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domingo, 30 de julho de 2023
quinta-feira, 27 de julho de 2023
Aniversário da Cidade
Cyro de Mattos
Comemora
a cidade outro ano de emancipação política. Falam de seu progresso e vocação de
seu povo para o trabalho. A cidade torna-se festiva e desperta muito cedo com a
descarga de foguetes que crepitam no céu. Os moradores sabem que a cidade é
antes de tudo raiz e seiva que escorrem no comercinho novo. É trama com ânsia e
sonho. Antes aconteceu na légua do tropeiro, roupa do alfaiate, plaina do
carpina, tenda do sapateiro. Nas mãos generosas do padeiro, no feijão preparado
pela cozinheira, que o ano todo tem calo e calor nas mãos. Na colher do
pedreiro. No sermão do padre, na filarmônica tocando na praça, convidando o
povo para voar na valsa. Na cuia do cego, na cantiga da lavadeira, na cartilha
da professora. Na bola do menino que quebrou a vidraça do vizinho. Com os
namorados que passeiam de mãos dadas no jardim. Na rua, na loja, no armazém, no
banco, a cidade com o seu modo de estipular o mundo. Na guerra da palavra em
tempo de eleições, quando a vitória é uma questão de vida ou morte. No jornal
que dá a notícia boa ou má, sempre veloz, indo de canto a canto.
Com sangue nas veias que sangram todos os dias, a cidade
anda às vezes triste, os pés descalços, adormece embaixo de marquises. Atropela
na dura lei da vida, converte-se em tempo de violência e miséria, que cada vez
mais assusta.
Com vários jornais, emissoras de rádio, canais de televisão,
colégios, hospitais, ruas e avenidas asfaltadas, universidade como brasa
verdejante em seu novo dizer da lavra, a cidade vive agora a época da
automação, da moderna sociedade de massas. Sabe que hoje o mundo é uma aldeia
global, não podendo desviar-se dessa sintonia. Mas na cidade ainda encontramos
a maneira sensível de alguns conceberem a vida. Existem aqueles que lambem as
palavras e se alucinam. Falam de coisas agudas. Tentam com a palavra permanecer
na vida, negando a morte.
E o cronista, aprendiz das palavras que queimam como brasa,
no momento que está concluindo a crônica, imagina o primeiro homem que pisou no
chão de suas raízes. A noite daquele homem no navio misturando-se com as
conversas de macho. As estrelas tão longe. Perdidas na abóboda do céu negro. O
navio já se aproximando do porto de Ilhéus.
Na viola do peito, Félix Severino do Amor Divino cantava
baixinho, sem ninguém cantava.
Cyro de Mattos - Cyro de Mattos é poeta e ficcionista.
Possui prêmios literários importantes. Primeiro Doutor Honoris
Causa da Universidade Estadual de Santa Cruz. Autor de mais de 50 livros de
diversos gêneros.
** *
segunda-feira, 24 de julho de 2023
Graças à arte somos eternos
Ela ignora o espaço e a morte. O combate pela eternidade terá um
final exitoso se houver uma verticalização na vida, um mergulho na alma, ali
onde, justamente, nasce a chama artística.
Os escritores não ignoram que ao encontrar a “ voz interior” o
texto sai com mais densidade e literariedade. A partir desse momento, não
é mais propriamente o autor, aquele com o nome na capa do livro, a escrever;
antes um narrador travestido de autor, agora o novo dono da caneta ou das
teclas do computador. Uns vão chamar isso de concentração, outros de encontro
com a alma, outros de encontro com o divino, outros ainda de “ possessão”
por um escritor já desaparecido, outros , simplesmente, de técnica inerente ao
ofício de escritor. Todos têm consciência, porém, que o resultado daquele
esforço cognitivo será atemporal.
Equacionar o conflito entre razão e emoção alojado na nossa mente é
encontrar o humanismo. Se não houver o freio da razão só viceja a animalidade.
A emoção deve sair dosada, como passando por um magnífico giclê dosador; muito
afoga, pouco não pega. Ao artista traçar essas linhas demarcatórias ! Linhas
que têm um jogo de cintura de artista para artista. A arte bamboleia sobre essa
demarcação. Para esse traço não há tempo nem espaço.
Ao escrever, em 1516, o seu Sobre o melhor Estado e sobre a nova
ilha Utopia, Thomas Morus cria um lugar diferente daqueles conhecidos por
seus leitores, uma ilha onde não há desequilíbrios sociais e onde reina a
igualdade. Morus retoma o estado ideal de Platão. A fabricação de um outro
mundo basta para revelar os poderes incomensuráveis da arte e , por tabela, da
condição humana. A fabulação de Morus é atemporal. No Sítio do Picapau
Amarelo não se vê um patriarca a dar ordens. A personagem principal é
Dona Benta. Não havia - e nem há, é pena - sociedade assim estruturada, com as
mulheres no leme , pouco importa, vale a imaginação de Monteiro Lobato. O
genial autor hoje padece das opiniões racistas que, por tabela, maculam a
sua obra. Seu Jorge, o iniciante escritor do conto “ O
triunfo”, primeiro conto publicado pela Clarice, bem sabia das dificuldades, do
balizamento, das impossibilidades, da finitude. Mas sabia da possível
eternidade.
