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quarta-feira, 22 de junho de 2022

QUEM AVISA... - Nelson de Faria



Quem Avisa...

                                                    

                                        “Fogo de morro arriba,

                                          Água de serra abaixo,

                                          Mulher de cabelo na venta

                                          - Meu Deus do céu! –

                                          Quem é que guenta?”

                                                              VERSO POPULAR

 

            Dona Enedina, da Fazenda Brejo do Meio, era muito mais conhecida do que o marido, Godofredo Pereira (em documentos legais) ou Godô Titica – às escondidas e para o resto da vida. Sujeito pinoia, esse Godô, um pinguim de homem, “raspa de tacho” dos Pereiras, do Brejo de Cima, que foi gente boa, mais porém afuleimada. Ninguém atinava com o porquê de o caçula dos Pereiras ser como era: piruá no meio de pipocas. Para completar, o fulustreco era perdigoteiro inveterado. Por via de algo estranho, inexplicável, o trem à-toa chegou ao mundo sem ser esperado, dois meses antes da data prevista. Quando ainda menino de escola, ganhou  o acréscimo Titica ao Godô, seu apelido certo. Com o correr dos anos, mas sem nunca lhe haver chegado aos ouvidos a coisa infamante, simplificaram o apelido, e ele passou a ser Titica, tão-somente. Já crescido – bom, crescido é força de expressão, porque, mesmo pelanco, era do tamanho de menino de doze anos -, já crescido, e por influência de rapazinhos sabidos, brincou com mulher pela primeira vez e se estrepou. Além de umas coisas que lhe estragaram as vergonhas, que o transformaram em alambique durante meses, destilando humores, ganhou ele uma moléstia de pele que, agora, ao chegar a velhice, se transformara numa cafubira danada. Braços e pernas lixentos, quando o comichão o atacava de repente, ficavam em petição de miséria. Suas unhas sujas levantavam pequenas nuvens de pó branco e fino, parecendo fubá de arroz. E o sujeitinho não paliava, coçava-se à vista de qualquer pessoa. Nem Siá Dina conseguia botar um paradeiro naquilo. Acabou largando de mão a coceira dele, empunhando com segurança as rédeas do governo da casa, da fazenda, de tudo. Mandava e desmandava dentro e fora dos seus limites territoriais. Daí, ser mais conhecida e respeitada do que Godô Titica. A inclinação que ela tinha de ser mulher macha vinha de longe, em desde ela mocinha, de cara sardenta e narizinho arrebitado. Não era fruto da moléstia que se conservara escondida tantos anos na carcaça do Godô e, sim, necessidade de colocar em ordem os negócios periclitantes do marido. Metera-se ele em tantos e tão mal sucedido fora, que Siá Dina, um dia, após discussão na qual ela não gastara mais do que uma gota de cuspe, e sem caridade pela cara de inocente fracassado que estava diante dela, falara alto:

            - Agora, atino que você se derrotou. Tomo conta da trenheira toda. Enfio umas calças de homem – de homem mesmo! – não essas que estão aí nessas suas pernas de menino, e acerto as coisas. A obrigação mais pesada é a que temos na gaveta do compadre Tinoco, né mesmo? Mais porém, tem prazo dilatado pra mais um ano, não foi o que ele disse? Pois então? A gente não se afoga num dedal de água. A gente vende o touro gademar – ele é menso, eu sei, mais porém vale bom dinheiro – umas dez vacas do fundo, acerta os juros, diminui a dívida. Se restar o casco da fazendinha só, a gente começa de novo...

          Dito e feito, Madrugadinha, Siá Dina estava de pé. O animal arreado, escarranchava-se sobre a sela, que nem homem, e saía numa toada só, correndo as mangas, dando ordens aos empregados, impondo sua vontade. Não escolhia montaria. Qualquer uma, ao gosto, mesmo que fosse passarinheira ou fuá. Montava-a com desembaraço, esporeava-a a preceito. Horas depois, o cavalo estava ofeguento, trocando as pernas, tropicando, lavado de suor. Siá Dina suxava qualquer cavalo. Era criatura que não gostava de lelês; mais porém, fumaçava à-toa. Dos fumegas, tolerava Godô, porque não tinha mais jeito. Quando moça, diziam, era uma pintura. Ainda hoje, apesar dos quarenta, era palpitosa, botava água na boca de muita donzela enfeitada. Enquanto a mulher se esfalfava, tentando por ordem nos negócios, que iam de mal a pior, Godô continuava a se coçar, ao embalo da rede, na varandinha da casa. Fazia, agora, o que sempre fizera: alisava a palha, picava o fumo, palmeava-o, enrolava o cigarro e acendia um na bagana do outro, amarelecendo de sarro a bigodeira caída sobre os beiços murchos. Estava ele assim, o pito preso entre os cacos de dentes, o olhar longe, perdido no céu azul sem nuvens, sonhando de olhos abertos, quando percebeu que alguém estava parado ao pé da escadinha da varanda. Fixou o vulto e nele reconheceu o Durvalino, camarada de confiança de Sêo Tinoco, do Brejo de Baixo. Atrevido, o chapéu de abas largas quebradas na frente da testa, um piraí trançado sobrando do cano da bota, aproximou-se, bateu palmas, gritando, como se Godô Titica não existisse:

           - Ô de casa!

