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domingo, 2 de agosto de 2020

A COZINHA DOS ANJOS – Nelson R. Fragelli

2 de agosto de 2020

A Cozinha dos Anjos – Bartolomé Esteban Murillo (1646). Museu do Louvre, Paris. 


Nelson R. Fragelli


O quadro acima é uma obra-prima de Murillo (1617-1682), na qual o grande pintor espanhol retrata o milagre ocorrido na cozinha de um dos mosteiros da Ordem de São Bruno.

Acabavam os caridosos monges de saciar a fome dos pobres, à custa de suas últimas provisões. Despensa vazia, faltava tudo no mosteiro, até mesmo o pão. Privação, pois, para todos. O Superior tinha ordenado dar de comer a quem pedisse, faltasse o que faltasse aos religiosos. Esta era a regra. Com paz de alma, inclinando-se à santa obediência, todos deram tudo, dispostos à míngua. O afluxo de indigentes vinha sendo grande, e não era a primeira vez que, após se retirarem os pobres com pão e toucinho no alforje ao ombro, restava aos religiosos apenas a penúria.

Consideremos as aves do céu…

À hora do almoço, tocou o sino no claustro na velha abadia. Nos bons dias, aquele timbre rotineiro prenunciava pão fresco e uma consistente sopa fumegando já à mesa. Naquele instante ele soava, mas privado da expectativa de deleites do paladar. A regra, entretanto, era positiva: tocado o sino, todos devem comparecer ao refeitório. No quotidiano de um monge, cada ação era marcada por regradas horas, e seguir a voz do bronze fazia parte da estrita observância. Formado o cortejo, todos se dirigiram às mesas, dispostas sob as altas abóbadas do austero salão onde os corpos se restauram das atividades religiosas. Na galeria de acesso ao refeitório, nenhum odor prenunciava o caldo quente: mesas nuas, fogões apagados, cestos vazios de pão. Conformados, os religiosos recordavam-se da palavra do Mestre: “Não vos preocupeis por vossa vida, pelo que comereis, nem por vosso corpo, pelo que vestireis. Não é a vida mais do que o alimento, e o corpo mais que as vestes? Olhai as aves do céu: não semeiam nem ceifam, nem recolhem nos celeiros, e vosso Pai celeste as alimenta. Não valeis vós muito mais que elas?” (Mt 6, 25-26).

Um dos monges, de nome Tiago, mais tarde canonizado, seguiu o cortejo abismado em orações. Não pedia pão, pedia fidelidade em circunstância tão propícia ao exercício desinteressado do amor de Deus. Fervorosos pensamentos o transportaram em êxtase, e ele gravitava elevado do solo. Subtraiu-se assim, milagrosamente, às leis naturais que regem a humana condição neste mundo. Deus, que recompensa quem se esquece de si mesmo para se abismar em Seu amor, acorreu para dar-lhe o prêmio. À vista de todos, anjos desceram do Céu e começaram a cozinhar às pressas, enquanto Tiago rezava de mãos postas.

Dois anjos discutiam o cardápio e alguns dispunham os utensílios de cozinha: caldeirões, gamelas de cobre, jarros de faiança. Um deles empunhava uma tigela de argila para buscar água na fonte. Outro colocava os pratos. Um terceiro, pondo sal num caldeirão, fazia ferver a sopa, enquanto seu angélico auxiliar socava temperos num pequeno pilão. Coube a querubins escolher legumes num cesto, e Aquele que multiplicara pães e peixes no deserto Se mantinha o Mesmo. Sua bondade é eterna, e se rejubilaram os frades: vai sair o almoço. Segundo o historiador francês Alfred Nettement, de quem tomamos esta descrição, o Superior entrou com dois convidados, cavaleiros da Ordem de Calatrava. Sem o trabalho dos anjos, como poderia receber condignamente tão importantes convivas?

Retratando o milagre, Murillo externou a fé de seu tempo e pôs à consideração de todos esta realidade esquecida, se não denegada: os anjos estão sempre junto aos homens, iluminando e governando aqueles que reclamam seu socorro. Quase nunca visíveis, entretanto, com sua presença sobrenatural eles nos circundam. Com profusão de detalhes claro-obscuros, o quadro sugere a misteriosa — mas quão real — ajuda dos anjos àqueles a quem guardam.

