16 de maio de 2019
Péricles Capanema
Vou falar de assunto que nunca sai de moda. Meio distraído,
tardava o olhar pela “Oração aos Moços” de Ruy Barbosa (já a conhecia, pincei-a
lá pelos 15 anos na biblioteca de um tio desembargador), quando tomei um susto.
Fixei a vista: “Os que madrugam no ler convém madrugarem também no pensar.
Vulgar é o ler, raro o refletir. O saber não está na ciência alheia, que se
absorve, mas, principalmente, nas ideias próprias, que se geram dos
conhecimentos absorvidos, mediante a transmutação, por que passam, no espírito
que os assimila. Um sabedor não é armário de sabedoria armazenada, mas
transformador reflexivo de aquisições digeridas”.
Li de novo, devagar. Belas palavras, mas tomei outro susto.
O famoso brasileiro, já então septuagenário, no texto, aconselhava a seus
paraninfados, os moços da turma de 1920 da Faculdade de Direito do Largo São
Francisco a levantar cedo (tudo bem) e a batalhar na aquisição do conhecimento.
Como? Primeiro passo: ler, ler, ler. Chama a isso ocupação vulgar, no sentido
de comum, corriqueira, menos importante. Ótima coisa. Muitos leem. Segundo
passo, e agora o principal, refletir. Seria coisa rara e essencial para a boa
formação, pensar sobre o que se leu. Pela transmutação, fazer do conhecimento
ingerido, inerme, ativa ciência própria. Anima os paraninfados à peleja extra,
a ruminação que os levaria a aproveitar bem o esforço da leitura. Aí
chegaríamos ao homem sabedor, a pessoa que passa além do mero erudito,
qualificado pelo douto jurisconsulto de “armário de sabedoria armazenada”.
Não mais estante, peça inanimada, que empilha conhecimentos, o sabedor,
espírito vivo, atinge o patamar de “transformador reflexivo de aquisições
digeridas”.
O método bosquejado por Ruy Barbosa funciona na prática? Se
funcionar, é suficiente para uma boa formação, fazer uma pessoa culta? No
frigir dos ovos, soou-me um tanto cerebrino, descolado da realidade. Vou meter
minha colher de pau.
Tudo se resume, afinal de contas, a conhecer, melhorando, a
entender a realidade. O capiau a conhece e entende a seu modo sem nunca ter
lido um livro. Dou de barato, é insuficiente, lamento, mas muitas vezes não
percebemos em seus comentários mais senso do real que em observações eruditas
de homens de gabinete? O frescor de suas expressões não reflete em várias de
suas facetas percepção mais exata da realidade? Tal olhar tem valor
inestimável.
Enfileiro a seguir, como pipocam na cabeça, alguns
provérbios populares. Cada macaco no seu galho. Apressado come cru e quente.
Antes só que mal acompanhado. Casa de ferreiro, espeto de pau. Escreveu, não
leu, o pau comeu. A cavalo dado não se olham os dentes. Em terra de cego quem
tem olho é rei. Deus escreve certo por linhas tortas. Cachorro mordido de cobra
tem medo de linguiça. Seguro morreu de velho e o desconfiado ainda vive. Para
baixo, todo santo ajuda. Um dia é da caça, outro do caçador.
Poderia continuar sem fim. Foram necessários livros para
burilar tais ditos? Não. Bastou explicitar, sintética e graciosamente, o que a
vida ia ensinando. E é só um aspecto da cultura popular. O livro, porém,
precisa deles, sob pena de, muitas vezes, ser digressão de nefelibatas.
Adiante. O problema (talvez o maior) da cultura não tem sido sempre a erudição
cortada da realidade? E sem o hábito de decifrar a realidade miúda terão vida
reflexões sobre livros lidos? Ou serão folhas secas?
Amplio. Onde colocar no método do celebrado tribuno baiano a
enorme contribuição de conhecimento que nos invade pelos cinco sentidos —
visão, olfato, paladar, audição, tato — aprendizado direto do que sem cessar
acontece ao redor nosso? E então, sem preguiça e de forma proveitosa unir as
impressões que nos entram pelos sentidos, explicitá-las com critério, e incluir
tal conhecimento em nosso acervo?
Tenho escutado muita gente que lê e reflete sobre o que lê.
Mas tem preguiça em ver, cheirar, tocar. Observa pouco, não tira suco do
convívio e da contemplação da natureza. Dispara comentários desfocados. Faltam
ali conversas com mãe, tias, primos, o bate-papo com pessoas de todas as idades
e condições sociais, a observação da natureza em sua vida miúda. A boa formação
e a alta cultura precisam ter raízes na terra úmida. Não são plantas de estufa.
Ensinar a enxergar é o maior presente do educador. E educadores estão em todos
os ambientes. Ruminemos, sem dúvida, um olho nos livros, outro na realidade.
Esse problema mexe com todo mundo, queiramos nós ou não, de sua solução depende
o destino de cada um e da sociedade, nunca sai de moda.
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