Machado de Assis trabalha bastante essa ansiedade advinda das limitações
da condição de homens e mulheres diante do tempo. É que descobrir o real e a
verdade equivale a achar um passaporte para a eternidade, por isso a fixação em
relógios e olhares.
Em Dom Casmurro, por exemplo, a busca da verdade ou do real
levam o narrador a sobrevalorizar os olhos da Capitu na esperança de que
eles sejam objetivos e frios, mas eles também são armas da emoção, por
isso mentirosos. Lembremo-nos que o olhar da Capitu era “oblíquo e
dissimulado”. E até no enterro do “amante”,versão de Bentinho: “Capitu olhou
alguns instantes para o cadáver tão fixa, tão apaixonadamente fixa, que não
admira lhe saltassem algumas lágrimas poucas e caladas.” O tempo também poderia
desvelar a verdade. Daí que o narrador de Memórias Póstumas de Brás
Cubas, do mesmo Machado, não seja “propriamente um autor defunto, mas um
defunto autor, para quem a campa foi outro berço”, como se lê no primeiro
capítulo do admirável e engenhoso romance que, para os historiadores da
literatura, iniciou a fase realista do fundador da Academia Brasileira de
Letras. Ora, para rever a sua vida com objetividade, o narrador se posicionou
fora do tempo e do espaço. Porque ambos relembram com dureza aos seres humanos
a sua finitude.
Como sair então desse impasse angustiante? Lendo o Dom
Casmurro, por exemplo. É que através da arte leitor e autor são atemporais,
logo, eternos.
Facebook/Redes Sociais, 17/07/2023
https://www.academia.org.br/artigos/gracas-arte-somos-eternos
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Godofredo de Oliveira Neto - Sexto
ocupante da Cadeira nº 35, eleito em 9 de junho de 2022, na sucessão de Candido
Mendes de Almeida e recebido em 2 de setembro de 2022 pela Acadêmica Ana Maria
Machado.
* * *
quarta-feira, 19 de julho de 2023
São Bilibeu
Abril, chuvas mil.
Maio, trovões e raio. Este é um ditado que se repete para definir o tempo das
chuvas no Maranhão. O Padre Vieira foi quem primeiro definiu inverno/verão, o
tempo das chuvas e o que não chove. Assim as estações, que no mundo são quatro,
no Maranhão são duas. O diabo é que elas não coincidem nem com primavera, nem
com verão, nem com outono, nem com inverno. No Maranhão se chama de inverno o
tempo que chove, que vai de dezembro a junho, e de verão, o sem chuva, de junho
a dezembro.
Isso faz com que as
festas populares sejam influenciadas pelo tempo, e as estações de meteorologia,
com as mudanças climáticas, não ajudam, não sabem mais prever as chuvas, que
agora chovem no verão e nem sempre no inverno.
Evidentemente que o
tempo tem influência em tudo, e as chuvas, muito mais. Nos folguedos populares
do Maranhão, portanto, também. Como se entrelaçam com as datas festivas da
Igreja, o carnaval é debaixo de chuva e o Natal é tempo de sol, embora as
chuvas façam suas incursões, que a crença popular já conhece. Por exemplo, no 8
de dezembro, dia de Nossa Senhora, sempre chove, e se diz que é o princípio do
inverno, bem como o 20 de janeiro, São Sebastião, é quando começam as chuvas de
pingo grosso e as chuvaradas que quebram todas as normas e chovem as 24 horas
do dia.
Girão Barroso, um
poeta brilhante do Ceará, que passou uma temporada em São Luís, definiu a nossa
cidade como sendo “uma ilha, cercada de água por todos os lados, inclusive por
cima.”
Mas o que eu queria
mesmo falar era das festas de São João, que aconteciam em junho. Já hoje se
prolongam por julho e se antecipam pela metade de maio. Se justifica como o
treinamento da brincadeira, como é chamado popularmente o Bumba meu Boi. Mais
do que o carnaval, é um tempo de festa, tambores, com suas variedades de ritmos
e de batuques, que hoje já têm autonomia própria: o Boi de Matraca, que é
acompanhado por dois pequenos retângulos de madeira, que acompanham o ritmo da
música; o Boi de Tambor, que foi copiado dos terreiros de mina e acompanham os
ritmos de cada um dos tambores; o Tambor de Pandeiros, o boi de música de
sopro, que começou em Axixá, com a variante do tambor tradicional, que era só
de percussão.
Acredito que o
Maranhão seja o Estado mais rico em folguedos populares. De tudo o povo tira
pretexto para criar uma brincadeira encantada, com suas histórias próprias.
Quem primeiro
descobriu a riqueza do folclore maranhense, representado por essas imensas
festas populares, foi Mário de Andrade, que, quando aqui passou, colheu o
grande material que enriquece o Centro Cultural São Paulo. Hoje a eletrônica e
outros meios de criação dos sons fizeram com que os ritmos se multiplicassem e
cada um desses tomasse seu rumo próprio. E eu fiquei surpreendido, nos meus 93
anos, com São Bilibeu ainda vivo, fazendo safadezas na Baixada, onde também tem
o nome de Santo Horácio, que desembarcou na casa de Antero Roxo, durante uma
festa de carnaval, num lugar chamado Santeiro, no município de Viana, na
Baixada Maranhense, região de lagos e campos, onde eu também nasci, na cidade
de Pinheiro.