A França sem restaurantes não é a França

         Embora pintado por um espanhol, esse quadro está em Paris, no Museu do Louvre. Não por acaso. Ninguém entende tão bem como os franceses que a cozinha tem parte com os anjos. Uma reportagem do Paris Match, de 13 de maio passado, evoca a tela de Murillo. Seu título — “A França sem restaurantes não é a França” — exprime o melhor do artigo. É importante, sem dúvida, a análise da catástrofe financeira ocasionada pela quarentena, a pretexto da atual epidemia, e a cozinha é forçosamente ligada a aspectos financeiros. Brutalmente fechados por ordem do governo, sem prévia advertência, os chefs serão dentro em pouco obrigados a mendigar seu pão. Isto nunca se deu, nem mesmo nos períodos de guerra. Entretanto, a perda vai além.

         A cozinha francesa nasceu nos mosteiros medievais, sobretudo entre os beneditinos de Cluny, cujos conventos civilizaram a Europa. Os cozinheiros de Cluny — em geral monges de famílias distintas — tinham como dever não copiar o mesmo cardápio duas vezes ao ano: a cada dia, nova receita. Não havia livros de receitas, e obviamente era preciso esforço de imaginação, variedade de ingredientes, qualidade dos produtos. Desse empenho dos conventos surgiram os altos predicados da culinária francesa, que perduram até hoje.

O discernimento religioso dos monges penetrava a natureza das substâncias alimentícias, o espírito dos condimentos, a percepção dos paladares, a harmonização de sabores: “O arroz é um amável conciliador, aproximando truculências melindrosas; em sua essência, o espinafre vale pouco, mas é suscetível de bem acolher impressões várias”. Embebidos de cogitações como estas, penetradas de profundo espírito religioso, tinham em vista a formação das almas. Desenvolveram assim uma arte próxima de uma ciência. Assim a arte culinária francesa sacralizou a mesa, e esta sacralização subsiste gloriosamente até os correntes dias, quando quase toda a nossa cultura apresenta catastróficos aspectos de fim de civilização.

A aristocracia aprimorando e elevando a culinária

Pintores e poetas têm por vezes intuições notáveis. Murillo, com sua obra, ligou a cozinha aos anjos. Ele estava certo. Até parece que, ao pintar, pensava na França. Nascida nos mosteiros, desenvolvida nos castelos, a autêntica cozinha francesa sempre comunica um nítido sentido espiritual ao que elabora. Por meio dos sabores simples ou requintados, caseiros ou palacianos, sempre põe no espírito imagens de perfeição. Seus sabores pedem reflexão para serem bem entendidos. Não é exagero dizer que seus pratos frequentemente pedem recolhimento, talvez mais do que reflexão.

         Os santos abades de Cluny lutaram para conferir elevação espiritual ao ato de comer. Sua época, por volta do ano mil, era ainda tomada por hábitos bárbaros, ainda pagãos em tantos aspectos, semelhantes a maneiras animais. Um dos modos de essa procurada elevação se operar foi pelo aprimoramento do paladar, daí a proibição de apresentar à mesa pratos já servidos no mesmo ano. Quanto pensamento foi necessário para cumprir este ponto do famoso Ordo de vida monástica!

         As elites sociais dos primeiros séculos da Idade Média se formaram progressivamente, segundo o modelo de conduta dos monges. Estes lhes modelaram o caráter e os rústicos costumes, segundo a dignidade eclesiástica, e ao longo dos séculos foram destilando uma nobreza. Não descuidaram dos modos e da mesa. Em recíproco entendimento entre o ideal da nobreza e a habilidade dos cozinheiros, surgiram paulatinamente ao longo dos séculos os chefs famosos.

Pratos célebres tomaram o nome de nobres a quem sua cozinha dedicou tais elaborações: vitelos levam muitas vezes o nome dos duques de Lavallière; o Príncipe de Condé deu nome a sopas, que nos gélidos invernos confortam os que as tomam; até hoje se aprecia o filé à Chateaubriand ou o frango a la Reine (à moda da rainha). A nobreza, zelosa de toda estética, deu aos pratos não só sabor, mas um décor maravilhoso, segundo o princípio “se a vista não tem uma surpresa, o apetite não é suficientemente despertado”.

