para cima do cabo, que pensou terminar no soldado. Este olhou em volta e chutou o indefeso cachorro. Último elo da cadeia. O guarda Cícero foi de impressionante dignidade. 

O Estado de S. Paulo, 24/07/2020


https://www.academia.org.br/artigos/o-intrepido-que-rasgou-multa

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Ignácio de Loyola Brandão - Décimo ocupante da Cadeira 11, da ABL, eleito em 14 de março de 2019 na sucessão do Acadêmico Helio Jaguaribe.


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CYRO DE MATTOS PUBLICA LIVRO DE PROSA E POESIA DE AUTORES DO SUL DA BAHIA


                        Cyro de Mattos Publica

Livro de Prosa e Poesia

De Autores do Sul da Bahia

         

          Membro das Academias de Letras da Bahia, de Ilhéus e de Itabuna,  publicado também  no exterior, Doutor Honoris Causa da UESC, autor de extensa obra, de vários gêneros, o escritor e poeta Cyro de Mattos acaba de publicar pela editora baiana Via Litterarum o livro “Poesia e Prosa no Sul da Bahia", com capa do consagrado desenhista Juarez  Paraíso,  também membro da Academia de Letras da Bahia. Na obra, estuda  autores  que enfocam em seus textos a  civilização cacaueira ou mantém com ela  laços de origem,  sintonizados na raiz com  um contexto de natureza  cultural singular e importância histórica. 

           Segundo Cyro de Mattos, esse livro de ensaios, alguns escritos ao longo do tempo,  reúne  nomes consagrados que  ultrapassaram as fronteiras nacionais, outros que  são reconhecidos em nível nacional e alguns que  são retirados   dos limites de seu município, onde se encontram,  por certas circunstâncias,  fora de uma circulação literária  mais abrangente, o que nem sempre parece justo.  A obra  funciona como testamento crítico valioso  sobre a produção  de uma região poderosa no campo das letras,  que    vem contribuindo para a expansão do acervo cultural e literário da Bahia e até mesmo do Brasil.

            No alentado volume de 350 páginas, o escritor e poeta  estuda obras de 47 autores sulinos  do  Estado da Bahia, assim  elencados:

           I – PROSA. De autor adulto  para infantojuvenil, Adonias Filho;  precursor e pré-modernista, Afrânio Peixoto; Emoção do contista, Aleilton Fonseca; Absurdo e galhofa, Augusto Mário Ferreira; Nascimento do Brasil, Aracyldo Marques; Romancista do Vale do Rio de Contas, Clodomir Xavier de Oliveira; Legado no labirinto, Elvira Foeppel;  Humor do  novelista,  Euclides Neto; Relato do mato virgem, (Ferdinand Maximiliano von Habsburg; Mestre da crônica, Fernando Leite Mendes; No mar de Azov, Hélio Pólvora; Chamado do mar, James Amado; Prosador grandão e poeta , Jorge Amado; Dramaturgo exemplar , Jorge Araújo; Contista de Água Preta, Jorge Medauar; Tramas na adolescência, Lilia Gramacho; Caminhos de Adonias Filho, Ludmila Bertié;  Mares do Sul, Marcos Santarrita; Cronista na província, Manoel Lins;  Dobras do  tempo,  Margarida Fahel; Ilógico da vida, Naomar de Almeida Filho; Historinhas e mundinhos, Odilon Pinto; Retrato do mundo real, Ricardo Cruz; Testamento lírico, Ritinha Dantas; Narrador de itan, Ruy Póvoas;  Outro precursor , Sabóia Ribeiro, Atritos e Conflitos, Sonia Coutinho.

          II – POESIA. Colhedor de haicai, Abel Pereira; Tanta dor, poesia,  Adelmo Oliveira; Rosa com agruras, Ariston Caldas; Rio das solidões, Carlos Roberto Santos Araújo; Musa delicada, Conceição Nunes Brook; Resistência santa, Firmino Rocha; Poética enorme, Florisvaldo Matos; O pássaro do poeta, Hélio Nunes;  Casa onde habitamos, Heloísa Prazeres; Ditado do poeta, Ildásio Tavares; Lira descuidada, Iolanda Costa; Do jeito que o povo gosta, Minelvino; Cacau em versos, Oscar Benício dos Santos;  Soneto e cordel, Piligra; O tempo na pulseira, Renato Prata; Poesia com alforrias , Rita Santana; Singular e plural, Sosígenes Costa; Questões profundas, Telmo Padilha; Canto contido, Valdelice Soares Pinheiro; Discurso existencialista, Walker Luna.


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