           - Se achegue e se abanque, Sêo Du. Vosmecê é de paz, e a casa é dos amigos.

            A voz de Godô era um fiapinho, contrastando com o tom abaritonado da do outro, um galalau de homem, desempambado, cumpridor de ordens do patrão.

            - Não me abanco, porque vou adiante, mais légua e meia, em diligência. Trago um recado do Major Tinoco, que manda dizer pra vosmecê que pensou e repensou no caso e não pode mais esperar. Apareceram outros negócios...

            - Mais, Sêo Du, o compadre Tinoco não pode querer desgraçar a gente de uma vez. Ele me deu a palavra dele.

            A voz era de quem estava alarmado, trêmulo, acovardado. Durvalino gozava o constrangimento que lia na cara murcha de Godô, e sorria, fingindo comiseração. De uma das janelas, a voz forte de Siá Dina interrompeu aquele sorriso de deboche:

            - O recado já foi dado. Vosmecê não carece aumentar mais nada. A gente não manda o troco, agora, porque nossa conversa com ele é particular. Vancê pode voltar, recobrindo o rasto pra trás, que o mais eu ajeito.

            Apanhado de surpresa, Durvalino fez meia volta, tirou o chapéu, humilde, os olhos no chão

            - Me desculpe, Siá Dina. Não salvei vosmecê porque não vi sua aproximação. Falava pra Sêo Godô num recado mandado...

            E ela, enérgica, interrompendo-o:

            - Falei que o recado está dado. Vancê pode voltar, já disse.

            Fechou a cara, levantou a cabeça, pondo um ponto final na conversa. Durvalino saiu, montou o piquira, ganhou a estrada.

            - Vou na casa dele, Godô, agora mesmo, ajeitar as coisas. Antão será direito a gente perder as terras pra compadre Tinoco, sujeito sem alma, me arresponda, Godô, me arresponda? Sinto inté uma coisa me subindo do umbigo pra riba, por via da impostura dele.

            Enquanto isso Durvalino cismava: “Êta mulher macha, de cabelinho nas ventas! Gosto de ver uma diaba assim, despachada, que tem pimenta na língua e fogagem no rabo. O que deixa a gente dessossegado é ver uma prenda dessas dada a um caguincha daqueles, sujeitinho sem talento para aguentar o rojão. Vai ver... o porqueira não conhece nem a metade daquele mundo...”

            Sêo Tinoco ruminava o almoço, espichado na rede. Cochilava, de consciência tranquila, certo de que teria suas terras aumentadas de mais uns cinquenta alqueires, tomados às do Brejo do Meio, liquidando Tiririca e sua gente. Cochilava e sorria. A rede ia e vinha, preguiçosa, acolhedora. Havia silêncio na varanda ensombrada e fresca. Sêo Tinoco ruminava... a porteira do pátio bateu com violência, os cachorros latiram, um bem-te-vi assustou-se, largou a lagartinha-compasso que saboreava, voou para longe. Sêo Tinoco abriu os olhos sonolentos e divisou a mulher sofreando o cavalo. Mal refeito do sono interrompido, reconheceu a comadre.

            - Ora viva, que surpresa!

            Avançou, ainda incerto das pernas, para segurar o estribo – como se usa receber uma visita cavaleira -, o sorriso aberto na cara assustada:

            - Desamonte, comadre, a casa é vossa, o oferecimento sai do coração.

            Ofegosa, sem mesmo desejar-lhe um “bom dia”, Siá Dina foi falando:

            - Me releva a falta, mas porém não desapeio, nhor não, porque, hoje, não vim visitar a comadre Donana.

            Tomou fôlego, aquietou o cavalo, indócil por via de umas mutucas, batendo com a mão espalmada no pescoço dele, continuou, meio engasgada:

            - Vosmecê sabe, compadre, que eu não sou mulher de leréias e pendengas. As coisas comigo são no risco da lei, da palavra dada. Parece que vosmecê é homem de verdade, falou que a gente ficasse descansada durante um ano, não foi? Agora, sem quê nem pra quê, vosmecê mandou aquele recado arrevesado...

            Sêo Tinoco interrompeu-a:

            - Ora, comadre! Vosmecê não precisa sangrar na veia-da-saúde. O Du é sujeito especula. Se andou falando coisas que não devia, é da conta e do risco dele. Não mandei aviso pra dessossegar ninguém. – E, abaixando a cabeça, desconversando: - E o compadre, como vai de saúde, está melhor dos incômodos? Já combinei com a Donana uma visitinha, qualquer dia...

            - Pois, compadre, não foi entendimento enganoso, nhor não. Vim aqui pra desenturvar as coisas e digo pra vosmecê, sem botar um só porém na minha fala... – Parou, as mãos trementes tentando segurar as rédeas, o olhar firme na cara lívida de Sêo Tinoco: - Se vosmecê procurar a justiça antes do prazo que deu pra nós, ninguém de sua gente botará os pés nas terras do Brejo do Meio... A gente espandonga vosmecê e os mais...

            Deu de rédeas, esporeou o cavalo, ganhou a estrada, soverteu-se na poeirada.

 

(BAZÉ – ESTÓRIAS SERTANEJAS)

Nelson de Faria