Ele é saudado
“Bico-Bilico, bili-Bilibeu, santinho assanhado, calunguinha de breu!” A festa
se mistura com o carnaval e tem motivos religiosos e africanos. Segundo Albani
Ramos, Bilibeu é um santinho namorista, cujo trabalho pesado é mamar nos seios
apojados das mulheres, depois de lhes garantir a mais impossível gravidez.
Veste-se como homem, mas não tem preconceitos: também aparece como mulher.
Afora isso, o santo protege os bichos de casa, os doentes e os perdidos. E as
pessoas lhe fazem promessas e oferecem crias dos bichos que Bilibeu curou ou
encontrou. E conclui Albani: “Aí o negrinho responde pela farra, que vai do
Domingo à Terça-Feira Gorda, com levantamento de mastro, baile e ladainha,
recitada num latim estropiado, conforme pertence a um festim carnavalesco.”
Mas o que quero
dizer é que o carnaval e o São João do Maranhão são os melhores e mais
autênticos do Brasil, com o Tambor de Crioula, o Curiá da dona Tetê e o
carnaval, que traz modos e gingados, desde o tempo em que açorianos saltaram no
Brasil com o boi que se derramou pelo Brasil no Boi Bumbá do resto do Nordeste,
no Boi de Mamão de Santa Catarina e no nosso Bumba meu Boi, acompanhado do
Tambor de Crioula, com as dançantes de saia rodada.
Imirante,
11/07/2023
https://www.academia.org.br/artigos/sao-bilibeu
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José Sarney - Sexto ocupante da Cadeira nº 38, eleito em 17 de julho de 1980, na sucessão de José Américo de Almeida e recebido em 6 de novembro de 1980 pelo Acadêmico Josué Montello. Recebeu os Acadêmicos Marcos Vinicios Vilaça e Affonso Arinos de Mello Franco.
* * *
sexta-feira, 14 de julho de 2023
Estrada Minha
Cyro de Mattos - Baiano de Itabuna. Escritor e poeta, Doutor
Honoris Causa pela Universidade Estadual de Santa Cruz (Sul da Bahia). Membro
efetivo da Academia de Letras da Bahia, Pen Clube do Brasil, Academia de Letras
de Ilhéus e Academia de Letras de Itabuna.
* * *
segunda-feira, 10 de julho de 2023
Um Embaixador Mexicano no Rio
Cyro
de Mattos
Graças à literatura tenho
feito bons amigos. O último deles foi há poucos anos. É um americano, erudito,
sensível, atencioso, qualidades inconfundíveis de seu caráter. Professor
Emérito da Universidade de Austin, Texas, Fred Ellison tem um amor forte pelo
Brasil. O abraço rico que vem dando há anos ao nosso País manifesta-se no
ensino de língua e literatura brasileira nos Estados Unidos, passa pelo
ensaísmo lúcido e alcança traduções admiráveis de autores importantes de nossas
letras, como Rachel de Queiroz, Helena Parente Cunha, Adonias Filho e Affonso
Romano de Sant´Anna. Para minha sorte, alguns poemas de minha lavra levam a
marca da tradução exemplar do caro amigo.
“Brasilianista” dos melhores, Fred Ellison
proporciona agora em “Alfonso Reyes e o Brasil” (Editora Topbooks, Rio,
2002) estudo substancioso sobre a temporada que o embaixador-poeta mexicano
passou entre nós, morando no Rio, cidade que tanto o encantou desde que aqui
chegou. O assunto encontra no americano o ensaísta maior. A pesquisa criteriosa
do espírito sensível, que caminha de mãos dadas com o discernimento para erguer
na escrita agradável uma vida intelectual plena de reflexões, projeções,
esperanças e realizações em chão brasileiro.
Desse livro emerge todo o clima intelectual e
emotivo que o embaixador-poeta mexicano teve pelo Brasil durante os sete anos
em que aqui esteve. Abordam-se como nenhum intelectual brasileiro tentou fazer
até hoje, o que não deixa de ser omissão lamentável, as múltiplas atividades e
relações culturais que Alfonso Reys empreendeu em prol do Brasil. Foram anos em
que ele, morador do Rio, dedicou-se de modo afetuoso às relações diplomáticas e
à cultura brasileira, em namoro intenso, de quem escreveu contos, poemas e
ensaios tendo como ponto de referência nossas coisas e gente.
