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quarta-feira, 6 de junho de 2018

DA SOLIDÃO COMPLETA - Paulo Coelho


Da solidão completa 

Os jornalistas já terminaram as entrevistas, os editores tomaram o trem de volta para Zurich, os amigos com quem jantei voltaram para suas casas, eu saio para caminhar por Genebra. A noite está particularmente agradável, as ruas desertas, os bares e restaurantes cheios de vida, tudo parece absolutamente calmo, em ordem, bonito, e de repente...

E de repente eu me dou conta que estou absolutamente só.

É evidente que já estive sozinho muitas vezes este ano. É evidente que em algum lugar, a duas horas de voo, minha mulher me espera.
É evidente que depois de um dia agitado como o de hoje, nada melhor que caminhar pelas ruelas e becos da cidade antiga, sem ter que conversar nada com ninguém, apenas contemplando a beleza ao meu redor. Só que esta noite, por alguma razão que desconheço, este sentimento de solidão é absolutamente opressor, angustiante - não tenho com quem dividir a cidade, o passeio, os comentários que gostaria de fazer.

Claro, tenho um celular no bolso, e um número razoável de amigos aqui, mas acho que já é muito tarde para telefonar para quem quer que seja. Considero a possibilidade de entrar em um dos bares, pedir algo para beber - com quase toda certeza alguém me reconhecerá e me convidará para sentar em sua mesa. Mas penso também que é importante ir até o fundo deste vazio, desta sensação que ninguém se importa com o fato de existirmos ou não, e por isso continuo caminhando.

Vejo uma fonte e lembro-me que estive ali no ano passado, com uma pintora russa que acabara de ilustrar um texto que havia escrito para Anistia Internacional; naquele dia quase não trocamos palavra, apenas escutamos os pingos da água e a música de um violino que vinha de longe. Tanto eu como ela estávamos imersos em nossos pensamentos, mas ambos sabiam que, embora distantes, não estávamos sozinhos.

Ando um pouco mais, em direção à Catedral. Olho para outro lado da rua, uma janela está semiaberta e lá dentro posso ver uma família conversando; a sensação de solidão aumenta avassaladoramente por causa disso, o passeio noturno agora é uma jornada noite adentro, em busca de compreender o que é sentir-se absolutamente só.

Começo a imaginar quantos milhões de pessoas, neste momento, estão se sentindo absolutamente inúteis, miseráveis - por mais ricas, charmosas, encantadoras que sejam - porque também nesta noite estão sós, e ontem também, e possivelmente estarão sozinhas amanhã. Estudantes que não encontraram com quem sair esta noite, pessoas de idade diante da TV como se fosse a última salvação, homens de negócios em seus quartos de hotel, pensando se o que fazem tem algum sentido, já que tudo que estão sentindo agora é o desespero de estar só.

Lembro-me de um comentário feito durante o jantar: alguém que acabara de divorciar-se dizia "agora tenho toda a liberdade com que sempre sonhei". É mentira; ninguém quer este tipo de liberdade, todos nós queremos um compromisso, uma pessoa para estar ao nosso lado vendo as belezas de Genebra, discutindo as visões da vida, ou até mesmo dividindo um sanduíche. Melhor comer metade de um que comê-lo inteiro, sem ter alguém com quem compartilhar nada, nem mesmo um pouco de comida. Melhor ficar com fome do que ficar sozinho. Porque quando você está sozinho - e eu falo da solidão que não escolhemos, mas que somos obrigados a aceitar - é como se não fizesse mais parte da raça humana.

Começo a caminhar para o lindo hotel do outro lado do rio, com seu quarto superconfortável, seus empregados atenciosos, seu serviço de primeiríssima qualidade. Daqui a pouco vou dormir, amanhã esta estranha sensação que - não sei por que razão - me atacou hoje, será apenas uma lembrança remota e estranha, porque não tenho nenhum motivo para dizer: estou só.

No caminho de volta, cruzo com outras pessoas solitárias, e elas tem dois tipos de olhares: arrogantes (porque querem fingir que escolheram a solidão nesta linda noite) ou tristes (porque entendem que não há nada pior na vida). Penso em conversar com elas, mas sei que tem vergonha da própria solidão, talvez seja melhor que cheguem ao limite e então entendam que é preciso ousar, falar com estranhos, descobrir lugares para encontrar pessoas, evitar ir para casa e assistir TV ou ler um livro - porque se fizerem isso o sentido da vida estará perdido, a solidão terá se transformado em um vício, e a partir de então o longo caminho de volta em direção ao ser humano já não será mais encontrado.

Diário do Nordeste , 02/06/2018

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Paulo Coelho - Oitavo ocupante da Cadeira nº 21 da ABL, eleito em 25 de julho de 2002 na sucessão de Roberto Campos e recebido em 28 de outubro de 2002 pelo Acadêmico Arnaldo Niskier.

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CARGA PESADA - Péricles Capanema


6 de junho de 2018
Péricles Capanema

Vai e vem; e vem e vai sem fim. Em evidência nos últimos dias, o caminhoneiro é das profissões mais simpáticas do Brasil. Trabalho duro, perigoso, espinhento. Sofre trombadas, não capota, segue na pista. Empreendedor, esbanja energia para crescer; sabe, vitamina de motorista é poeira.

