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sexta-feira, 24 de junho de 2022

PARECIA COM A PRINCESA ISABEL – Ariston Caldas

 

 


           Na sala de entrada da casa de Adelaide havia, pendurado na parede, um quadro com a fotografia de uma moça bonita, de vestido branco com peitilho de renda e uma coroa na cabeça; no peito, uma cinta azul atravessada, com letras douradas, mas, de longe, Leni não conseguia decifrá-las; o reflexo do sol sobre o vidro atrapalhava a vista. “Só pode ser uma rainha ou uma princesa”. Lembrou da princesa Isabel, a dos escravos, desenhada num livro de história que dera no curso primário; lembrava bem do rosto de Isabel impresso no livro. Quando pudesse perguntaria a Adelaide quem era a moça do quadro. Perguntou e soube, não era nenhuma alteza, mas a própria Adelaide quando tinha dezoito anos de idade e foi rainha da beleza em sua terra natal.

            “Como a senhora era bonita!”, disse Leni. Adelaide fez um risinho disfarçado num canto da boca, sentindo o “era” de Leni como um agravo, uma afirmativa que sua beleza desaparecera. É, minha filha, veja o que a vida faz com a gente”, disse Adelaide com fala abafada.

            Leni sentiu que lhe havia magoado e tentou remendar o que dissera: “a senhora continua bonita, nem parece ser mãe de três meninos já crescidos”. Adelaide não deu nenhum crédito à reparação e continuou afirmando que estava envelhecida; falou das manchas escuras pelo rosto, dos fios de cabelo branco aparecendo, dos seios sem a robustez daquele tempo do concurso de beleza; “hoje estou um caco sem valia, cheia de pano preto, magra e sem ânimo para este mundo”, acrescentou Adelaide. A essa altura da conversa, a cidade natal emergia em seu pensamento iluminada e festiva; viu a casa onde morava, o quarto, o espelho quadrado onde se olhava vestida no modelo para a coroação no palanque da praça pública; a mãe lhe retocando a pintura do rosto, ajeitando detalhes o vestido branco de organdi com peitilho rendado, passando uma flanela pelos sapatos brancos de camurça; o pai entrando e saindo agoniado; “vamos minha gente, está na hora”, as amigas ajudando. Depois, o palanque no meio da praça regurgitando de gente, uma multidão; a filarmônica tocando, os discursos, os aplausos durante a coroação dela e das princesas; mais tarde, o baile chique no clube social especialmente decorado para o evento; os homens doidos de olho nela, as mulheres morrendo de inveja; muita bebida, ramalhetes de rosas sobre a mesa preparada para ela, os familiares e as duas princesas; “parecia um trono”. Agora sonhava ser miss Bahia, Brasil e, quem sabe, Universo.

            Lembrava de Almir, quase seu noivo, enciumado pelos cantos, retraído, nervoso, mastigando chiclete olhando-a assoberbada de gentilezas por todo lado, ela e as duas princesas; do outro, o pai, a mãe e o paraninfo da candidatura dela, dono de uma padaria. Almir achava que aquele lugar deveria ser para ele, mas nem exigia coisa nenhuma, mesmo pretendendo noivar. Ciumava, passava olhando com raiva, mordia os beiços, mastigava chiclete. Adelaide nem imaginava que mais tarde, menos de dez anos, estaria casada com Bertino, guarda municipal e agora, já com três filhos crescidos, sentia-se velha e os outros também achavam isso, como Leni: “Como a senhora era bonita!”. Sentiu-se magoada, mais velha ainda; os peitos murchos, o cabelo embranquecendo, as rugas, as manchas escuras pelo rosto, varizes nas pernas. Lembrava do salão iluminado, da banda de música tocando, os discursos, uma coroa dourada sobre a cabeça cheia de cachos bem-feitos, uma faixa bonita atravessada, “Rainha da Cidade”; Almir a um canto, emproado, cheio de ciúme, mastigando chiclete.

            Adelaide recebera o café em pó que pedira emprestado a Leni e voltou para casa do outro lado da rua empoeirada, entre sombras remotas sumindo; “a mais bonita da cidade”. Afastou o cabelo espalhado pelos ombros e lembrou novamente da velhice, dos seios que não tinham mais a robustez daquele tempo quando fora coroada rainha.

            Aumentou os passos ao lembrar que havia deixado no fogo uma chaleira com água para coar café; “já deve ter secado”.

            Leni, do passeio da casa dela, olhava Adelaide pelas costas, envelhecida, diferente da que via na foto parecida com a princesa Isabel.

 

Ariston Caldas

LINHAS INTERCALADAS

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