O livro de Fred Ellison é leitura obrigatória para quem quiser saber sobre a vida cultural do Brasil nos anos 30. Reconhecer intelectuais do círculo de relações de Alfonso Reyes, bem como suas atuações culturais em nossas artes e letras. Cecília Meireles, Oswald de Andrade, Renato Almeida, Di Cavalcanti, Portinari, Cícero Dias, Manuel Bandeira, Ribeiro Couto e Alceu Amoroso Lima, estes foram alguns de nossos homens de letras e artes que se tornaram amigos desse embaixador e escritor de extração renascentista. Manuel Bandeira fala do mexicano com afeto em “Rondó dos Cavalinhos”, no almoço de despedida oferecido por diplomatas e entidades brasileiras no Jóquei Clube do Rio, e no outro poema “Rondó do Palace Hotel”, no qual os dois últimos versos, “Por alguém que não está presente/ No hall do Palace”, dizem respeito a Alfonso Rey
O diplomata mexicano teve ânsias de entrar em contato com os intelectuais brasileiros assim que aqui chegou. No início, nossos homens de letras não foram tocados pelos acenos do mexicano, que nunca escondeu nas intenções e atitudes a inquieta admiração pelos brasileiros e sua paisagem. Momentos de amizade foram se fazendo com nitidez pouco depois, e, dos encontros que continuavam, a oportunidade era dada ao intercâmbio de ideias, informações e juízos críticos consistentes.
Até hoje pouco se sabia
da atuação e amor desse notável embaixador-poeta- mexicano pelo nosso País.
Acredito que o mesmo se deu com a minha geração nos anos 60. No livro de Fred
Ellison, através de entrevista concedida a Aurélio Buarque de Holanda, posso
sentir como esse embaixador mexicano teve no Brasil uma temporada das mais
felizes de sua vida, contribuindo para isso dois elementos essenciais: o homem
e a natureza. “Tudo do melhor em minha existência”, ele assinalou, em momento
de puro encantamento. E, nessa admiração contagiante pelo Brasil, de um
estrangeiro enamorado do Rio, cada vez mais, tantos foram os elogios que todos
os mexicanos quiseram vir ao Brasil como embaixador e desse modo lhe tomaram o
posto.
Río de olvido
Alfonso Reyes
Río de Enero, Río de Enero:
fuiste río y eres mar:
lo que recibes con ímpetu
lo devuelves devagar.
Madura en tu seno al día
con calmas de eternidad:
cada hora que descuelgas
se vuelve una hora y más.
Filtran las nubes tus montes,
esponjas de claridad,
y hasta el plumón enrareces
que arrastra la tempestad.
¿Qué enojo se te resiste
si a cada sabor de sal
tiene azúcares el aire
y la luz tiene piedad?
La tierra en el agua juega
y el campo con la ciudad,
y entra la noche en la tarde
abierta de par en par.
Junto al rumor de la casa
anda el canto del sabiá,
y la mujer y la fruta
dan su emanación igual.
El que una vez te conoce
tiene de ti soledad,
y el que en ti descansa tiene
olvido de lo demás.
Busque el desorden del alma
tu clara ley de cristal,
sopor llueva el cabeceo
de tu palmera real.
Que yo como los viajeros
llevo en el saco mi hogar,
y soy capitán de barco
sin carta de marear.
Y no quiero, Río de Enero,
más providencia en mi mal
que el rodar sobre tus playas
al tiempo de naufragar.
—La mano acudió a la frente
queriéndola sosegar—.
No era la mano, era el viento.
No era el viento, era tu paz..
*Do livro Romances del Río
de Enero, 1932.
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Cyro de Mattos é escritor e poeta. Membro Titular da
Academia de Letras da Bahia e do Pen Clube do Brasil. Primeiro Doutor Honoris
Causa da Universidade Estadual de Santa Cruz.
* * *
sexta-feira, 7 de julho de 2023
Coronavírus,
sentimento amoroso, estética, preconceitos, saímos do vórtice?
Espasmos de amor,
de frustração, de desejos frenados, de toques, de fruição, de medo. Os alunos
ou se retraíam ou se amavam com olhares. O coronavírus ia fechar a UFRJ e a
Academia no dia seguinte, sexta-feira. A gente lia Morte em Veneza,
aproveitando o gancho da pandemia decretada pela Organização Mundial da
Saúde. A atração indomável do escritor personagem Gustav von Aschenbach, com os
seus 50 anos, pelo angelical menino Tadzio, de 14, em Veneza, vai jogar o
romancista de sucesso na Alemanha - bem sentadinho na poltrona burguesa
da rica Munique - na metáfora do caos veneziano, luxúria e pecado
debruçados nos saraus e nos braços urbanos e fétidos do Adriático
esquadrinhando a ex-capital dos dodges. A ordem e a disciplina na forma
da arte bem-comportada do ficcionista estrebucha diante de um amor pecaminoso,
mas platônico, incentivado pelo olhar de cobiça do Tadzio cúmplice no jogo
entre o sagrado e o profano. Gustav von Aschenbach, o escritor racional e
formal, cuja ficção é aplaudida por um público fiel a enxergar naqueles traços
a solidez do modelo sócio- econômico em vigor, leva um tranco.
Do fundo da sala,
um jovem robusto com máscara contra o coronavírus e dois chifres estilo viking
na cabeça, uma espada de plástico cinza amarrada à cintura, pediu a palavra. Hesitei.
Solicitaria que retirasse os chifres ? Se sim, porque não o fiz antes? Deixei
então que se pronunciasse. Li, afirmou ele, e vi que nada acontece
fisicamente entre o escritor e o jovenzinho. Significa que o romancista
reverencia no jovem o ideal de beleza da arte. O lado homossexual não tem
a menor importância, continuou ele ajeitando a fita que segurava o seu aparato
viking. Falou da relação conflituosa entre Apolo e Dionísio, explicou que leu
num texto por aí e que concordava, leu uma frase anotada no celular
sobre “ princípio do prazer para evitar a dor”.