O carroceiro é seu parceiro, pequeno caminhoneiro das antigas cidades do interior (e até das capitais). Foram longe na estrada da vida, grandes fortunas no Brasil têm origem na carroça, no assento e no burro (hoje, na carroceria, na boleia e no motor).

Breca. No começo da paralisação recente veio desse acervo grande parte do enorme apoio público de que gozaram. Gente sofrida, era preciso apoiá-la. Imediatamente depois a paralisação foi vista como oposição a “tudo o que está aí”, corrupção, privilégios malucos, gastança. Era também para consertar o Brasil, ampliou em muito a aprovação.

O apoio murchou na hora em que as telas mostraram as cenas de desabastecimento, apodrecimento e morte da produção, suspensão de cirurgias, gritarias de produtores rurais, advertências de economistas, comida faltando na mesa. Como um pêndulo o sentimento popular correu ligeiro para o outro extremo.

De fato, ficou impopular a paralisação, mas se manteve o apreço pelos caminhoneiros. Os políticos e os formadores de opinião, temerosos de lhes faltar chão nos pés, também oscilaram fortemente em poucos dias, o apoio inicial caloroso se fez silêncio ou crítica.

Uma primeira lição, já clara no rescaldo dos protestos de 2013 (lembro outro, também no movimento do Cansei): bobagem confundir oposição séria com exasperação emocional. Na irritação do sentimento existe oposição, mas é pouco aproveitável na maior parte dos casos. E, no longo prazo, ou a emoção se faz princípio e aí gera decisão estável, ou, nada feito.

Na raiz da paralisação está um ponto cada vez mais destacado por fundamental. O crédito subsidiado do BNDES no governo Dilma levou a excesso de compra de caminhões. Financiamento fácil, caminhões demais. Daí excesso de oferta de frete, pois houve queda na demanda por ele. O movimento dos caminhões nas estradas de momento é 26% menor do existente entre 2003 e 2007.

Entre 2014 e 2016, último ano nas estatísticas, foram fechadas 72 mil vagas de motoristas. Com a crise, já de uns cinco anos, o setor está asfixiado. O único modo de conseguir fretes melhores é com o desenvolvimento da economia — aí cresce a necessidade por fretes e sobe seu preço. Não dá para mexer nesse quadro em poucos dias.

Pior ainda, nas últimas semanas subiram forte as cotações do barril do petróleo no mercado internacional, o maior patamar em duas décadas. Provocaram ajustes contínuos no mercado interno no diesel e na gasolina.

A insatisfação explodiu. Como paliativos, foram oferecidos tabelamento, contratação sem licitação por órgãos públicos, diminuição de R$0,46 por litro de óleo. Nos órgãos públicos, aplica-se a tabela. Ali, o caminhoneiro lucra, perde o contribuinte.

Em muitos casos, de particular para particular, o contratante do frete vai fazer cotação. E o caminhoneiro, que já vivia mal, mas vivia desembolsando os R$0,46 que agora não paga, vai baixar ainda mais sua proposta para não ficar parado. A vantagem aqui irá para o contratante do frete.

Haverá um extra à custa do contribuinte. Nota Armando Castelar, economista da FGV: “A concorrência vai aumentar, clientes podem pedir desconto. Esses fatores podem reduzir o valor do frete”. Uma vez mais, o perigo das soluções artificiais.

Fala-se que o governo cedeu muito por estar fraco, sangrando com as denúncias de corrupção. Correto e insuficiente. A razão maior é outra: 7 de outubro. Os políticos governistas estão pressionando, temerosos de derrotas e consequente fim de carreira pública.

Podemos esperar mais subsídios, descarados ou disfarçados, no gás de cozinha e na gasolina. Depois das eleições, a conversa provavelmente mudará de tom. Sempre foi assim, são maravilhas da democracia.

Termino com um quem avisa amigo é. Em vários momentos da paralisação, juntaram-se as gritarias da esquerda e de certas direitas, reclamando ou celebrando. Para mim, recordaram de forma canhestra o pacto Ribbentrop-Molotov que uniu os interesses da Rússia Soviética e Alemanha nazista, de Stalin e Hitler, de 23 de agosto de 1939 a 22 de junho de 1941 [foto ao lado].

Fortaleceu ainda a união nazi-comunista o Acordo Comercial Germano-Soviético de fevereiro de 1940. Dois anos, grosso modo, trabalharam em uníssono. Partilharam a Polônia, a Rússia anexou territórios, enviou matéria-prima para o esforço de guerra nazista. E tanta coisa mais.

Por que agora trago à baila o pacto Ribbentrop-Molotov? Para despertar desconfianças. Quando virem uniões de esquerda e direita, desconfiem, a direita provavelmente será inautêntica. E a boa causa (em outras palavras, o que resta da ordem temporal cristã) acabará prejudicada. Seguro morreu de velho, o desconfiado ainda vive…


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