Se a aristocracia elevou a culinária francesa ao parnaso das artes, evidentemente essa elevação contou com a participação do homem do campo — simples hortelãos ou fazendeiros, cultivadores, modestos vinicultores, e tantos outros despretensiosos camponeses. Sem a aristocracia eles não aprimorariam seus produtos, mas sem o homem do campo o húmus agrícola civilizador não chegaria à elite. Portanto, a mesa uniu jubilosamente as classes sociais.

Inspiração angélica no aprimoramento dos sabores

         Antes de ser luxo, essa arte era caridade. Por caridade se entende os ritos da cortesia a fim de tratar bem o próximo. Esses ritos eram inúmeros, e em alguma medida ainda permanecem. A boa mesa tem o dom de serenar os ânimos e distender os espíritos, dispondo-os à concórdia. Os bons pratos fazem os bons amigos, e a qualidade suscita a caridade. O filme dinamarquês “A festa de Babette” ilustra de modo prazenteiro esta verdade — a cozinha de Babette movia os corações.

          A cultura cristã tem como regentes e protetores os três arcanjos de conhecidos nomes — São Miguel, São Gabriel e São Rafael. Segundo o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira, o Príncipe da milícia celeste, São Miguel, tem funções guerreiras, foi seu brado Quis ut Deus que esmagou a revolta dos anjos e precipitou no Inferno os anjos maus. São Gabriel, com iluminada missão diplomática, foi o embaixador do Altíssimo junto a Nossa Senhora, e com seu tato apuradíssimo perguntou delicadamente à Virgem Maria se Ela consentiria em ser a Mãe do Messias. São Rafael, cuja viagem guiando Tobias é longamente narrada na Sagrada Escritura, ajuda os homens nas dificuldades da vida e inspira-os a seguir os bons caminhos.

          Os anjos iluminam, guardam, inspiram e governam todas as ações humanas. O milagre no convento de São Bruno comprovou a sacralidade angélica do lugar e das funções ali realizadas. Ao retratá-lo, Murillo parece ter traçado os rumos da cozinha francesa, assistida pelos três Arcanjos. Inicialmente uma fase atribuível à ação de São Miguel, lutando para vencer a rusticidade pagã entranhada nas almas. Na fase seguinte, São Gabriel fez com que a elevação da mesa cumprisse o mandato do amor ao próximo, proporcionando fraternas reuniões. E finalmente o arcanjo São Rafael seria o orientador do senso espiritual francês, nas vias ascensionais dos requintados sabores.

         “A cozinha dos anjos”, de Murillo, poderia chamar-se “Os anjos cozinheiros”. O milagre sacralizou o local, o que ali se fez e quem o fez. Esse milagre ocorrido na Espanha, e perenizado por um de seus maiores pintores, foi tomado a sério pela França, como um fator de superior unidade da Cristandade; pois a culinária une não somente as classes; une também as nações entre si. E une os homens aos anjos.

Uma França sem restaurantes como outrora, sem grandes cozinhas e grandes cozinheiros assemelha-se a uma França sem anjos.


http://www.abim.inf.br/a-cozinha-dos-anjos/


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PALAVRA DA SALVAÇÃO (195)

18º Domingo do Tempo Comum – 02/08/2020


Anúncio do Evangelho (Mt 14,13-21)

— O Senhor esteja convosco.

— Ele está no meio de nós.

— PROCLAMAÇÃO do Evangelho de Jesus Cristo + segundo Mateus.

— Glória a vós, Senhor.

Naquele tempo, quando soube da morte de João Batista, Jesus partiu e foi de barco para um lugar deserto e afastado. Mas, quando as multidões souberam disso, saíram das cidades e o seguiram a pé. Ao sair do barco, Jesus viu uma grande multidão. Encheu-se de compaixão por eles e curou os que estavam doentes. Ao entardecer, os discípulos aproximaram-se de Jesus e disseram: “Este lugar é deserto e a hora já está adiantada. Despede as multidões, para que possam ir aos povoados comprar comida!”.

Jesus, porém, lhes disse: “Eles não precisam ir embora. Dai-lhes vós mesmos de comer!”. Os discípulos responderam: “Só temos aqui cinco pães e dois peixes”. Jesus disse: “Trazei-os aqui”.

Jesus mandou que as multidões se sentassem na grama. Então pegou os cinco pães e os dois peixes, ergueu os olhos para o céu e pronunciou a bênção. Em seguida, partiu os pães e os deu aos discípulos. Os discípulos os distribuíram às multidões. Todos comeram e ficaram satisfeitos, e, dos pedaços que sobraram, recolheram ainda doze cestos cheios. E os que haviam comido eram mais ou menos cinco mil homens, sem contar mulheres e crianças.