Retruquei com
delicadeza, estranhando o “menor importância da homossexualidade”, e o lado
pudico da sua intervenção. Não falei de preconceito. A ruptura do belo via
comportamento pecaminoso é que, entendo, deve ser ressaltado. Daquele pecado –
o escritor sofre tremendamente entre o desejo e a razão conservadora – nascerá
uma nova estética e um novo modelo social? Essa me parece a revolução. Gustav
não revela para a família de Tadzio, todos de férias num hotel de luxo e de lá
pouco saindo, a mortífera epidemia de cólera que se abate aos poucos
sobre Veneza. Acumplicia-se aos interesses econômicos dos capitais investidos
no turismo - que escondem dos clientes o terrível mal trazido do oriente -,
mas por outra razão: deleitar-se com a visão edênica do efebo até ser possuído
pela moléstia e a consequente morte. A arte literária ganha um outro contorno
e a estética modernista ocupa, vitoriosa, cabeças e mentes naquela
primeira década do século XX. O movimento sindical também se organiza. O viking
pareceu concordar. Me disseram depois que a namorada do Asterix trocou-o
por uma menina loirinha recém transferida da UFF para a UFRJ e vivem aos beijos
pelo Campus do Fundão. E – pasmem todos, só soube no dia seguinte - , foi
justamente ela, também aluna da mesma turma, que perguntou se o coronavírus não
vai mudar alguns paradigmas sociais e artísticos. Se a questão de classe social
não conhecerá outro combate. Se os preconceitos serão os mesmos ou se haverá
novos. Como serão recebidos os imigrantes e os excluídos contaminados pelo
vírus nos hospitais do Brasil e do mundo? Serão tratados como todo mundo? O
assunto foi se adensando e interrompemos a aula no horário, 12:50h.
Facebook/ Redes
Sociais, 03/07/2023
https://www.academia.org.br/academicos/godofredo-de-oliveira-neto
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Godofredo
de Oliveira Neto - Sexto ocupante da Cadeira nº 35 da ABL, eleito em 9 de
junho de 2022, na sucessão de Candido Mendes de Almeida e recebido em 2 de
setembro de 2022 pela Acadêmica Ana Maria Machado.
quarta-feira, 5 de julho de 2023
Um Brasil menor
Éramos jovens. Nos
conhecemos no Rio de Janeiro, na Rua Otaviano Hudson, onde José Aparecido
mantinha uma pensão estudantil, udenista, com ramificações pela esquerda.
Pertence era mais ligado a seu irmão Modesto, da UNE, onde tinha posições de
liderança. Eu começava minha carreira como deputado federal, ligado a Magalhães
Pinto, de quem Aparecido era secretário particular. Era um tempo em que eu
chamava Pertence de "Zé Paulo", e ele a mim de "Zé"; quando
nos encontrávamos e não tinha abelhudo por perto, eu repetia os tratamentos da
mocidade: "Ministro Zé Paulo". E ele, "Excelência Zé". Na
Presidência da República tudo isso terminou.
Pertence era uma
enciclopédia de Direito. Sabia tudo, raciocinava tudo pelo lado jurídico, que
aliava a uma personalidade digna, ética, honrada e sem concessões morais de
nenhuma natureza.
Como advogado,
competente; como juiz, impecável. Isso não prejudicava a personalidade do
contador de histórias de Minas, de mineiros. Excepcional e sedutora
personalidade, amigo que não deixava esta misturar-se aos seus deveres jurídicos
e a sua impecável retidão.
Em 1960, fomos dos
primeiros a nos mudar para Brasília. Ele vinha de Minas Gerais, onde fizera um
brilhante curso de Direito, para iniciar sua extraordinária carreira de
advogado. Tínhamos muitos amigos comuns, sobretudo no grupo mineiro, sempre
coeso, entre eles Carlos Castello Branco — mineiro de Teresina —, Vera Brandt,
Benedito Coutinho, Otto Lara Resende, Magalhães Pinto, José Aparecido de
Oliveira e uma imensidão de amigos e, mais do que amigos, de admiradores de
suas qualidades inexcedíveis. Tive a honra e a sorte de torná-lo meu amigo;
sobretudo, ele tinha uma grande capacidade de dar conselhos quando solicitado.
Eu muitas vezes me socorria a ele em momentos de dúvidas.
Ele entrou para o
Ministério Público e passou um tempo no Supremo como assessor de Evandro Lins e
Silva. Foi cassado em 1969 pelo regime militar e voltou à advocacia dividindo a
banca com Victor Nunes Leal, também ele atingido pelo AI-5 — o autor do
imperdível Coronelismo, enxada e voto era então um dos grandes nomes do Supremo
Tribunal Federal —, e Cláudio Lacombe, José Guilherme Vilela, Pedro Gordilho.
Em tudo que fez na
vida, José Paulo mostrou-se um predestinado. Assim, Pertence casou-se com uma
extraordinária figura humana, Suely Castello Branco, pessoa de imensa bondade,
formando uma família exemplar, com os filhos Pedro Paulo, Evandro e Eduardo.
Tancredo Neves o
convidou para Procurador-Geral da República, deixando-me a missão de nomeá-lo
para o cargo em que teve, entre outras tarefas, a de encaminhar na Constituinte
as transformações do Ministério Público da União, que ele depois repetia:
Golbery dizia que fundou o SNI, um monstro, e ele, o Ministério Público, uma
medusa.
Dei a ele todo o
meu apoio, mesmo quando, algumas vezes, deixou o governo em posição
desconfortável. Ele cumpria o seu papel, eu, o meu.
Em 1989 surgiu no
Supremo Tribunal Federal a vaga deixada por Oscar Dias Correia — ainda um
mineiro. Indiquei José Paulo Sepúlveda Pertence. Não poderia ter indicado
ninguém melhor — e orgulho-me de minhas outras indicações, todos grandes
ministros: Carlos Madeira, Célio Borja, Paulo Brossard, Celso de Mello.
O Supremo era o
lugar certo para o homem certo, inverto o lugar-comum para exprimir o casamento
perfeito entre o homem e a Instituição. Lá ele se tornou mestre, professor e
exemplo, transformando-se num dos maiores ministros que já teve o Supremo
Tribunal Federal. Seu conhecimento jurídico, sua compreensão do fato julgado,
sua interpretação da Constituição e do Direito, sua percepção do contraditório,
sua visão de humanista, seu conhecimento da História, tudo contribuía para a
perfeição do seu voto. Todos o ouviam com o respeito que se deve a um oráculo;
mesmo se algum discordava, sabia que tinha pela frente uma análise difícil de
superar. Com poucas exceções, seu voto era o voto vencedor. A jurisprudência
saía dele mais rica — e, algumas vezes, reformada em nova e definitiva direção.
Sua palavra foi de
equilíbrio, bom senso, boa direção. Conversamos muito. Era um excelente
ouvinte, mas melhor ainda contador de histórias. E tinha sempre uma pontuação
inteligente, de fino e preciso humor.
José Paulo
Sepúlveda Pertence foi um homem de caráter irretocável, de absoluta integridade
moral, com o mais arguto senso do que era justo.
Embora permaneça
conosco em sua figura íntegra e irretocável, fará falta. Muita, muita falta!
O Brasil está
menor.
Imirante,
04/07/2023
https://www.academia.org.br/artigos/um-brasil-menor
--------------
José Sarney - Sexto ocupante da Cadeira nº 38 da ABL, eleito
em 17 de julho de 1980, na sucessão de José Américo de Almeida e recebido em 6
de novembro de 1980 pelo Acadêmico Josué Montello. Recebeu os Acadêmicos Marcos
Vinicios Vilaça e Affonso Arinos de Mello Franco.
* * *
terça-feira, 4 de julho de 2023
As mulheres merecem e devem ser respeitadas!
Sione porto
Em nome das marias, quitérias, da penha silva
Empoderadas, revolucionárias
Ativistas, deixem nossas meninas serem super heroínas!
Pra que nasça uma joana d'arc por dia!
Como diria frida: "eu não me kahlo!”
Junto com o bonde saio pra luta e não me abalo
O grito antes preso na garganta já não me consome
É pra acabar com o machismo
E não pra aniquilar os homens
Quero andar sozinha porque a escolha é minha
Sem ser desrespeitada e assediada a cada esquina.”
As crescentes discussões sobre direitos, garantias e
representatividade das minorias sociais revelam novos conceitos e denominações,
que surgiram com o intuito de explicar as origens do tratamento desigual que
certos indivíduos recebem. No que tange às questões de gênero, a misoginia é um
termo oriundo da Grécia antiga que voltou à luz para conceituar as relações
nocivas que ocorrem entre homens e mulheres.
Em uma breve análise do material artístico e intelectual
produzido ao longo dos anos, é possível observar a forte influência dos traços
culturais misóginos, machistas e sexistas na civilização ocidental. Conforme
pontuado pelo historiador e professor Leandro Karnal, durante uma palestra
realizada em 2017 pela comemoração ao dia da mulher, as estatuetas de Vênus de
Willendorf e Vênus de Milo ou a pintura Vênus e Marte de Botticelli demonstram
que os artistas supervalorizavam o corpo e a estética feminina, uma ideia que
foi construída durante a antiguidade.
As bases sociais, políticas e econômicas ocidentais foram
estabelecidas na Grécia antiga, cujo sistema sócio-político delegava à mulher
uma posição secundária. No período Homérico, a unidade básica da sociedade
grega era o genos, um sistema familiar que se caracterizava pela máxima
autoridade concedida ao pater (patriarca) da família, que ao falecer, tinha
seus poderes político, social, religioso e econômico transmitidos ao filho mais
velho.
Entretanto, no fim deste período, a população cresceu e a economia, essencialmente agrícola, decaiu. Houve, assim, a desintegração das comunidades gentílicas e o surgimento das cidades-Estados (ou pólis gregas), onde foi reiterada a ideia da soberania masculina.
Neste contexto, surge o termo que definiria a base
psicológica dos comportamentos masculinos nocivos em relação às mulheres.
Oriunda da união entre os termos gregos "miseo" e "gyne",
cujos significados são respectivamente ódio e mulheres, a palavra misoginia é
usada para definir sentimentos de aversão, repulsa ou desprezo pelas mulheres e
valores femininos.