— Palavra da Salvação.

— Glória a vós, Senhor.

https://liturgia.cancaonova.com/pb/

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Ligue o vídeo abaixo e acompanhe a reflexão do Pe. Roger Araújo:


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Somos as mãos de Deus

 

“Os discípulos distribuíram os pães às multidões” (Mt 14,19) 

Poderíamos dizer que o relato do Evangelho deste domingo é uma parábola em ação.

A cena acontece em um “lugar despovoado”, afastado da vida cotidiana organizada segundo o pensamento da sinagoga e a lógica dominadora do império. Sair do centro, ou ser deslocado do centro, pode ser uma vantagem à hora de perceber o que Deus realiza em nossas situações concretas.

Quando Jesus e seus discípulos vão pelo mar, a multidão sai caminhando ansiosamente por terra e os alcança. Jesus é ponto de confluência de todas aquelas fomes, dispersões e diferenças. É o povo pobre das pequenas aldeias que está sofrendo grandes injustiças e muita pobreza.

De alguma maneira, este “fora” evoca a saída do povo judeu do Egito ao deserto, onde se encontrou com Deus numa experiência que o fará passar de multidão dispersa de escravos a um povo unido e livre.

O povo tomou distância com relação ao seu mundo rotineiro e agora se encontra com Jesus, que encarna a novidade de Deus ao alcance da mão. Também pode ser o “fora” de todos os excluídos da história que se encontram com Jesus, tornando realidade o sonho do Reino: o mundo da igualdade e da comunhão.

Jesus, nos diz o relato, primeiro sente compaixão das multidões, e depois convida a partilhar.

Em contraste com atitude compassiva do Mestre, os discípulos, percebendo a hora avançada, pedem que as multidões sejam despedidas para que comprem pão e se alimentem. Esta é a lógica desumanizadora: devolver as pessoas às suas próprias possibilidades limitadas, à escassez e à privação que a sociedade as relegou. Os discípulos são sensíveis à fome do povo empobrecido, mas o deixam à mercê de seus próprios recursos. Não conhecem outra solução.

Jesus abre outra lógica: a da partilha, frente à lógica do mercado, da apropriação e da acumulação.

Os produtos da terra estão situados na lógica do amor, que é a única força transformadora da história. Esta é a utopia do Reino: um povo reunido harmoniosamente pela mesma busca faminta e pela mesma saciedade, onde os alimentos da terra, produzidos com esforço, são compartilhados com todos, sem que ninguém negocie ou acumule.

Tudo aparece reconciliado: o cosmos, com a natureza verde e em paz; os produtos do trabalho humano, da generosidade do mar e da terra; e as pessoas, em uma relação entre elas mesmas e com Deus sem exclusões, competições nem privilégios. Isto é possível porque todos se deixaram afetar pelo dom do mesmo Reino que cresce já no coração de todos.

Só será efetiva a nova comunidade quando pães e peixes entrarem na lógica do Reino. Sem oferecer o próprio pão, os próprios recursos, a própria pessoa, não há possibilidade de construção do Reino de Deus.

Jesus não pediu a Deus que solucionasse o problema da fome, e sim, mobilizou os seus discípulos para que encontrassem uma saída diante daquela penúria. E a saída está na capacidade de partilha de todos.

Também aqui é preciso “ouvidos” e “olhos” bem abertos para encontrar a chave de compreensão da cena. Há um risco de permanecermos na superfície do relato, assombrando-nos com o prodígio da “multiplicação dos pães”. Na realidade, não foram os pães que “se multiplicaram”, mas a generosidade da partilha do alimento.

O certo é que, tudo o que as pessoas tinham, foi colocado à disposição de todos. Esta atitude desencadeia o prodígio: a generosidade se contagia e realiza o “milagre”. Quando se deixa de monopolizar os bens, eles chegam a todos. Quando os bens imprescindíveis para a vida são monopolizados, provoca-se a miséria, a fome, e a morte. Na intenção do evangelista, Jesus demonstra, deste modo, que o problema não é a carência de recursos, mas a falta de solidariedade.