A misoginia é um sentimento de aversão patológico pelo
feminino, que se traduz em uma prática comportamental machista, cujas opiniões
e opiniões e atitudes visam 0 estabelecimento e a manutenção das
desigualdades e da hierarquia entre os gêneros, corroborando a crença de que os
homens são superiores.
O constante estímulo de comportamentos estereotipados
impacta ambos os gêneros, visto que exige amostras de uma cruel virilidade no
homem e total subserviência na mulher. Quando a expectativa comportamental não
ocorre, a violência eclode em uma escala ascendente de gravidade, iniciando com
as piadas depreciativas, assédios, abusos, estupros e culmina com o
feminicídio.
As bases misóginas do pensamento ocidental geram a
banalização da violência ao feminino que se estende pelos vários aspectos da
vida da mulher, como o social, o psicológico, econômico e político, tornando
difícil identificar os traços nocivos mais sutis. Desta forma, homens e
mulheres reproduzem atos e expressões machistas quase que de forma
inconsciente, com a mulher adotando, muitas vezes, como mecanismo de
sobrevivência na cultura opressora, uma aparente passividade que não deve ser
entendida como a aceitação das situações que lhe ferem a dignidade, mas sim
como um mecanismo de defesa e sobrevivência.
Por um acaso você já ouviu falar que "em briga de
marido e mulher não se mete a colher"? Pois essa é uma frase que explicita
um dos traços da cultura brasileira, a banalização da violência de gênero.
Surgiram obras como o Segundo Sexo e Mística Feminina,
respectivamente, de Simone de Beauvoir e Betty Friedan, que impulsionaram a
criação de um movimento liderado por mulheres que buscava problematizar as
colocações femininas na sociedade. Assim, tem-se início a luta pela emancipação,
autonomia e liberdade da mulher diante das construções idealizadas da figura
feminina e de feminilidade, por direitos e igualdades políticas, sociais e
econômicas através do empoderamento.
Segundo Juliana Faria, jornalista e criadora do site Think
Olga: "Uma mulher empoderada é uma mulher bem informada. Ela sabe dos seus
direitos, entende o que é opressão e busca soluções para isso". Desta
forma, as mulheres que defendem o movimento feminista buscam a disseminação de
ideais empoderadores por todas as camadas sociais, com o acolhimento das
individualidades de cada mulher e estabelecendo a união entre as diferentes
correntes do movimento para seguir promovendo transformações profundas na
mentalidade misógina da coletividade.
Tivemos notícia que na Câmara de Vereadores de Itabuna, no
âmbito legislativo, no exercício do mandato, um dos nossos vereadores foi
deselegante e agressivo contra a Primeira-Dama do nosso município.
No local onde ele deveria levantar a bandeira contra a misoginia,
contra o racismo e contra a homofobia, ele fez o contrário, infringindo a Lei e
a Ética do seu Mandato conferido pelo voto popular.
O termo misoginia é utilizado para se referir a expressões e
comportamentos que sinalizam desprezo, repulsa, desrespeito ou ódio às
mulheres.
A expressão machista utilizada fere a mulher no tocante ao
gênero protegido pela lei Maria da Penha e a dignidade da pessoa humana
prevista no art 140 do CPB.
Recentemente tivemos uma exemplar atitude da Câmara de
vereadores da cidade gaúcha de Montenegro no Vale do Caí.
Pela primeira vez em sua história, a cidade gaúcha de
Montenegro (Vale do Caí) tem um vereador cassado. Trata-se da vereadora Camila
Oliveira (Republicanos), julgada pelos colegas com um placar de nove votos a
zero. Motivo: em um vídeo gravado em seu gabinete na Câmara e divulgado nas
redes sociais, ela chama de "cadelas" as mulheres com orientação
política de esquerda.
Sione Porto, membro do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Mulher CONSEMI
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Sione Porto, ex-delegada titular da DEAM de Itabuna/BA,
escritora, membro da Academia de Letras de Itabuna (ALITA)
domingo, 2 de julho de 2023
Anotações sobre o Dois de Julho
Cyro de Mattos
Eu era aluno
do curso clássico no colégio da Bahia (Central) quando escutei de meu professor
Luís Henrique Dias Tavares que a Bahia e o Brasil são inseparáveis. Meu
professor era um homem de estatura pequena, mas que carregava no coração um
forte amor e na razão um grande saber pelos caminhos históricos da Bahia.
Observara em sala de aula, naqueles idos de 1956, que essa união insuperável
procedia do fato de que o Brasil exerceu sua verdadeira independência em solo
baiano. Os mares da Bahia de Todos os Santos por sua vez deram seu abraço no
entorno deste solo para que os baianos se libertassem do jugo do império
português.
O movimento
social e militar, iniciado em 19 de fevereiro de 1822, teve seu desfecho
vitorioso em 2 de julho de 1823. O Dois de Julho tornou-se data importante para
o povo baiano, que a festeja todos os anos com alma, força e vida. Celebra um
movimento desejoso de incorporar a então província na unidade nacional
brasileira. Um movimento assim veemente com o qual o sentimento federalista latejava
verdades no espírito emancipador do povo baiano.