Realmente foi um verdadeiro “milagre” que um grupo tão numeroso de pessoas compartilhassem tudo o que tinham até conseguir que ninguém ficasse com fome. Porque o texto não fala de “multiplicar” o alimento, mas de “dividi-lo”: quando ele é partilhado, costuma sobrar. Que acontece com os pães e os peixes nas mãos de Jesus? Não os “multiplica”. Primeiro, bendiz a Deus e lhe dá graças: aqueles alimentos vem das mãos de Deus: são para todos.

A dinâmica normal da vida nos diz que o “pão”, indispensável para a vida, deve ser adquirido com dinheiro, porque alguém o monopoliza e não o deixa chegar ao seu destino, a não ser cumprindo algumas condições que, aquele que monopolizou, impõe: o “preço”.

O que Jesus faz é livrar o pão desse monopólio injusto. O olhar voltado para o céu e a benção são o reconhecimento de que Deus é o único dono do pão e que a Ele é preciso agradecer este dom. Liberado do monopólio, o pão, imprescindível para a vida, chega a todos sem ter que pagar um preço por ele. Em seguida, Jesus, com suas mãos solidárias, vai partindo os dons e entregando-os aos discípulos. Estes, por sua vez, prolongam as mãos de Jesus, e vão distribuindo os pães e peixes à multidão; estes alimentos vão passando de mãos e mãos, de uns aos outros. Assim, todos puderam saciar sua fome. 

A multidão dispersa, transformada pelo encontro com Jesus, já é capaz de sentar-se em grupos ordenados sobre a relva, iguais, sem divisão em hierarquias, que costuma criar fissuras na comunhão. Jesus pede que todos se assentem sobre a relva para celebrar uma grande refeição. Rapidamente, tudo muda. Aqueles que estavam a ponto de se separar para saciar sua fome em sua própria aldeia, se assentam juntos em torno a Jesus, para partilhar o pouco que tem.

Os que tinham algo para comer também foram repartindo com os outros. Na realidade, o verdadeiro milagre foi o da partilha, onde as pessoas famintas não se lançam vorazmente sobre os pães numa luta para conseguir os alimentos escassos. Compartilhar gratuitamente com os outros, com desconhecidos, e não acumular o que sobra, isso sim é milagre.

Em cada migalha de pão, em cada pedaço de peixe, há uma história de amores e trabalhos que vão passando de mão em mão, sem cobiça devoradora. Os bens deste mundo, carregando dentro uma vocação fraterna e universal, são dons para todos.

Nesta refeição de todo o povo sobre o campo verde não se discrimina ninguém, não se pergunta a ninguém pelo seu passado, sua profissão ou sua situação moral. Todos são acolhidos como expressão das entranhas compassivas de Deus, que chama todos a compartilhar na Sua Grande Mesa festiva. Todos se sentem pessoas dignas e amadas. É a grande refeição da inclusão de todos.

Algo inaudito está começando nesse povo com a chegada de Jesus. No Reino de Deus só há uma Mesa, à qual todos são convidados, sem discriminação sem exclusão de nenhum tipo. É assim que Jesus quer ver a nova comunidade humana. 

Temos nas mãos e no coração a opção de viver “em chave desumanizadora” (“despede as multidões!”) ou “em chave de benção” (“os discípulos distribuíram os pães às multidões”), descobrindo na vida, para além de sua fragilidade, a presença que fazia Jesus estremecer-se de compaixão quando sentia a dura situação dos prediletos do Pai.

Assim quis Deus que nossas mãos fossem a presença e o sinal de Suas mãos criadoras, que acolhem e cuidam da mãe Terra e da vida das pessoas. Somos as mãos de Deus, não só para alimentar, mas para acariciar e curar, para cuidar do planeta terra, nossa casa, para “multiplicar vida”...

 

 Texto bíblico:   Mt 14,13-21

Na oração: quais são as duras situações das pessoas do mundo atual que fazem emergir novamente o apelo de Jesus: “Dai-lhes vós mesmos de comer”.

Deus torna visível suas mãos através de nossas mãos abertas e que compartilham. Onde você percebe que pode ser a mão bendita de Deus que atua em favor da vida?

Quando ouvimos em nossas eucaristias o grito de Jesus: “Dai-lhes vós mesmos de comer”?

Nós, depois de anos seguindo a Jesus, o quê somos capazes de partilhar?

 

Pe. Adroaldo Palaoro sj

https://centroloyola.org.br/revista/outras-palavras/espiritualidade/2111-somos-as-maos-de-deus

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