A
independência do Brasil na Bahia não foi feita em gabinetes e salões, aconteceu
nas ruas, nos campos de batalhas, com mortos e feridos. Contou com a
participação decisiva do povo como protagonista. Indígenas, escravos libertos,
gente humilde das classes baixas. Figuras de comando tiveram performance
significativa no desenrolar da pugna. Sobressai o general Labatut como
comandante de nossas forças militares no seco, enquanto Lord Cochrane foi o
responsável pela guarda da Baía de Todos os Santos.
É imperioso
mencionar a figura da mártir Joana Angélica, morta ao impedir que os
portugueses tomassem o convento da Lapa. E a de Maria Quitéria, valorosa mulher
que combateu os adversários portugueses no Recôncavo. Vestida numa farda de
soldado, com a arma na mão, lutou com coragem incomum contra os portugueses na
barra do Paraguaçu, em Santa Amaro e Cachoeira. Houve também Maria Felipa, uma
negra catadeira de marisco, a mulher que comandou mulheres negras para seduzir
os portugueses enquanto outras queimavam suas embarcações.
Fala-se que,
na batalha final, João das Botas, um marinheiro português que aderiu à
autoridade do príncipe Pedro, com o seu conhecimento instruiu Cachoeira, Santo
Amaro e São Francisco do Conde na armação e comando dos barcos para combater a
frota portuguesa. Foi singular sua atuação como trunfo na guerra.
Noutros
falares, de como exatamente o corneteiro Luís Lopes tenha ficado no coração dos
baianos ninguém sabe ao certo. Se a versão da história contada é verídica ou
não, tudo se torna mais intrigante e ao mesmo tempo nebuloso. Sobre o assunto o
que se sabe é que ele participou do conflito conhecido como a Batalha de
Pirajá. Propaga-se no imaginário popular que em vez do toque de “recuar”, deu o
sinal de “cavalaria avançar” e, em seguida, o de “degolar”. E quem acabou
partindo em retirada foram as tropas lusitanas, imaginando que os brasileiros
tinham recebido reforços.
O movimento
que deflagrou a independência do Brasil na Bahia motivou a Castro Alves, o
poeta mais amado dos baianos, a escrever um poema de versos magníficos. O poema
“Ode ao Dois de Julho” vem expresso com o discurso eloquente, versos nas
imagens candentes da esperança e da liberdade, aparecendo juntas numa só voz
que evoca a peleja da treva e do clarão. O libertário construtor de uma poética
solidária sobre a escravidão dos negros africanos, agora com versos
incandescentes de esperança, canta a liberdade como o sentimento mais valoroso
que envolve os baianos no palco do confronto. Como noiva do sol a liberdade,
essa peregrina esposa do porvir, faz-se motivo de inspiração ao estro do poeta
de alta voz condoreira.
Transcrevemos
abaixo, como o final dessas anotações sobre O Dois de Julho, o poema do genial
poeta baiano.
Ode ao Dois de Julho
Era no Dois de julho. A pugna imensa
Travara-se nos cerros da Bahia...
O anjo da morte pálido cosia
Uma vasta mortalha em Pirajá.
"Neste lençol tão largo, tão extenso,
"Como um pedaço roto do infinito...
O mundo perguntava erguendo um grito:
"Qual dos gigantes morto rolará?!...
" Debruçados do céu... a noite e os astros
Seguiam da peleja o incerto fado...
Era a tocha — o fuzil avermelhado!
Era o Circo de Roma — o vasto chão!
Por palmas — o troar da artilharia
Por feras — os canhões negros rugiam!
Por atletas — dois povos se batiam!
Enorme anfiteatro — era a amplidão!
Não! Não eram dois povos, que abalavam
Naquele instante o solo ensanguentado...
Era o porvir — em frente do passado,
A Liberdade — em frente à Escravidão,
Era a luta das águias — e do abutre,
A revolta do pulso — contra os ferros,
O pugilato da razão — com os erros,
O duelo da treva — e do clarão!...
No entanto a luta recrescia indômita...
As bandeiras — como águias eriçadas —
Se abismavam com as asas desdobradas
Na selva escura da fumaça atroz...
Tonto de espanto, cego de metralha,
O arcanjo do triunfo vacilava...
E a glória desgrenhada acalentava
O cadáver sangrento dos heróis...
............................................................................................
Mas quando a branca estrela matutina
Surgiu do espaço... e as brisas forasteiras
No verde leque das gentis palmeiras
Foram cantar os hinos do arrebol,
Lá do campo deserto da batalha
Uma voz se elevou clara e
divina:
Eras tu — Liberdade peregrina!
Esposa do porvir — noiva do sol!...
Eras tu que, com os dedos ensopados
No sangue dos avós mortos na guerra,
Livre sagravas a Colúmbia terra,
Sagravas livre a nova geração!
Tu que erguias, subida na pirâmide,
Formada pelos mortos do Cabrito,
Um pedaço de gládio — no infinito...
Um trapo de bandeira — n'amplidão!...
Cyro de Mattos é escritor e poeta. Publicado por várias
editoras na Europa. Premiado no Brasil, Itália, Portugal e México. Membro da
Academia de Letras da Bahia. Doutor Honoris Causa pela Universidade Estadual de
Santa Cruz (UESC).
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